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Câmara Americana de Comércio mira em público infantil

A estratégia da indústria de entretenimento na defesa de seus interesses ganhou em 2007 uma nova face. Sob o lema “Combater a pirataria aprende-se na escola”, a Câmara Americana de Comércio – AmCham, com o apoio da Associação Brasileira das Empresas de Softwares (ABES), Associação Brasileira de Produtos e Equipamentos Ópticos (ABIOTICA), Business Software Alliance (BSA), Motion Picture Association (MPA), Interfarma, Microsoft e Puma, avançou desta vez sobre escolas de ensino fundamental de São Paulo. 

O projeto de um curso anti-pirataria para crianças foi lançado no início deste ano e já foi trabalhado em cinco escolas, em formato piloto. Segundo Nayana Rizzo,  responsável pelo projeto na AmCham, pesquisas identificaram a faixa etária dos 16 aos 24 anos como a que mais consome produtos piratas. Os dados, porém, fizeram com que a AmCham se planejasse para “resolver o problema em suas raízes”, de modo que o curso foi direcionado às crianças de 7 a 15 anos.

Nayana conta que projeto divide-se em fases: inicialmente, há uma pesquisa com a comunidade escolar e depois palestras junto aos professores em que se apresentam as diferenças entre os produtos originais e os piratas, além dos malefícios que estes últimos podem causar. A partir de então, cabe aos professores, com o auxílio de uma apostila oferecida pela AmCham, retransmitir os conteúdos para os estudantes.

A iniciativa do curso recebeu críticas de setores acadêmicos e movimentos que lutam pela liberdade do conhecimento, que questionam a entrada das empresas nas escolas para defender seus negócios. Para eles, isso significa que o interesse privado está sendo privilegiado no debate sobre propriedade intelectual.

De acordo com Pablo Ortellado, professor de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo, a maioria dos setores envolvidos no curso têm na propriedade intelectual, especificamente no direito autoral, a base de seus negócios. “O direito autoral é um monopólio de exploração exclusiva”, afirma Ortellado. "Com a concentração dos meios de produção, os autores têm que concorrer entre si para ter acesso aos intermediários, que detêm os para divulgar suas obras".

Um dos argumentos utilizados no curso anti-pirataria da AmCham é de que a violação da propriedade intelectual estaria causando prejuízos para a indústria e, conseqüentemente, a evasão de impostos do país. Dessa forma, a defesa do direito autoral se tornaria um dever cívico. Ortellado, entretanto, contesta a firmação, afirmando que o cálculo feito pelas empresas baseia-se em uma premissa errada. "O comprador de um CD de um real não é o mesmo comprador de um CD de trinta reais", esclarece. Segundo ele, não há estudos que provem que o comércio de produtos piratas e o compartilhamento de produtos interfira na arrecadação destas empresas.

Para sua versão piloto, o projeto contou com o apoio da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. A Escola Josephina Maria Barbosa, que fica no bairro de Jardim Alto do Riviera – zona leste de São Paulo -, foi a única da rede pública estadual a participar. No dia 9 de novembro, recebeu a visita de representantes da AmCham para a apresentação de um teatro com a temática da pirataria pelos alunos. “Eles disseram que o resultado foi  satisfatório”, conta Márcia Paredes, atual diretora da escola. “Foi um desafio porque descobrimos que muitos dos moradores da região, os pais dos alunos, sobrevivem deste comércio informal”, confessa.

Direito autoral x acesso ao conhecimento

Huguette Faria, da Coordenadoria de Ensino e Normas Pedagógicas da Secretaria de Educação, conta que nas demais escolas o conteúdo apresentado pela AmCham sofreu algumas modificações e foi inserido no projeto de educação fiscal que a Secretaria mantém em parceria com o Ministério da Fazenda. Segundo ela, este ano o projeto teve um foco maior no combate a pirataria, por solicitação do Comitê Intersecretarial de Combate à Pirataria do Estado de São Paulo.

