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Lei de Direito Autoral e educação: debate urgente

[Título original: A importância da Reforma da Lei de Direito Autoral para a educação brasileira]

A Reforma na lei de Direito Autoral é de fundamental importância para educação brasileira. Ela coloca desafios objetivos não apenas para professores e estudantes, mas para toda a classe trabalhadora, tendo em vista o papel que cumpre o acesso à educação para o desenvolvimento, notadamente no que se refere à redução das desigualdades sociais.

A atual lei de direitos autorais não consegue aplicabilidade prática: ela deveria cumprir o papel facilitar o acesso ao conhecimento por parte da população de forma equilibrada aos interesses e estímulos dos autores na produção cultural e científica, mas, dado o peso absolutamente dominante dos intermediários, dos grandes selos de música e das grandes editoras acadêmicas (que, por motivos óbvios, buscam manter o controle sobre à produção cultural), a sociedade é criminalizada enquanto a indústria faz papel de vítima.

O direito ao acesso à informação está direta e explicitamente vinculado à educação. A Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional (LDB) estabelece como princípios “a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”, bem como “o pluralismo de idéias e concepções pedagógicas”.

Há um desconhecimento no meio acadêmico em torno da pressão exercida pelas editoras para impedir que estudantes façam cópias de partes de livros, além dos entraves colocados pelas disputas e interesses do mercado editorial, do qual o livro didático é um dos carros-chefes: como aponta Pablo Ortellado na publicação “Os direitos autorais e a educação“ a comercialização de livros didáticos é responsável por cerca de 60% do mercado editorial brasileiro, sendo que as quatro maiores empresas concentram 70% do mercado. Eles respondem por 37% dos títulos, 61% dos exemplares e 42% do faturamento de todo mercado. Metade desse setor é destinada a compras governamentais por meio de diversos programas, mas, sobretudo, do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Há ainda a influência de diretrizes do Banco Mundial, que “privilegia programas de livros didáticos para conceder empréstimos aos países da América Latina”.

Apesar do fato da legislação autoral e os critérios de comercialização de livros (inclusive os didáticos) restringirem o exercício desses direitos, o debate em torno destas questões tem sido tratado de forma apática pelos seus maiores interessados: estudantes, professores, movimento estudantil, sindicatos e instituições de ensino (independente se públicas ou privadas). O seu envolvimento e participação neste debate poderia determinar importantes conseqüências para a futuro da educação brasileira.

Direitos autorais e educação

A ampliação desse debate está diretamente vinculada ao desenvolvimento acelerado das tecnologias de informação, em grande medida, relacionadas à informática e ao desenvolvimento de equipamentos de reprodução de som e imagem, ao surgimento de novas mídias e à mobilização pelo reconhecimento dos direitos de grupos historicamente excluídos do acesso à informação (a exemplo dos portadores de necessidades especiais).

Na “grande mídia” (quando o assunto é tratado), sua abordagem limita-se à restrição do acesso ao conteúdo de livros, cujo foco é o ensino superior – sobretudo no que se refere à proibição da reprodução de conteúdos fracionados das obras. A Lei 9.610/98 é invocada continuamente para justificar a legitimidade das ações de repressão à circulação livre de obras, literárias ou audiovisuais, como instrumento de defesa das empresas, consideradas autores. No entanto, ela é pouco observada nos aspectos que garantem os interesses dos usuários. A despeito da miopia desta perspectiva, considerações importantes devem ser feitas:

(1) A primeira é que, embora o termo seja “direito autoral”, em grande medida, o que se tem preservado é o direito ao lucro das editoras. Os/as autores/as pouca ou nenhuma autonomia têm para decidir sobre o produto (a mercadoria) realizado por meio de seu trabalho. Sua arte, criatividade e retorno no mercado torna-se algo alienado por empreitada. O direito autoral tem servido aos “detentores” de direito autoral. Daí o movimento contemporâneo de produções independentes que utilizam as novas potencialidades das tecnologias da informação para fugir, substituir ou suprimir intermediários na cadeia produtiva cultural.

