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“Empresários se apropriaram da liberdade de imprensa para ter liberdade de empresa”

O debate sobre a democratização da comunicação, que era uma bandeira dos anos 80, voltou à tona na América Latina com a crise do modelo neoliberal e a conquista de governos progressistas em vários países. Em quase todo o continente está sendo discutido, ou já foi aprovado, um novo marco regulatório em busca de mais pluralidade e igualdade de acesso à comunicação.

Este tema atravessou os debates entre mais de trezentos representantes de rádios comunitárias, pesquisadores, autoridades e estudantes que participaram do Encontro Latino-Americano de Comunicação Popular e Bem Viver, de quarta a sexta-feira, em Quito, no Equador, para comemorar os quarenta anos da Associação Latino-Americana de Educação Radiofônica, a Aler.

"Doze anos atrás no continente não estávamos falando desse assunto, estava em nossas preocupações sempre, mas não havia essa possibilidade. Creio que se abriu uma brecha e que essa brecha já não tem volta atrás", diz a secretaria executiva da Aler, Nelsy Lizarazo. Na opinião de Lizarazo, as condições políticas são mais favoráveis agora, com o fortalecimento da democracia, apesar de algumas ameaças, como os golpes de Estado em Honduras e no Paraguai, mais recentemente. "Temos mais possibilidades de participar, de mobilizar e de entrar em diálogo. Também creio que os movimentos sociais e as organizações estão vivendo um novo tempo, reinventando-se, adaptando-se ao momento e em direção ao futuro, então creio que esse é um fator que também joga muito a favor de posicionar a comunicação como um direito".

Argentina – "nova lei traz avanço, mas não é suficiente para mudar a realidade"

Bolívia e Equador já aprovaram em suas Constituições que a comunicação é um direito de todo cidadão e que a liberdade de expressão não é isenta de responsabilidades.

Mas é a Argentina que têm a legislação mais avançada do continente. A nova Lei de Meios Audiovisuais, aprovada em 2009, garante 33 por cento das freqüências de rádio e televisão para emissoras sem fins lucrativos. As comunidades indígenas reconhecidas pelo governo também têm direito aos canais, fora desse percentual. A lei argentina determina ainda o fim do monopólio e oligopólio nos meios de comunicação e da propriedade cruzada. A cobertura dos canais tem limite, não pode alcançar mais de 35 por cento da população. Um dos desafios é o financiamento e a sustentabilidade dos veículos não comerciais. O fundo que deveria garantir recursos para esses canais ainda não começou a funcionar, embora haja algumas iniciativas pontuais para investimentos em capacitação e compra de equipamentos, segundo o presidente do Fórum Argentino de Rádios Comunitárias (Farco), Nestor Busso. "A lei é como uma porta que se abre. A lei propõe um novo modelo, mas não muda a realidade".

O maior entrave para fazer valer a lei são os grandes grupos privados, como o Clarin, que entrou na justiça e conseguiu uma medida cautelar suspendendo a aplicação de alguns artigos. A Suprema Corte marcou como data final para julgar a ação o dia sete de dezembro.

Para Busso, "cada vez mais os grandes meios de comunicação na América Latina são a expressão do poder econômico concentrado e, na medida em que os governos democráticos querem avançar em direitos cidadãos e pôr limites ao poder econômico, ocorre um enfrentamento entre o poder mediático e o poder político". Esse confronto, afirma Busso, é mais evidente em alguns países como Venezuela, Equador e Bolívia, mas também se dá no Brasil e na Argentina. "O poder econômico e suas corporações são o principal partido de oposição. Não há partidos com idéias, com outro projeto político. Os que enfrentam as políticas do governo nacional são as corporações mediáticas".

Por isso o tema é considerado chave para assegurar a governabilidade democrática. A vantagem na Argentina é que o assunto já ganhou as ruas. "Todo mundo opina sobre os meios de comunicação. E poucos ainda acreditam naquilo, bom saiu na televisão é verdade, saiu no diário é verdade. Cresceu um sentido crítico em relação aos meios de comunicação".

