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Organizações exigem reparação por violações de DDHH na mídia

”Não perca! 365 modos de ser bela o ano inteiro”, diz a capa da revista feminina. Na propaganda de TV, cremes para evitar as rugas devem ser usados desde os 25 anos de idade. Nas novelas e comerciais, o padrão de beleza da mulher branca, magra, jovem, loira e de cabelos esvoaçantes. O resultado de tamanha influência da mídia não poderia ser diferente: além de recordistas nas cirurgias plásticas, as mulheres brasileiras gastaram, em 2003, R$ 17 bilhões em cosméticos. Ao mesmo tempo, numa pesquisa internacional realizada pela Unilever, elas aparecem como as mais infelizes com sua aparência.

Da baixa auto-estima para a aceitação de uma situação de submissão e de violência é um passo rápido, acreditam as feministas. Daí a importância do exercício do controle social da mídia, como forma de veicular a pluralidade e a diversidade das mulheres nos meios de comunicação, e de combater todos os preconceitos e opressões estimulados pela mídia. Esta foi uma das conclusões da roda de conversa realizada em Belém, durante o Fórum Social Mundial, que debateu o tema “Violações de direitos humanos e o controle social da mídia”.

”A mídia em geral fere os direitos das mulheres. Nas bancas de jornal, no cinema, na publicidade, nas novelas, há um flagrante desrespeito aos nossos direitos. Raramente nossas demandas e questões políticas aparecem. A mulher trabalha fora e precisa de creche e ninguém discute isso. Por que na novela não há homens lavando roupa para que a divisão do trabalho seja vista de maneira diferente”, questiona Rachel Moreno, do Observatório da Mulher e integrante da Articulação Mulher e Mídia. “Além disso, há espaços em que as mulheres simplesmente não existem. 99% dos especialistas entrevistados são homens. As mulheres raramente são convocadas para dar sua opinião. Somos 52% da população e aparecemos em 12% dos espaços considerados sérios. Em compensação, enquanto musas, na publicidade do carro e da cerveja, aparecemos a torto e a direito”, critica.

Para responder a essa situação, que além de transmitir valores tradicionais e conservadores acerca das mulheres leva à perpetuação da violência doméstica cotidiana, diversas organizações do movimento feminista se reuniram em torno da Articulação Mulher e Mídia, que vem realizando ações de monitoramento dos meios de comunicação e exigindo espaços formais para o exercício do controle social da mídia. Elas defendem, por exemplo, que as violações de direitos humanos praticadas pelos diferentes veículos sejam consideradas no momento de renovação das concessões de rádio e televisão.

Da mesma forma, têm acionado a Justiça contra propagandas abusivas, que exploram e violentam a imagem da mulher. Em março, a Articulação promoverá um seminário nacional sobre o tema em São Paulo, que deve dar os primeiros passos para a criação de uma Rede Nacional de Controle Social da Imagem da Mulher na Mídia.

Direitos das crianças e adolescentes

Outro público que sofre constantes violações pelos meios de comunicação são as crianças e adolescentes. Há cerca de dez anos, a Rede Andi, que reúne diversas organizações de defesa da infância, acompanha o trabalho da mídia para verificar o tratamento dado às crianças e adolescentes, e agora também aos jovens. Na Bahia, a Cipó – Comunicação Interativa atua com o tripé monitoramento, formação e mobilização para combater as violações praticadas pela imprensa.

”Fazemos o clipping das matérias publicadas e analisamos seu conteúdo. Há violações claras, como uma matéria da Tribuna da Bahia, cuja manchete era 'Pivetes assaltam adolescentes no Pelourinho'. Esse tipo de reportagem demonstra um posicionamento da imprensa”, acredita Nilton Lopes, da Cipó, que participou da roda de conversa. Lopes também aponta que a questão da violência é muito marcante nas coberturas. “Em 2007 e 2008, triplicaram as matérias sobre violências praticadas por crianças e adolescentes, o que demonstra que a mídia defendia a redução da maioridade penal, agendando o debate na sociedade”, disse.

A partir de exemplos como estes, a organização procura os jornalistas responsáveis pelos textos, buscando uma melhora na cobertura do veículo. O resultado do monitoramento é publicado anualmente através de análises de como a mídia baiana trata a criança e adolescente.

Outro pé da atuação da Rede Andi é a formação de profissionais de comunicação e de setores da sociedade civil, para a qualificação do diálogo imprensa-defensores dos direitos das crianças. Por fim, as organizações trabalham com mobilização e incidência política, participando da construção de políticas de comunicação. “No entanto, no próprio Conselho de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes, a comunicação não é vista como direito humano, e isso dificulta os trâmites legais quando acontece uma violação”, aponta Lopes.