(2) O segundo aspecto é o argumento de que a livre reprodução reduziria as vendas o que, consequentemente, desestimularia a produção. Ao contrário, têm se evidenciado empiricamente que o livre acesso às obras não apenas estimula sua compra, como permite ampliar a circulação dos textos, inclusive em âmbito internacional. Para além de uma perspectiva que não consegue vislumbrar um palmo à frente da “propriedade” e da “forma mercadoria” – deveríamos enfatizar o valor incomensurável do livre acesso ao conhecimento para o desenvolvimento humano-civilizatório.

(3) Há ainda uma necessária reflexão a ser feita sobre a comercialização de produtos elaborados a partir de conteúdos financiados com recursos públicos. Sobre o tema, o GPOPAI/USP (Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação divulgou um estudo que aponta as contradições que sustentam o mercado de livros técnicos e científicos. São obras produzidas a partir de pesquisas financiadas por agências estatais de fomento e que estão impedidas de circular livremente. Não raro, é possível encontrar pessoas que, mesmo tendo recebido bolsas de auxílio ao longo de anos para produzir a pesquisa, não permitem a circulação de suas teses ou dissertações porque pretendem “publicá-las”, ou seja, entregar o conteúdo elaborado com financiamento público para exploração privada. Cabe ressaltar que, nesses casos, inclusive, o/a autor/a já recebeu pelo trabalho ao longo do processo.

Os passos e descompassos da reforma

O MinC promoveu diversos seminários que constituíram o Fórum Nacional de Direito Autoral, os quais, em tese, deveriam ser um espaço de interlocução com diferentes atores da sociedade interessados na reforma. Apesar de suas limitações, eles permitiram conhecer os diversos pontos de vista envolvidos e estão integralmente disponibilizados no site do MinC: http://blogs.cultura.gov.br/direitoautoral/.

Após esta fase de consulta pública, foi produzida uma proposta inicial, cujas linhas gerais foram apresentadas pelo MinC em reuniões setoriais, envolvendo grupos da sociedade civil. Apesar do relativo atraso (tendo em vista que o cronograma original tinha como meta apresentar a proposta no início de 2009), a lei finalmente foi enviada para a Casa Civil que, antes de publicar o texto para consulta pública deverá fazer novas consultas com os  Ministérios (embora o texto já tenha sido discutido e aprovado no âmbito do GIPI – Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual).

Um esboço da proposta pode ser visto no documento que o ministério produziu chamado “Diagnostico das discussoes do Fórum Nacional de Direito Autoral e subsidios para o debate“. Há também um resumo da proposta em inglês (Copyright Law Reform in Brazil: Anteprojeto or Anti-project?) feita por Ralf Volker Grassmuck (Gpopai) para o IP-Watch:.

A perspectiva é que a consulta pública tenha início por volta do dia 15 de março.

Avanços, limites e obstáculos da reforma para a educação brasileira

Independente se no âmbito da educação pública ou privada, a Reforma da lei de Direito Autoral poderá colocar importantes conseqüências para o seu futuro. No esboço apresentado pelo MinC é sugerido que seja permitido “o uso de obras protegidas, sem necessidade de autorização dos titulares e remuneração por parte de quem as utiliza em alguns casos”. Destacamos os seguintes trechos:

* “cópia privada, ou seja, a reprodução, por qualquer meio ou processo, de qualquer obra legitimamente adquirida, desde que feita em um só exemplar e pelo próprio copista, para seu uso privado e não comercial; e a reprodução, por qualquer meio ou processo, de qualquer obra legitimamente adquirida, desde que a mesma se destine a se tornar perceptível a partir de equipamento, programa de computador ou suporte distintos daqueles para os quais a obra foi originalmente destinada, quando da sua aquisição pelo copista, e seja para seu uso privado e não comercial e na medida justificada para o fim a se atingir, ou seja, para fins de portabilidade ou interoperabilidade”

* “a reprodução, sem finalidade comercial, de obra literária, fonograma ou obra audiovisual, cuja última publicação não conste mais em catálogo do responsável por sua exploração econômica, bem como não tenha uma publicação mais recente disponível e, tampouco, não exista estoque disponível da obra ou fonograma para venda”

Em tese, a aprovação destas propostas permitiriam cópias privadas integrais das obras. A formulação de que a cópia teria de ser feita pelo próprio copista, sem finalidade de lucro, entretanto, dá margem a diversas ambigüidades: o copista poderia solicitar cópia à terceiros?