Busso acredita que não é possivel democratizar a sociedade se apenas poucas empresas definem os temas que devem ser debatidos ou não. "E, de fato, amplos setores da nossa sociedade, particularmente os mais pobres, estão invisíveis, estão silenciados, então há necessidade de uma ação dos estados para intervir em matéria de comunicação e para que todos os setores possam expressar-se. É um tema chave, tanto em nível nacional, como internacional".

A proposta de Busso é levar o debate aos organismos de integração, como Mercosul, Unasul, Alba e Comunidade Andina.

Comunidade Andina pede nova ordem da comunicação

O Secretário da Comunidade Andina (CAN), que reúne Peru, Colômbia, Equador e Bolívia, Adalid Contreras, diz que a entidade não está encarregada desse assunto, mas se preocupa com a crescente confrontação entre meios de empresários privados e poderes estatais. "Não é casual, porque as estruturas de poder estão instaladas nesses meios privados. Muitos meios privados estão passando do ponto, já não há mais ética nos informativos". Para Contreras, está instalado nesses meios "o desprezo pelo popular". E os erros sempre ficam impunes. "A auto-regulação dos jornalistas não funciona. Não se sanciona, não se castiga. Os empresários se apropriaram da liberdade de imprensa para ter liberdade de empresa". Neste sentido, o secretário opina que o discurso em nome da liberdade de expressão "está freando aspirações de décadas quanto ao direito à comunicação", que seria muito mais amplo. "Eu voltaria a pôr como bandeira a necessidade de uma nova ordem mundial da informação e da comunicação".

Equador – Movimentos sociais se unem para tentar aprovar a Lei de Comunicação

Os movimentos sociais do Equador decidiram lançaram durante o encontro das rádios comunitárias uma nova estratégia para avançar na democratização da comunicação. Eles acreditam que o primeiro passo é aprovar a Lei de Comunicação, que está em debate na Assembléia Nacional há três anos. O texto só depende de uma segunda e última votação no plenário. A proposta divide o espectro radioelétrico em 33 por cento para canais privados, 33 por cento para públicos e 34 por cento para comunitários, que teriam financiamento e isenção de impostos para se equipar. A lei também proíbe monopólio e oligopólio no setor, garante igualdade de acesso à publicidade oficial e cria o conselho de regulação e desenvolvimento da comunicação. O órgão seria composto por seis pessoas, entre representantes do governo, províncias, conselhos de igualdade, universidades, comunidades indígenas e afroequatorianas e outro dos movimentos sociais. Com funcão administrativa, o Conselho teria a palavra final sobre a concessão de freqüências e receberia denúncias sobre violações de direitos estabelecidos pela lei. Os meios privados chamam o projeto de 'lei da mordaça', o governo já disse que apóia a proposta, mas não tem votos suficientes para a aprovação.

As rádios comunitárias e outros movimentos sociais equatorianos decidiram se unir para pressionar os parlamentares daqui pra frente e fazer oficinas nas comunidades onde atuam com o fim de conscientizar a população sobre a importância da mudança de regras na comunicação.

Eduardo Guerreiro, diretor da rádio Latacunga, avalia que "esse tema foi conversado até agora mais no interior das organizações e não incidiu na sociedade como um todo. A sociedade civil não vê ainda a importância da lei de comunicação. Os meios hegemônicos, os meios comerciais, que estão unidos a determinados grupos de poder econômico e também político, foram manejando a opinião pública". O radialista diz que os meios comunitários pretendem pôr o tema em debate "e apresentar outra realidade, outro olhar sobre o que é a lei de comunicação".

Brasil na campanha pela liberdade de expressão de todos e de todas

Essa é a mesma preocupação do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) no Brasil. A coordenadora do FNDC, Rosane Bertotti, diz que as pessoas ainda não consideram o direito à comunicação igual ao de ter acesso à educação e à saúde, por isso não entram na luta por ele. "A comunicação é encarada como uma forma de levar uma informação, levar um entretenimento pra uma camada da sociedade e não como direito".

Mudar essa visão é o desafio dos que querem transformar a estrutura de comunicação do país.