Pela ética na TV

Uma das iniciativas de controle social mais difundidas pelo país é a Campanha Quem Financia a Baixaria É Contra a Cidadania, criada em 2002 através de uma parceria da sociedade civil e da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. A campanha recebe denúncias de violações praticadas na programação de TV e tem o objetivo de responsabilizar o anunciante dos programas em que são veiculadas. Até hoje, já foram recebidas mais de 44 mil denúncias, sobretudo de apologia ao crime, estímulo à violência contra presos, discriminação e preconceitos contra a mulher, crianças e adolescentes, LGBTs e religiões de matrizes africanas.

Uma comissão técnica de psicólogos, advogados e comunicadores redige pareceres sobre os programas denunciados, que podem se transformar em representações ao Judiciário. A cada quatro meses, a campanha elabora um ranking com os campeões de denúncias. Um deles era o programa Tardes Quentes, do apresentador João Kleber, que em 2005 acabou sendo processado pelo Ministério Público Federal e organizações da sociedade civil por violar direitos da comunidade LGBT. A Justiça deu ganho de causa às organizações, que receberam um direito de resposta coletivo, exercido com a veiculação de 30 programas de promoção dos direitos humanos no horário do programa de João Kleber.

A campanha também criou o Dia Contra a Baixaria na TV, marcado por um programa transmitido em outubro na rede pública de TV, e o programa VerTV, veiculado semanalmente na TV Câmara e TV Brasil. Atualmente, tem atuado na regulamentação da publicidade infantil e, mais recentemente, enviou uma representação ao MPF acerca da cobertura da imprensa no caso do seqüestro da adolescente Eloá, em São Paulo.

”Procuramos estreitar laços com as entidades e publicizar a campanha, atuando em todos os espaços relacionados a esta questão, como o Ministério da Educação e o Ministério da Cultura”, relatou Marcio Araújo. “A Conferência Nacional de Comunicação, que acaba de ser convocada pelo presidente Lula, é o momento que a gente esperava para acolher todas essas questões”, acredita Araújo.

De fato, o desafio neste momento para os movimentos sociais e organizações da sociedade civil é dar conseqüência ao monitoramento das violações cometidas pela mídia, construindo estratégias de combate a essa situação e estimulando que a população como um todo contribua no controle social. Para isso, na opinião dos participantes do debate no Fórum Social Mundial, é urgente que o país estabeleça espaços institucionalizados para receber tais denúncias, e que Congresso e Executivo considerem essas informações nos processos de renovação das concessões públicas de rádio e TV.

Mídia comercial ampliou visibilidade, mas manteve preconceitos

O Fórum Social Mundial surgiu como um contraponto ao Fórum Econômico de Davos. Ano após ano, o balanço de organizadores e lideranças manteve-se altamente crítico à cobertura feita pelos meios de comunicação comerciais, a chamada grande mídia: enquanto celebravam-se as análises otimistas sobre a expansão do capitalismo mundial feitas em Davos, eram invisibilizadas e ironizadas as propostas por um "outro mundo possível" discutidas em cada uma das edições do FSM.

No entanto, no encontro deste ano, realizado em Belém entre 27 de janeiro de 1o de fevereiro, a postura mudou, ainda que muito levemente. O Fórum Social ganhou visibilidade na mídia comercial em uma cobertura que mostrou a existência de evento de caráter internacional discutindo perspectivas alternativas para o futuro da humanidade, mas manteve sempre esta presença em condição inferior ao Fórum de Davos.

Para Rita Freire, integrante do Grupo de Trabalho de Comunicação do FSM e coordenadora do projeto de cobertura compartilhada Ciranda, esta postura de alguma abertura foi resultado da crise total de projeto dos líderes do capitalismo mundial reunidos na Suíça. "O FSM teve mais visibilidade na mídia do que em anos anteriores, possivelmente porque há expectativa de que exista alternativa ao caos que estamos vivendo hoje em todos os setores e sistemas que organizam o planeta.”

Exclusão das alternativas

Mesmo assim, na avaliação dos entrevistados pelo Observatório do Direito à Comunicação, as reportagens da mídia comercial mantiveram um viés limitado e crítico ao Fórum Social, marcado pelo excessivo destaque à agenda dos presidentes latino-americanos, em especial às críticas ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pela espetacularização do encontro e das culturas diferenciadas presentes nele e pela busca de contradições entre os discursos altermundistas e supostas práticas pró-capitalistas.