Ortellado, que integra o Grupo de Políticas Públicas de Acesso à Informação – GPOPAI da USP, explica que, com as novas tecnologias de informática e o advento da Internet, os autores dependem menos de intermediários e encontram meios de abdicar do direito autoral em benefício do interesse público através de licenças como Creative Commons, por exemplo. Segundo ele, ao apresentar apenas uma perspectiva, a educação sobre propriedade intelectual pode ter um efeito “anti-pedagógico”. “Pode ter o efeito negativo de persuadir as crianças de que as práticas de compartilhamento e cooperação devam ser condenadas", afirma.

Ao contrário de Ortellado, Huguette acredita que não há riscos de que apenas um lado do debate seja apresentado aos estudantes. “Para nós é muito fácil falar de propriedade intelectual porque a gente trabalha justamente com a criatividade”, afirma. “O que tentamos explicar às crianças é que se você é autor de uma coisa, você tem que preservá-la e não deixar ninguém roubar sua criação individual”.

Mariana Tamari, do Coletivo Epidemia, que lida com questões de propriedade intelectual, discorda. Para ela, o compartilhamento da criação é essencial para o avanço do conhecimento. “Quando não se tem acesso à produção criativa de outras pessoas ou anteriores ao que se está criando, muito dificilmente será possível produzir alguma coisa de qualidade”. Ela lembra que a produção artística e científica são possíveis apenas com um acúmulo intelectual anterior.

O próprio processo de aprendizagem, pelo qual as escolas são grandes responsáveis, baseia-se no compartilhamento do conhecimento e, muitas vezes, sofre com restrições decorrentes da propriedade intelectual.  Como exemplo, Ortellado lembra o embate ocorrido em 2005, quando editoras se organizaram para impedir a reprodução de livros. “As diferentes interpretações da lei de direito autoral refletiam a disputa em torno do interesse dos estudantes de fazerem cópias de livro e do interesse das editoras de restringi-la como forma de aumentar suas vendas”. De acordo com a lei brasileira de direito autoral, aprovada em 1998, a reprodução de livros protegidos é permitida apenas depois de setenta anos da morte do autor.

Para Ortellado, um curso para debater a questão do acesso ao conhecimento e da propriedade intelectual deveria, em primeiro lugar, fazer uma diferenciação entre a produção colaborativa sem fins comerciais e a indústria paralela ilegal. "É necessário valorizar este processo de compartilhamento de informações e de produção de novas informações de maneira colaborativa, o que é um avanço do ponto de vista cultural e científico", conclui.

O curso da AmCham é apenas uma das atividades promovidas pela força tarefa de combate à pirataria da entidade. Esta reúne empresas do setor de entretenimento, ótica, software e tecnologia. Segundo a página oficial da entidade na Internet, a força tarefa tem como missão estimular o debate e a disseminação da cultura de proteção aos direitos da propriedade intelectual.


O problema com violação de propriedade intelectual no Brasil já havia sido identificado pelo governo dos Estados Unidos em 2002, ano em que o país foi incluído na Lista de Prioridades de Vigilância (Priority Watch List). Deste então, diversas iniciativas de combate à pirataria foram lançadas, já que, por figurar na “lista suja de pirataria intelectual”, o Brasil teve seus negócios com os Estados Unidos ameaçados.

O projeto de 2007 encerra-se oficialmente no dia 26 de novembro, com uma premiação para os participantes e o reconhecimento de parceiros. Depois de aplicar o projeto piloto em cinco escolas, os planos da AmCham para 2008 são mais ambiciosos: a previsão é expandi-lo para 25 escolas de ensino fundamental das redes pública e privada. Huguette não confirma que a parceria com a Secretaria de Educação se estenderá para o próximo ano. Segundo ela, a secretaria ainda está em fase de planejamento e passa por algumas mudanças.