Em outros trechos encontramos as seguintes propostas:

– a reprodução necessária à conservação, preservação e arquivamento de qualquer obra, sem finalidade comercial, desde que realizada por bibliotecas, arquivos, museus, cinematecas e demais instituições museológicas, na medida justificada para atender aos seus fins

– a comunicação e a colocação à disposição do público de obras intelectuais protegidas que integrem as coleções ou acervos de bibliotecas, arquivos, museus, centros de documentação, cinematecas e demais instituições museológicas, para fins de pesquisa, investigação ou estudo, por qualquer meio ou processo, no interior de suas instalações ou por meio de suas redes fechadas de informática

Poderiam as instituições de ensino (públicas ou privadas), a partir da aquisição de um único exemplar para o seu acervo, digitalizar conteúdos e disponibilizá-los em seus servidores para livre acesso de seus usuários?

Mais que isso: foi criado um capítulo exclusivo sobre reprografia, que estabelece uma espécie de gravame para fotocópias: “sugerimos a inserção de dispositivos referentes aos direitos reprográficos e a obrigatoriedade de licenciamento para a reprodução, total ou parcial, de obras literárias por meio de fotocopiadora ou processos assemelhados por estabelecimentos comerciais, com a exigência do pagamento de uma retribuição aos autores das obras reproduzidas. Além de possibilitar uma verdadeira gestão coletiva de direitos reprográficos em benefício dos autores, espera-se finalmente solucionar o conflito entre os titulares das obras literárias e os docentes e discentes das instituições de ensino”

Em síntese, isto significa que, de cada cópia que se tire, será arrecadado um valor para ser repassado para os titulares do direito autoral (não necessariamente os autores), penalizando o uso das fotocópias, meio adotado amplamente nas universidades brasileiras. Esse sistema não é compulsório, de forma que editoras ou associação de editoras poderão simplesmente não ingressar no sistema.

Outra questão (indireta) está ligada ao período de proteção das obras, pois temos uma das leis de direitos autorais mais restritivas e conservadoras do mundo: embora a Convenção de Berna e o acordo TRIPS nos obriguem a proteger as obras por 50 anos após a morte do autor (o que já é um absurdo), a proposta manterá o prazo de proteção por inexplicáveis 70 anos, reduzindo o espectro do domínio público em 20 anos. São 20 anos de produção cultural e científica que, injustificadamente, permanecerá como monopólio de editoras e gravadoras!

Por onde começar?

– Assine a lista do Gpopai: http://lists.gpopai.org/listinfo.cgi/sociedade-civil-gpopai.org

– Há um grupo criado para discutir a reforma no site da Cultura Digital do MinC: http://culturadigital.br/groups/reforma-da-lei-de-direito-autoral

– A Carta São Paulo que pede algumas reformas no sentido de ampliar o acesso ao conhecimento ainda pode ser assinada por quem apóia a proposta: http://stoa.usp.br/acesso

– Está disponibilizado no site do Gpopai todo o debate parlamentar que levou à lei atual de DA de 1998. Vale a pena estudar para conhecer as forças atuaram no Congresso naquela ocasião: http://www.gpopai.usp.br/wiki/index.php/DebateDireitoAutoral1998

– A Consumers International faz um levantamento atual das legislações de Direito Autoral, no que elas prevêem de acesso ao conhecimento. É um recurso interessante para pensarmos tudo o que poderia estar na nossa lei. Além disso, o ranking mostra o atraso que é a lei brasileira no quesito acesso ao conhecimento. No ano passado, entre 16 países, o Brasil ficou em 13o lugar! http://a2knetwork.org/watchlist-activity

É preciso que a sociedade brasileira se posicione, pois será fortemente afetada por estas medidas!

* Arakin Monteiro é doutorando em ciências, integrante do GPOPAI/USP e especialista em economia política da internet.