As propostas de mudanças do atual modelo de desenvolvimento, radicais ou não, apresentadas em seus debates permaneceram fora da agenda midiática. "Não houve espaço para este debate, mas houve visibilidade", diz Freire. "A mídia convencional se foca muito no evento como um todo, no espetáculo e acaba deixando de lado debates que são importantes", endossa Kellem Cabral, jornalista que coordenou a Assessoria de Imprensa do FSM.

O sociólogo Emir Sader, em artigo escrito para a Agência Carta Maior, defende que a mídia comercial não consegue enxergar o Fórum Social porque mantêm a ótica do discurso que sustentou o capitalismo neoliberal até a crise. "Seu estilo e sua ótica está feita para Davos, para executivos, ex-ministros de economia. Temas como os diagnósticos da crise e as alternativas, a guerra e as alternativas de paz, as propostas de desenvolvimento sustentável – fundamentais no FSM – estão fora da pauta.”

Outro tema que deveria ser caro aos grupos de mídia, a crise econômica e editorial destes, é também excluído da cobertura realizada. "A mídia mercantil é um caso perdido para a compreensão do mundo contemporâneo", conclui Sader.

Estrelas presidenciais e midiáticas

Quando apareceram, as críticas dos movimentos sociais e organizações presentes em Belém vieram sempre com alvo certo: o presidente Lula. "O FSM, como tudo, é objeto das fofocas sobre eventuais desgastes do governo Lula – a obsessão dessa mídia", aponta Sader.

No dia 28, a Folha de S. Paulo reforçou este ponto de vista de desgaste de Lula ao cravar como título de sua matéria "Lula enfrentará cobranças em fórum por efeitos da crise". O não convite ao presidente para a atividade promovida pelo MST com os presidentes Evo Morales, Hugo Chavez, Rafael Corrêa e Fernando Lugo também ganhou destaque na matéria.

As atividades da Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas) contra as respostas do governo federal à crise, mesmo que não integrando uma programação unitária e oficial do FSM, também ganharam menção na reportagem do periódico paulista. É fato notório que parte importante dos presentes em Belém manteve avaliações críticas do governo brasileiro, mas estas nunca foram noticiadas do ponto de vista de suas propostas, mas apenas como mostras de arranhões na alta aprovação de Lula.

"Boa parte da cobertura foi dedicada às autoridades presentes, ocuparam 2 ou 3 dias. A imprensa foi atrás da declaração dos ministros", avalia Rogério Jordão, assessor de imprensa do Ibase, uma das entidades organizadoras do fórum, e responsável por municiar seus integrantes diariamente com análises sobre a cobertura realizada.

Guiada pelo caminho das estrelas, sejam elas presidenciais ou não, também causou frisson o boato de que a atriz Angelina Jolie poderia ir ao FSM. "É mais importante o destaque à Angelina Jolie e Bono Vox ou a este momento para a América Latina e para o mundo? E a imprensa não olha para isso, não diz isso nos seus programas", questiona Rosane Bertotti, secretária de comunicação da Central Única dos Trabalhadores (CUT).

Contradições

Um terceiro viés da cobertura dos veículos sobre o Fórum Social Mundial é já uma constante ao longo das edições do evento e busca contradições entre o discurso por um outro mundo possível e as práticas políticas ou de vivência dos participantes. "A grande mídia procurou lado contraditório, dizendo que o fórum faz tudo aquilo que quer mudar, reforçando que FSM não traz nada de novo", diz Rita Freire.

Exemplo deste tipo de pauta é a matéria feita por Rodrigo Bertolotto para o portal UOL publicada em 27 de janeiro sob o título "Participantes do Fórum planejam 'outro mundo', mas lucram com o atual". Nela, o repórter aponta uma suposta contradição entre a crítica ao capitalismo realizada no FSM e a venda de artigos para arrecadação de dinheiro, como se a contestação passasse por uma negação das formas de busca de renda.

Associada a este tipo de matéria estão também as que vêem no Fórum Social um conjunto de eventos pitorescos. A diversidade das manifestações presentes são vistas com estranhamento e aqueles comportamentos que diferenciam-se da conduta normalizada nos grandes meios é folclorizada ou ridicularizada, ao invés de ser compreendida.