A legislação em vigor é de 1962, anterior à ditadura. A Constituição de 88 trouxe avanços, como a proibição do monopólio e da concessão de rádio e televisão para quem tem cargo público, mas como não foi feita a regulamentação a regra não é cumprida. "Nós sabemos que as concessões no Brasil, em torno de 30 por cento, são ligadas a políticos".

O FNDC defende a necessidade de uma nova lei que garanta a liberdade de expressão num sentido amplo. A proposta deve garantir pluralidade, novas formas de concessão, fortalecer o sistema público, assim como os meios comunitários e educativos, além de considerar os avanços tecnológicos.

Para divulgar esses princípios, o Fórum lançou a campanha "Para expressar a liberdade, uma nova lei para um novo tempo"- de convergência tecnológica e de fortalecimento da democracia.

"O Brasil passou e continua passando por um processo diferente do último período, o governo do presidente Lula avançou em vários aspectos no que diz respeito à democracia, à economia, à participação". Não faz sentido, na opinião de Rosane, uma lei de comunicação que ainda permite conteúdos machistas nos meios de comunicação. "A cada dia milhares de mulheres são assassinadas e violentadas e assistimos em televisão aberta a programas que incitam a violência contra as mulheres, contra as crianças. Nós não podemos mais nesse novo tempo de democracia ver programas que incitam à homofobia, ao racismo. Nós vivemos num país plural e precisamos respeitar a diversidade de raças, de gênero e também a diversidade sexual".

Regular, explica Rosane, é bem diferente de censurar os meios de comunicação. "Nós defendemos a liberdade de imprensa. Mas não pode ser uma liberdade de imprensa que dá o direito a quem detém o meio de falar o que quer, o que pensa, sem que isso nem sempre seja verdade. E você não tem nem sequer o direito de resposta no Brasil. Quando você garante a liberdade de expressão, você está garantindo a liberdade de imprensa e uma coisa mais ampla, que é o direito de todos se expressarem, dos homens, das mulheres, dos negros, dos índios, do setor empresarial, do setor do trabalho, dos movimentos sociais, de quem é governo, porque é assim que é a sociedade brasileira".

Correa defende asilo político a Assange e rebate críticos

O presidente do Equador, Rafael Correa, tem uma postura no mínimo controversa em relação à liberdade de imprensa. Conhecido por processar veículos e atacar verbalmente a mídia de seu país, na semana passada ele teve que rebater críticos que o acusavam de hipocrisia por ter concedido asilo ao fundador do WikiLeaks, Julian Assange. Em entrevista a Jonathan Watts, do jornal britânico The Guardian [24/8/12], Correa defendeu sua atitude em relação à liberdade de expressão no Equador alegando ser necessária para controlar proprietários de jornais e emissoras de rádio e TV que abusam do poder que têm.

O líder equatoriano chegou a comparar suas ações com as investigações realizadas nos tabloides da News International no Reino Unido. “Não vamos tolerar abusos e crimes cometidos diariamente em nome da liberdade de expressão. Isso é liberdade de extorsão e chantagem”, disparou. “A imprensa equatoriana (e latino-americana) não é como a europeia ou a americana, que tem ética profissional. Ela pensa que está acima da lei e faz extorsão e chantagem. Lamento por boas pessoas, em um nível internacional, que defendem este tipo de imprensa”.

Revista censurada

Dias antes de o governo ter concedido asilo a Assange e se promovido como defensor da liberdade de expressão, a polícia equatoriana invadiu os escritórios em Quito de uma das maiores revistas do país, a Vanguardia,e confiscou computadores. Também ordenou que a publicação fosse suspensa por uma semana, como “punição por violação das leis trabalhistas”. Foi a segunda vez em menos de dois anos que a Vanguardia teve seus escritórios invadidos. Seus jornalistas afirmam receber ameaças de morte depois de terem sido criticados pelo presidente durante seu programa semanal na TV.