Segundo Rogério Jordão, do Ibase, os meios de comunicação têm dificuldade de compreender a complexidade do evento e optam por se "ater ao pitoresco, ao 'wojosdireitoacotock', ao caráter midiático das imagens, pegando este lado fácil da coisa". O jornal mineiro O Tempo deu grande destaque a uma "marcha pela legalização da maconha" que teria sido realizada durante o FSM, o que ajuda a reforçar a idéia de que este tipo de evento seria a atividade comum do evento.

Cobertura diferenciada

Jordão avalia que houve uma diferença entre o noticiário das redes de TV e rádio e aquele da mídia impressa. Os primeiros estiveram mais abertos ao Fórum Social Mundial, retrataram os grandes temas, enquanto os segundos tiveram postura clara de desconstrução do evento e de suas discussões. "As televisões, embora também não tenham conseguido aprofundar, apresentaram temas muito mais ligados ao Fórum, como a Amazônia. Por dois dias, deram matérias sobre tráfico de mulheres ou denúncias neste sentido. A pessoa que viu TV talvez tenha compreendido mais o Fórum do que os jornais, e com viés simpático", avalia.

A diferença advogada pelo assessor do Ibase é de fato perceptível. Matérias do Jornal Nacional, da Rede Globo, e do Jornal da Record deram a cobertura básica, com números de participantes do evento, mas também apresentaram os grandes temas em debate, como a Amazônia e a crise financeira internacional.

No dia 27, primeiro dia do FSM, o Jornal Nacional fez matéria de apresentação do evento, elencando os principais debates. No mesmo dia, o Jornal da Record destacou as pautas indígenas pela preservação da Amazônia. No dia 28, na primeira matéria sobre o FSM, o Jornal Nacional economizou julgamentos e apresentou rapidamente o foco do primeiro dia do evento nas discussões sobre a Amazônia. O Jornal da Record deu destaque às denúncias contra os assassinatos cometidos contra líderes do movimento campesino.

Já a mídia impressa foi o principal veículo dos preconceitos analisados anteriormente. Matérias da Folha de S. Paulo e de outros periódicos impressos mantiveram a postura dos anos anteriores. As revistas semanais que chegaram às bancas neste fim-de-semana repetem a carga de ataque ao Fórum Social. A revista Veja fez chacota, sugerindo que, se estivesse vivo, Karl Marx não encontraria nada de válido em Belém, apenas "alguns índios e seus líderes invocando entidades incorpóreas que regeriam a vida em um continente chamado Abya Yala, como é politicamente correto se referir na língua indígena kuna ao que conhecemos como América Latina".

Por isso, continua o semanário, o intelectual alemão se dirigiria à Davos, onde de fato se fazia a crítica do sistema capitalista. Já a revista Época, das Organizações Globo, classificou o FSM como "spa ideológico", criticando os patrocínios concedidos por estatais no valor de R$ 750 mil. A reportagem conclui afirmando que as idéias "exaustivamente discutidas no Fórum" nunca são "implementadas no mundo real".

Falta de projeto, mas clareza do que não se quer

Ao final, o Fórum Social Mundial conseguiu aparecer como um evento noticiado para parte importante dos brasileiros pelas matérias das redes comerciais de TV. Se é válido o argumento segundo o qual tal visibilidade se deu por conta do esfacelamento dos pressupostos neoliberais, também foi visível a contenção operada em relação às propostas de reformas e revoluções nesta fase do sistema capitalista.

A cobertura do FSM realizado em Belém reforça a necessidade urgente de uma mídia plural e diversa, da qual façam parte meios públicos e livres que possam dar visão a estes projetos alternativos. Do contrário, tanto a chacota como a cobertura sóbria continuarão alijando as forças de esquerda da disputa real pelo outro mundo possível.

Contra oligopólio, saída é fortalecer mídias públicas e alternativas

Apesar de o tema do Fórum Social Mundial ter sido a Amazônia e a luta contra a destruição do meio ambiente, a caracterização da crise financeira mundial e as alternativas para sua superação rumo a um novo modelo de desenvolvimento apareceram como a preocupação mais recorrente nos debates do evento. Nas atividades com temática ligada à comunicação, não foi diferente. Especialistas, ativistas e lideranças de movimentos sociais discutiram o papel da mídia na crise e qual comunicação deve ser reivindicada para construir um modelo de desenvolvimento popular e democrático.

No debate "Comunicação e Desenvolvimento – Uma política de comunicação desde os povos", realizado no dia 31, Marcos Arruda, da rede Jubileu Sul, destacou a importância que os meios de comunicação vêm tendo para manter uma ilusão legitimadora da ordem econômica que agora evidencia sua insustentabilidade. "O paradigma de desenvolvimento que temos é mentiroso e é ligado também a um conceito falso de progresso, que trata desenvolvimento e progresso como crescimento econômico ilimitado”, afirmou Arruda. “Todo dia está no jornal as notícias sobre o crescimento. O problema não é crescer, mas deve ser buscar crescer e manter distribuindo.”

Na mesma mesa, Gilberto Maringoni, pesquisador do Instituto de Pesquisas Econômicas Avançadas (IPEA), lembrou que este comportamento se intensificou pelo fato da mídia ter se integrado, nas últimas duas décadas, ao capital financeiro. “Cada vez mais a mídia é assumida por grandes financistas internacionais. Um exemplo é o jornal O Estado de S. Paulo, que pertence a um consórcio de bancos liderado pelo Itaú”, assinalou.

Em outro debate, "A Comunicação dos trabalhadores na disputa ideológica", promovido pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) no dia 30, o sociólogo Emir Sader alertou para a importância de entender a força desta ação dos conglomerados e como este aparato de publicidade, entretenimento e jornalismo agora opera para sustentar a opção pela manutenção do status quo mesmo que reformulado em razão da crise. “O sistema de valores que compõe o modo de vida americano é hegemônico. Embora os Estados Unidos estejam decadentes, o seu modo de vida continua se estabelecendo", afirmou.

A mídia pública como alternativa

Nos dois debates, os participantes apontaram a comunicação pública como a principal alternativa das forças contra-hegemônicas para pautar de fato junto à população um novo modelo de desenvolvimento. "Não há como fazer disputa ideológica sem fortalecer o campo público da comunicação: as [mídias] estatais, comunitárias, públicas e legislativas", defendeu Beto Almeida, coordenador da Telesur no Brasil.

Para Gilberto Maringoni, embora os meios alternativos, comunitários e livres devam também ser um campo a ser ampliado como expressão das vozes populares, é preciso superar uma possível dispersão em instrumentos robustos e de forte alcance no âmbito do Estado. “Como nós, que tentamos fazer mídia contra-hegemônica, podemos combater isso? Temos que fazer veículos alternativos, tudo isso, mas se a gente depender disso, não dá nem para sair. Só dá para contar com um ente para fazer frente a isso: é o Estado”, enfatizou. “Toda a nossa força deve ser pressionar o Estado para constituir meios de comunicação, transmitir estes meios. Ele só pode fazer isso se for democrático."

Maringoni destacou que esta luta passa por disputar, hoje, os recursos movimentados pelo Estado para a mídia, direcionados sobretudo aos grandes grupos comerciais. "Hoje, 60% da verba publicitária do governo vai para a Rede Globo, sendo que ela tem 52% de audiência", relatou.

Para Emir Sader, este contraponto necessário pela TV pública não deve se limitar ao jornalismo, abarcando também os conteúdos tradicionais televisivos: a dramaturgia, as artes e os esportes. "Não tem que ter vergonha: tem que ter muito recurso, tem que fazer novela. Nós não queremos disputar o marketing, mas o esporte, o noticiário, a música. A música é um elemento espiritual nas pessoas. Tem que ter apenas a música de combate, mas contemplar a dimensão de lazer, de espiritualidade das pessoas. O trabalhador precisa de consciência e lazer. Um lazer construtivo, de solidariedade", defendeu.

Organizar a comunicação popular

Igor Felippe, da área de comunicação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), no debate "Comunicação e Desenvolvimento", avaliou que a esquerda hoje sofre por ter apostado em tentar dialogar com a população por meio da mídia comercial, ao invés de criar seu próprio aparato de comunicação. "Como a esquerda não tem um jornal diário? Isso é uma vergonha”, questionou.

A saída, continuou está na construção de meios próprios dos movimentos sociais e organizações populares, como experiências que venham "de baixo para cima". "Nós não vamos conseguir dialogar com a sociedade por meio destes meios de comunicação. Temos que criar rádios comunitárias, jornais, blogs, etc. Isso vai nos ensinar a fazer comunicação.”

Entretanto, Felippe argumentou que a comunicação só será um instrumento de fato de propagação de um novo modelo se ela for feita no bojo de intensa luta social por um programa democrático e popular, promovida por um campo de esquerda mais articulado. "Hoje a esquerda está fragmentada. Temos que construir um programa unitário com propostas para este país. A única forma de romper esta conjuntura é a partir da luta social, não existe outra forma. É a luta social, são ações, marchas, protestos, fóruns, campanhas que vão conseguir furar este bloqueio. Fizemos o plebiscito da Vale do Rio Doce em 2007 e conversamos com mais de cinco milhões de pessoas, fizemos trabalho de base", disse.