O diretor editorial da revista, Juan Carlos Calderón, foi processado por Correa e condenado a pagar R$ 20 milhões por “danos morais”, após ter sugerido que o presidente sabia que seu irmão estava ganhando milhões em contratos com o governo. Depois de protestos públicos, o presidente retirou uma ação e emitiu um indulto sobre outra. Ainda assim, justificou o direito de ter aberto uma ação contra Calderón: “Há uma lei escrita proibindo processar um jornalista? Desde quando? Então ninguém deveria processar Murdoch e seus parceiros no crime no Reino Unido?”.

Calderón já havia afirmado ao Guardian que havia se tornado alvo de Correa por ter criticado o governo e acusado o presidente de usar dois pesos e duas medidas. “O governo disse que concedeu asilo a Assange porque ele é perseguido por defender a liberdade de expressão. Mas o mesmo acontece conosco”, disse. “Este não é um país com uma imprensa livre, como descrito por Correa”.

Faça o que digo, não o que faço

O sentimento de Calderón é compartilhado por outros jornalistas. O observatório da imprensa equatoriano Fundamedios descreveu a situação no país como uma “guerra de baixa intensidade com jornalistas” que fica mais forte a cada dia. No ano passado, foram registrados 151 casos de agressão física contra repórteres; em 2009, foram 101. O aumento é, em grande parte, resultado de injúrias constantes a jornalistas feitas por Correa em seu programa semanal de TV, que é exibido em quase todos os canais do país.

A Fundamedios também observou que 17 emissoras de rádio foram fechadas este ano acusadas de desrespeitar regulamentações. Além disso, o governo emitiu, recentemente, novas regras que obrigam servidores de internet a fornecer os endereços de IP de seus usuários para autoridades, mesmo sem ordem de um tribunal. “Há uma grande distância entre o que Correa diz sobre a liberdade de imprensa e a realidade”, afirma César Ricaurte, presidente da organização. “Se Assange fosse equatoriano, eu ouso dizer que já estaria preso”. Grupos internacionais, como o Comitê para a Proteção dos Jornalistas e a Repórteres Sem Fronteiras, também acusaram Correa de tentar depreciar e intimidar críticos.

Estratégia?

Críticos de mídia dizem que a atitude do presidente com relação à mídia – em especial no seu programa semanal – é tão agressiva quanto a adotada pelo venezuelano Hugo Chávez, mas menos destrutiva. “Chávez foi muito mais longe. [No Equador] Há confronto, mas não houve emissoras de TV fechadas, como na Venezuela”, observa Maurice Cerbino, professor da Universidade Andina Simon Bolívar.

Já partidários de Correa alegam que o governo está tentando reequilibrar a mídia, que anteriormente, em sua grande maioria, pertencia a algumas poucas famílias. Quando Correa assumiu o governo, em 2007, havia apenas uma organização de mídia pública, a Radio Nacional. Desde então, foi ampliado o número de emissoras de TV e jornais privados e estatais. Hoje, dizem eles, há mais oportunidade para organizações críticas às autoridades e um maior acesso a funcionários do governo. Os que trabalham na imprensa pública afirmam que o ambiente midiático está mais saudável, pois anunciantes têm menos influência.

Segundo Correa, o asilo político a Assange é uma tentativa de apoio a um indivíduo ameaçado por um estado poderoso. “Não concordo com tudo o que Assange fez. Mas acredito que ele deva ter um processo legal. Ele nunca roubou informação – foi entregue a ele pelo soldado Bradley Manning. Ele apenas a distribuiu. Então por que os jornais que a publicaram também não são penalizados? Assange é apenas um cidadão”, disparou.

Alguns aceitaram os argumentos idealistas do presidente. Outros disseram que ele está tentando tirar o foco do tratamento que dá à mídia equatoriana. Outra teoria é a de que Correa não passa de um oportunista político que sabe dos benefícios de se envolver em uma briga do alto escalão – neste caso, com o Reino Unido. Dentro do próprio governo houve divergências sobre o caso; alguns acham que a ajuda a Assange pode prejudicar o comércio com a União Europeia. Já nas ruas, parece que Correa tem apoio do público.