Conclusões afins, ações nem tanto

Apesar dos balanços convergentes, as respostas a este quadro e à necessidade de construir um aparato de comunicação contra-hegemônico mantêm-se pouco articuladas. No último dia do Fórum Social Mundial (FSM), o Objetivo 4 da lista dos eixos organizativos do processo, relativo à democratização da comunicação, foi o único que não contou com uma assembléia para pensar ações conjuntas. Quanto aos meios alternativos, as articulações ainda esbarram na fragmentação.

Um sopro de ânimo foi a realização de mais um evento do Fórum de Mídia Livre no FSM 2009. Porém, o encontro não conseguiu avançar significativamente na organização das iniciativas alternativas para uma agenda comum, que paute um outro modelo de desenvolvimento. O risco disso é que, em um momento crítico e de oportunidades como a atual crise econômica mundial, a esquerda perca a batalha e não consiga pautar uma alternativa de fato.

Mídias públicas do Brasil devem aproveitar experiências internacionais

Em diversos países do mundo, o sistema público de comunicação é uma modalidade de mídia consolidada e desenvolvida. Nestas experiências, passou-se já pelos dilemas hoje em curso no Brasil, como a garantia de autonomia, a ampliação da participação no sistema geral de comunicação ou a sustentação das emissoras. Os modelos resultantes do enfrentamento destas questões e as soluções adotadas devem ser olhadas neste momento de reformulação da realidade da comunicação pública no país.

Esta foi o foco do debate "Sistemas públicos de comunicação", promovido pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social na quinta-feira (29) no Fórum Social Mundial. Na atividade, foram apresentados e comentados os resultados da pesquisa sobre esta modalidade de mídia em 12 países do mundo realizada pelo coletivo. O estudo será publicado na forma de livro em março deste ano. Foram convidados Jonas Valente, do Intervozes, Tereza Cruvinel, presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), e Paulo Miranda, da Associação Brasileira de Canais Comunitários (Abccom).

Jonas Valente, que representou a equipe autora do estudo, fez um panorama do funcionamento dos sistemas públicos de comunicação e apontou experiências que poderiam ser adotadas no país. No plano da gestão, defendeu a composição de conselhos por segmentos da sociedade, ao invés da arquitetura brasileira com a indicação dos membros pelo Presidente da República.

Valente também destacou os casos de países como Reino Unido, França e Itália, que também mantêm outros instrumentos de participação da população, como comitês de usuários, conselhos de jornalismo com a presença dos dirgentes e trabalhadores das corporações, ouvidorias e consultas e audiências públicas. "Na França, há um corpo de 'mediadores' responsável por rodar o país realizando audiências para colher a opinião da população", relatou.

Convidada para a mesa de debates, Tereza Cruvinel, presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), endossou que é importante criar mecanismos de participação, mas lembrou que hoje a empresa já está submetida a diversos processos de controle, como o Conselho Curador, o Tribunal de Contas da União, a Secretaria de Controle Interno da Presidência da República, as comissões de Ciência, Tecnologia e Comunicação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

Sobre o Conselho Curador, a presidente da EBC destacou que, na sua primeira renovação, haverá uma consulta pública junto a segmentos da sociedade sobre os novos integrantes da instância. João Brant, do Intervozes, criticou o "secretismo" do conselho pelo fato deste não tornar públicos seus debates e atas. "Eu mesma já fui lá cobrar que o Conselho seja mais aberto, mas acho um grande avanço ter uma empresa
com esses espaços", respondeu Cruvinel.

Orlando Guilhon, superintendente de rádio da EBC, acrescentou alguns outros mecanismos de contato com o público que julgou fundamentais para a empresa e para qualquer iniciativa de comunicação pública: centros de atendimento ao público, que incluam não só ouvidorias, mas também visitas guiadas e atendimento a qualquer demanda de informação da população; pesquisas de opinião, quantitativas e qualitativas; e uma gestão interna democrática que envolva os trabalhadores, além de controles externos como a Conferência Nacional de Comunicação, a Campanha pela Ética na TV e o Conselho de Comunicação Social.