Auditoria sobre concessões apresenta relatório nesta semana

No próximo dia 19 de maio, a Comissão de Auditoria das Concessões de Freqüências de Rádio e Televisão no Equador apresentará o seu ”informe definitivo” e as “recomendações” ao Ministério de Coordenação dos Setores Estratégicos e ao Conselho Nacional de R&TV sobre os dispositivos para democratizar o setor. A iniciativa é medular e joga na ofensiva contra os reiterados abusos de uma mídia que, lá como aqui, insiste em confundir liberdade de imprensa com a de empresa, tentando – de forma tão histérica quanto estéril – conter a primavera de mudanças que cobre o Continente.

No Brasil, atendendo ao clamor dos movimentos sociais e de uma necessidade histórica, o presidente Lula convocou a Conferência Nacional de Comunicação para os dias 1, 2 e 3 de dezembro, processo que estabelece pontos de contato com a linha do Equador, mas também apresenta seus nós, principalmente frente à disparidade dos instrumentos manipulados pela mídia hegemônica para pautar o debate.

A complexidade do desafio aponta para a necessidade das entidades, partidos e governos populares estreitarem cada vez mais seus laços e compreensões sobre o tema, qualificando sua intervenção e driblando obstáculos e cascas de banana lançados pelos que querem manter intocado o seu latifúndio, improdutivo do ponto de vista social, mas extremamente lucrativo, comercialmente falando. Romper o manto de silêncio que cobre este debate é, portanto, um passo essencial, neste momento.

A experiência equatoriana vista de perto

Para conhecer de perto a experiência equatoriana, visitamos o país em meados de abril, compartilhando vivências e impressões com trabalhadores, técnicos e especialistas da área, o que fortaleceu nossa convicção da sua importância para os desdobramentos da luta política no país, bem como para o aprofundamento da integração e da própria democracia na América Latina.

Na avaliação do brasileiro João Brant, um dos “estrangeiros” que compõem a Comissão de Auditoria instituída pelo presidente Rafael Correa, a decisão equatoriana “aponta no sentido de acertar contas com graves ilegalidades ocorridas em passado recente, marcado pela extrema concentração de concessões públicas nas mãos do sistema financeiro”. Conforme Brant, que integra o Coletivo Intervozes, a definição de colocar em xeque as perversões dessa lógica mercantil “só foi possível pela nova Constituição, que estabelece claramente a separação dos poderes midiático e econômico-financeiro”. “O que podemos pegar de lição é que os equatorianos defendem o direito à comunicação como algo central para a democratização do Estado”, informou.

Tráfico de privatizações por concessões

Conforme esclareceu o pesquisador e psicólogo Oswaldo León, da Agência Latino-Americana de Informação (Alai), a auditoria equatoriana põe a nu a orgia de concessões realizadas entre 1995 e 2008, “o ápice do neoliberalismo, quando a entrega de freqüências, que são um bem limitado, se multiplicaram, de forma comprovadamente corrupta, com as privatizações sendo aprovadas por parlamentares que saíam do Legislativo com a sua concessão debaixo do braço”.

Como medida profilática, foi acertado que a auditoria determinará “a constitucionalidade, legitimidade e transparência das concessões, considerando os enfoques legal, financeiro, social e comunicacional”. A Comissão responsável por averiguar as irregularidades foi estabelecida por decreto no final de 2008, após a aprovação da nova Constituição, onde se “considera o espectro radioelétrico como um dos setores estratégicos que, por sua transcendência e magnitude, influi nos aspectos econômico, social, político e ambiental”, e se reserva ao Estado o direito de administrá-lo, regulá-lo e controlá-lo, “em conformidade com os princípios de sustentabilidade ambiental, precaução, prevenção e eficiência”.

De acordo com o parágrafo primeiro do artigo 17 da Constituição equatoriana, “o Estado deve garantir a liberação dessas concessões públicas através de métodos transparentes e em igualdade de condições, para a administração das emissoras de rádio e televisão públicas, privadas e comunitárias, assim como o acesso a canais livres para a exploração de redes sem fios, fazendo com que prevaleça o interesse coletivo”.

O parágrafo terceiro determina que “será proibido o oligopólio e o monopólio direto e indireto da propriedade dos meios de comunicação e do uso das freqüências, e a participação no controle do capital, investimento ou patrimônio dos meios de comunicação social, de entidades ou grupos financeiros, seus representantes legais, membros da direção e acionistas”.

Dando o tiro de misericórdia nos bancos, que são os donos diletos da mídia naquele país, os constituintes estabeleceram que os antigos beneficiários de concessões públicas que estejam em choque com tais determinações terão o prazo de dois anos para se desfazer delas a partir da entrada em vigência da nova lei – aprovada no final de 2008.

Conexão mídia-banqueiros

Como na maioria dos países da América Latina, no Equador, os meios se encontram concentrados em poucas mãos, “vindo a substituir os partidos da direita neoliberal, fracionados, debilitados e derrotados eleitoralmente”, lembrou o jornalista Eduardo Tamayo, integrante do Fórum Equatoriano da Comunicação. “No que diz respeito à televisão aberta, 19 famílias controlam 298 frequências das 348 existentes (86%). No campo da rádio a propriedade está menos concentrada, no entanto, as mesmas famílias concessionárias das freqüências de TV dominam grande parte das estações de rádio FM. Quarenta e cinco famílias detêm 60% das concessões de rádio AM e FM, que somam 1.196”.

Porém, o mais escandaloso, advertiu Tamayo, “tem sido a relação incestuosa entre os bancos e a mídia, especialmente na televisão. Fidel Egas, um dos principais acionistas do maior banco do país (Banco del Pichincha) é proprietário da cadeia Tele Amazonas, que tem 43 concessões em nível nacional. Além disso, possui as revistas Gestión e Diners”. “Outro grupo econômico poderoso (El Juri – Banco del Austro) é proprietário da rede de televisão Telerama, beneficiária de 14 freqüências.

Outros canais nacionais (Gamavision, Telecentro, Cablevision e várias rádios) que formavam parte de um grupo de 193 empresas de propriedade dos banqueiros foragidos William e Roberto Isaías, foram intimados no ano passado por terem endividado o Estado em 661 milhões de dólares”. Para Tamayo, “a concentração de meios em mãos dos bancos é um aspecto negativo para a democracia, pois se anula a diversidade informativa, os meios deixam de cumprir sua função social e passam a defender os interesses dos grupos econômicos que fazem parte”.

Na avaliação de Oswaldo León, um dos grandes avanços do processo equatoriano, “de vanguarda na democratização dos meios”, é que assume explicitamente a comunicação como um serviço social. “A política do neoliberalismo não se sustentava somente com o garrote imposto pela política econômica, mas pela base ideológica, buscando eliminar do imaginário social o sentimento de coletividade, de nacionalidade, afirmando o individualismo, o salve-se quem puder. Daí não haver nos grandes meios de comunicação espaço para o direito à réplica, condições para uma central sindical se contrapor a determinada medida antipopular. Na verdade, a mídia tentou eliminar toda e qualquer reflexão, acabar com a massa crítica”, acrescentou.

Correa acusa: a mídia é mentirosa

Para Oswaldo León, as ações que vêm sendo levadas a cabo pelo governo equatoriano, com o apoio dos movimentos que atuam pela democratização da comunicação, busca pôr fim ao ”descalabro institucional generalizado”. “O governo não se deixou imobilizar, pois esta era a fórmula do sistema financeiro para inviabilizá-lo. Com apoio da ampla maioria da população, Correa acusa a mídia de mentirosa, citando exemplos de abusos e distorções que são fáceis de reconhecer. O desafio maior, agora, é que este seja um bem público apropriado pelo conjunto da sociedade”, declarou.

Logo após a maiúscula vitória de Rafael Correa e do Movimento Aliança País nas eleições do dia 10 de abril, pudemos constatar que os principais jornais e emissoras de rádio e televisão expuseram com toda a força seus interesses de classe, mantendo uma orientação esquizofrênica, como se nada tivesse acontecido. Pior, mobilizaram um batalhão de repórteres para pinçar todo e qualquer êxito parcial da oposição, tratando de transformá-lo em triunfo magistral. Ao mesmo tempo, “orientavam” o presidente, via editoriais e articulistas, a ter mais “calma” e “moderação” com o seu projeto socialista, já que o país saiu das urnas “dividido”.