Choque de qualidade

Jonas Valente também destacou os modelos de programação como um aspecto positivo das experiências internacionais que poderiam servir de exemplo ao Brasil. Estes modelos são marcados pelo foco na pluralidade, diversidade, reflexão e educação. "Boa parte dos países consegue fazer uma programação diferenciada, que mostra a pluralidade e diversidade de seus territórios e discute seus problemas, mas sem se limitar a uma posição marginal, competindo de fato pelas audiências. Por mais que o Brasil não tenha um legado histórico como na Europa, temos que buscar este objetivo", defendeu.

A presidente da EBC respondeu dizendo que, apesar da montagem da grade de programação da TV Brasil ser baseada nestes princípios, a prioridade da emissora para este ano será dar um "choque de qualidade" na grade. "A programação de uma TV pública tem que ser diferente, tem que trazer a diversidade, tem que educar e provocar as pessoas, mas não precisa ser chata", disse.

Valente ponderou que os casos mais exitosos de aceitação de programas por parte da população desenvolveram-se institucionalizando a linha editorial. "Para que os programas possam concretizar os princípios da
comunicação pública, precisam ter diretrizes e uma linha clara e institucionalizada, para além das vontades de seus diretores. Isso permite também que a população tenha parâmetros para avaliar os conteúdos."

Financiamento

As experiências internacionais também têm muito a ensinar sobre as questões do financiamento e das políticas de sustentabilidade destas estruturas de mídia pública. Segundo o representante do Intervozes, o estudo concluiu que a autonomia política e operacional dos sistemas públicos está relacionada à garantia de um financiamento estável e protegido dos humores dos governantes de plantão. Ele citou os modelos europeus, que em sua maioria taxam os cidadãos, mas ponderou que, frente à dificuldade de aplicar tal solução no Brasil, seria válido adotar mecanismos como fundos alimentados por verbas orçamentárias. A taxação das operações comerciais de mídia, como as receitas das emissoras comerciais ou a comercialização de aparelhos, também poderia ser adotada no Brasil.

Tereza Cruvinel assinalou ser "impossível", hoje, qualquer tentativa de taxação dos cidadãos. Mas reforçou que só é possível garantir fortes estruturas em condições de "competir de fato com os sistemas comerciais" com fortes receitas. Como exemplo das fragilidades criadas pela dependência de verbas orçamentárias, ela citou o corte de de cerca de R$ 80 milhões no orçamento da empresa, recuperada na forma de emendas parlamentares. Afirmou, no entanto, que uma das saídas deverá ser a regulamentação da contribuição para o desenvolvimento da mídia pública, formada por recursos do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel), prevista para ainda este ano.

Outro convidado para a mesa de debates, Paulo Miranda, da Associação Brasileira da Canais Comunitários (ABCCom), reforçou a necessidade de financiamento estatal, acrescentando que este não deve ir apenas para a EBC ou para as educativas estaduais, mas também para os meios comunitários. "Nos Estados Unidos e no Canadá, há fundos para a comunicação comunitária. Precisamos replicar esta experiência aqui, pois sem verbas do Estado não conseguiremos fazer uma comunicação pública de fato", assinalou.

Produção compartilhada fortalece novo modelo de comunicação

Diversidade e pluralidade são princípios e características marcantes do processo do Fórum Social Mundial. Com a comunicação produzida em seus espaços não podia ser diferente. Em busca de um novo modelo de produção e difusão do conhecimento, movimentos sociais, produtores independentes, veículos alternativos e comunicadores populares vêm mostrando, a cada nova edição do FSM, como uma outra comunicação também é possível. Para debater os chamados projetos de acolhida da mídia alternativa, que recebe todos os veículos e produtores independentes de conteúdo para uma cobertura plural e diversa das atividades do Fórum, aconteceu, nesta segunda (26), dentro da programação do Fórum Mundial de Mídia Livre, o Seminário de Cobertura Compartilhada.

”Desde o primeiro Fórum, temos conversado para reunir o que temos em comum para construir uma comunicação que não seja regida pelas regras de mercado. Essa experiência transformou o FSM num laboratório da comunicação, não só em termos de cobertura, mas de reflexão sobre experiências que fujam de idéias básicas deste modelo. Uma delas é que a comunicação deve gerar negócios. Outra, é a defesa da competição. Isso contrapomos com a regra da ação compartilhada, profundamente ligada às lutas por transformação social. Se estamos trabalhamos por um outro mundo possível., a ação compartilhada é também para construir outro modelo de comunicação”, explica Rita Freire, da Ciranda.

A Ciranda atua há nove anos no espaço do Fórum Social Mundial como um espaço, na internet, para veiculação das produções e das visões de diferentes movimentos acerca do FSM. Sua ação inspirou projetos semelhantes relacionados a outros formatos, como o audiovisual.