Na avaliação da mídia (anti)equatoriana, Correa fez “somente 52% dos votos”, embora tenha aberto margem de 24 pontos sobre o segundo colocado, que fez 28%. Vale registrar que a vitória não encontra paralelo em mais de duas décadas no país.
Diante desse padrão de comportamento, plugado à virtualidade dos desejos e aspirações das transnacionais, do sistema financeiro e dos vende-pátria, um primeiro dado importante a assinalar é a negação da realidade e de qualquer objetividade.

“Os meios de comunicação no Equador perderam muito de sua credibilidade nos últimos anos, em grande parte pela defesa que fizeram do modelo neoliberal e dos governos que o implementaram”, enfatizou a jornalista e escritora Sally Burch, diretora executiva da Alai, lembrando que “o presidente Rafael Correa ganhou com folga as últimas eleições, mesmo tendo toda a mídia contra ele, em oposição frontal”. Reagindo à campanha midiática, explicou Sally, o presidente tem apresentado argumentos e fatos inquestionáveis, que acabam desacreditando constantemente o discurso monocórdico de jornais, rádios e tevês contra o governo.

O direito constitucional à comunicação

A forma com que a mídia nega a realidade e se esmera em moldar no  imaginário coletivo valores que atentam contra os interesses nacionais e populares foi uma das causas pelas quais na nova Constituição se esquadrinha o tema comunicacional. Conforme esclareceu Eduardo Tamayo, “os direitos à comunicação, à informação e à cultura, se incorporam à Constituição no mesmo nível que outros direitos igualmente vitais para o ser humano como são a saúde, a educação, o bem-viver, e outros”. Direito plenamente reconhecido para as pessoas, tanto em forma individual como coletiva, a “uma comunicação livre, intercultural, inclusiva, diversificada e participativa, em todos os âmbitos da interação social, por qualquer meio e forma, em sua própria língua e em seus próprios símbolos”.

Na avaliação dos movimentos pela democratização, se supera a visão limitada e instrumental da comunicação que a identificava como “meios”, resgatando a dimensão interativa e participativa da mesma, ou seja, ”que as pessoas não somente têm direito a receber programas e serviços informativos, mas que também têm direito ao uso e acesso aos recursos da comunicação”. Para as diversas comunidades que compõem o país, se reconhece o direito a “criar seus próprios meios de comunicação social em seus idiomas e o acesso aos demais sem nenhuma discriminação”, garantindo que o direito à “dignidade e diversidade de suas culturas, tradições, histórias e aspirações” se reflitam na educação e na mídia.

Assim, de aplicar-se o espírito que prevalece na Constituição, este processo deve levar a que o Estado reverta as freqüências entregues irregularmente a meia dúzia de famílias e as destinem fundamentalmente aos setores públicos e comunitários, “a fim de romper o desequilíbrio atualmente existente”, esclareceu Tamayo. Segundo ele, “o desafio para universidades, organizações sociais e coletivos que aspiram contar com freqüências para criar seus próprios meios é enorme, pois não somente deverão dispor da infraestrutura e dos equipamentos necessários – recursos que sempre são escassos -, mas também deverão desenvolver políticas estratégias e capacidades profissionais e técnicas para operá-las”.

A invisibilidade a que é relegado o processo equatoriano e o seu inequívoco compromisso com a diversidade e a pluralidade – palavras malditas para o dicionário entreguista e desintegracionista da mídia hegemônica -, contrasta com a colcha de retalhos e mentiras que tecem seus donos para desqualificar a construção da democracia real no Continente. Afinal, crêem – e praticam diuturnamente seu fundamentalismo – que contra Lula, Rafael, Chávez, Evo, Lugo e Cristina, vale tudo.

Título original: "Linhas e nós do Equador e Brasil para democratizar a mídia".