Também depois de diversas experiências pontuais, o FSM 2005 vivenciou a primeira edição do Fórum de TVs, que reuniu vídeos de centenas de produtores independentes e os disponibilizou, via satélite, para emissoras públicas e comunitárias em diversos continentes. Em 2008, quando o encontro centralizado do Fórum foi substituído pelo Dia Global de Ação e Mobilização, entrou no ar a página www.wsf.tv, disponibilizando na rede imagens sobre o que estava acontecendo nos mais diferentes países.

“A televisão ainda é o meio de maior alcance pela população, daí a importância de disputarmos idéias por meio da veiculação desses conteúdos para as emissoras universitárias, comunitárias e educativas. Temos que ser alternativos, mas massivos”, acredita Adriano de Angelis, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, que participa dos projetos de cobertura compartilhada do FSM.

Além da veiculação da informação, os projetos de cobertura compartilhada também trabalham com o objetivo de difundir a própria prática deste novo modelo de comunicação. A partir da experiência de cada comunicador dentro deste novo formato de produção, espera-se a multiplicação da idéia em âmbitos locais e em processos que vão além do FSM. É isso o que está acontecendo, por exemplo, com os jovens do Cepepo – Centro de Estudos e Práticas em Comunicação Popular, de Belém, que há 27 anos trabalha com produção audiovisual de forma colaborativa. Desde julho do ano passado, eles estão se preparando para atuar na cobertura compartilhada do Fórum de TVs.

”Sempre achamos que a experiência do audiovisual estava muito distante das nossas possibilidades. Quando começamos a discutir com negros, indígenas e jovens das comunidades, que começaram a produzir com câmeras nos celulares, vimos que fazer audiovisual é possível para qualquer pessoa”, conta Hilma Bitencourt. “Vimos que poderíamos distribuir os vídeos por site para milhares de pessoas, fortalecendo a comunicação dentro da Amazônia. Criou-se um processo muito importante, em que as pessoas se apropriavam da tecnologia e também conheciam o que é o FSM e como construir outro mundo possível”, relata.

Seis idiomas no ar

Assim como o audiovisual e a comunicação escrita, o formato radiofônico vem crescendo e se multiplicando na cobertura compartilhada do FSM. Este ano, uma antena foi montada pelo Fórum de Rádios no edifício da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Pará e, via web, a cobertura é veiculada em seis idiomas: português, inglês, espanhol, francês, alemão e holandês. O Fórum de Rádios já articula uma rede de cerca de 500 emissoras em todo o mundo, conectadas através de streaming para escutar o que está acontecendo no FSM.

“É um exercício de convergência para uma ação permanente. Depois do Fórum de Rádios, levamos essa experiência para nossos países, esperando que ela contribua com iniciativas em nível local”, acredita Elvis Mori, que veio do Peru, para quem projetos como este também contribuem na luta contra a repressão sofrida pelas rádios comunitárias. “Acreditamos que a comunicação é um exercício de todos e todas, e não propriedade de um grupo de especialistas. Nós facilitamos esse processo para convergir as experiências para que a comunicação seja democratizada”, explica.

Dialogando com todos os projetos anteriores, também nasceu a idéia do Laboratório de Conhecimentos Livres, que apresenta alternativas de tecnologia – sobretudo o software livre – para contribuir com uma comunicação comunitária e livre de fato. Neste FSM, todos os projetos estarão juntos, tendo como sede a Faculdade de Comunicação da UFPA. Com dezenas de computadores para uso comum, ilhas de edição e estúdios de rádio, é dali que sairá uma visão contra-hegemônica do que acontecerá em Belém.

”A primeira coisa que compartilharemos aqui é a idéia da comunicação como um bem comum, um direito de todos e todas. E num mundo onde os meios de comunicação estão concentrados em poucas mãos e onde, em alguns países, os governos controlam a mídia, é necessário que os meios independentes tenham uma voz cada vez mais forte”, diz Jason Nardi, militante italiano do direito à comunicação e membro da Comissão de Comunicação do Conselho Internacional do FSM.

O Seminário de Comunicação Compartilhada terminou ouvindo dos movimentos indígenas, negro, de mulheres, de jovens uma série de recomendações para a transformação da mídia, e com a proposta de criação de ações compartilhadas que se desenvolvam de forma permanente. Tudo isso para que as sementes plantadas durante o FSM possam dar frutos em cada canto do planeta, sempre.