Por Veridiana Alimonti*
No último dia 14 de maio, foi lançado o Canal da Educação, um dos canais públicos previstos no Decreto 5.820/2006, que definiu o padrão de TV digital no Brasil e estabeleceu diretrizes para a transição do sistema analógico. A Portaria que regulamenta o canal (2.098/2015) foi assinada entre Ministério da Educação e Ministério das Comunicações. Contudo, o que deveria ser concebido como um canal público parece inaugurar outro capítulo de confusões com o sistema estatal na televisão brasileira.
A previsão de novos canais públicos foi uma das poucas boas notícias que vieram com o decreto da TV digital. A definição do padrão japonês, ainda que com o Ginga brasileiro, e a consignação às emissoras existentes de uma faixa adicional do espectro com tamanho que, na tecnologia digital, permitiria a transmissão de bem mais do que uma programação, marcaram a escolha do governo federal pela alta definição em detrimento de maior pluralidade na televisão. Apesar disso, o decreto de 2006 estabeleceu a criação de ao menos quatro novos canais digitais: do Poder Executivo, da Cidadania, da Cultura e da Educação.
Embora a exploração desses canais tenha sido atribuída ao Poder Público federal, desde aquele momento os canais da Cidadania, da Cultura e da Educação foram compreendidos como parte do sistema público de radiodifusão. Isso está explícito numa portaria de 2009 que reserva canais digitais para o que passou a ser chamado de Serviço de Televisão Pública Digital. A portaria veio depois da edição da Lei 11.652/2008, que criou a EBC (Empresa Brasil de Comunicação) e instituiu princípios e objetivos à radiodifusão pública.
Qual o problema, afinal?
A recente regulamentação do Canal da Educação indica que tanto sua gestão quanto a definição de sua programação serão essencialmente estatais – como ocorre hoje com os canais dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A Portaria Interministerial que o regulamenta estabelece que o canal será consignado ao Ministério da Educação, com a difusão de até cinco faixas diferentes de programação no sistema digital. O conteúdo de todas elas, ainda não está definido mas se sabe que uma das faixas será voltada para a educação básica, com a exibição de programação da TV Escola, produzida diretamente pelo MEC, e de secretarias estaduais e municipais de educação. Outra faixa terá como prioridade o ensino superior, cuja programação será gerada principalmente por universidades e centros de formação federais, que nem sempre gozam de autonomia em relação à administração pública.
Ainda não há definição sobre o uso das demais faixas, mas tal tendência é preocupante quando consideramos o que deveria ser entendido como uma televisão pública. Num sistema como o previsto pela Constituição brasileira, que divide a comunicação entre estatal, pública e privada, a comunicação pública não é aquela feita diretamente pelo Estado, mas pela sociedade, com diversidade e autonomia na sua gestão. A participação social e a independência em relação ao Estado estão no cerne dessa definição.
Não à toa, a Lei 11.652/2008 consagrou como princípios da radiodifusão pública, mesmo quando prestada por órgãos ligados ao Poder Executivo:
– a autonomia em relação ao governo federal para definir sua produção, programação e distribuição de conteúdo;
– e a participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do sistema público de radiodifusão, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira.
A portaria que regulamenta o Canal da Educação prevê a criação de uma Ouvidoria e de um Conselho, de natureza consultiva, para o canal. Ele deve ter participação do governo federal, do Poder Legislativo e de representantes da sociedade civil. Ainda que estas sejam garantias formais importantes, em si elas não asseguram a efetividade do canal como veículo da sociedade. Tudo dependerá de como serão definidas suas instâncias de gestão, de como serão escolhidos os integrantes da Ouvidoria e do Conselho e de como será decidida a sua produção e programação.
Nesse sentido, o Canal da Cidadania, também previsto no decreto da TV Digital, já regulamentado e em fase mais avançada de consignação de canais, apresenta um modelo mais interessante. Ele está igualmente planejado para se dividir em diferentes faixas de programação. Parte delas será destinada à veiculação das atividades dos Poderes Públicos municipal e estadual, podendo incluir, ainda, uma faixa para União e serviços de governo eletrônico. Todavia, já foi definido que duas de suas faixas serão destinada à veiculação de programas produzidos pela comunidade do município ou que tratem de questões relativas à realidade local. A responsabilidade por essa operação será de associações comunitárias definidas em processo seletivo.
No caso do Canal da Educação, a destinação de suas faixas adicionais ainda não está definida. Nada se fala também quanto ao aproveitamento desse espaço para potencializar iniciativas importantes de comunicação já em funcionamento, como o Canal Saúde, emissora de TV do Sistema Público de Saúde (SUS), acessível por antena parabólica digital. Enquanto iniciativas como essa são desprezadas nos planos dos canais dito públicos, as emissoras comerciais investem em transmitir esse tipo de informação, como se vê na faixa matinal da Rede Globo.
O exemplo reforça a necessidade de se discutir com a sociedade os rumos do Canal da Educação. Sua concepção até agora ficou restrita a órgãos de governo, como as secretarias de educação e associações ligadas à direção das instituições de ensino, não havendo um debate mais amplo sobre o tema dentro do próprio campo da educação.
Financiamento
Outra questão colocada é o financiamento do Canal. Na faixa de educação superior, por exemplo, quais os recursos disponíveis para as universidades públicas federais produzirem a programação considerando os inúmeros problemas de repasse de recursos do MEC para a manutenção das instituições federais?
A questão do financiamento não para por aí. Ela atinge os canais públicos de maneira geral. Atualmente, a infraestrutura para a migração para a transmissão digital representa um pesado investimento na instalação de antenas e torres por todo o país. O governo federal chegou a dar os primeiros passos para a construção de uma infraestrutura única de transmissão para a televisão pública digital, o chamado de Operador de Rede. Porém, o projeto foi abandonado – em princípio por falta de recursos – e não há notícias de que algo semelhante venha a ser desenvolvido. Isso compromete seriamente a qualidade e a penetração dos canais públicos no sistema digital.
O Canal da Educação é, portanto, apenas mais um intrincado capítulo da novela que é a consolidação de um sistema público de radiodifusão no país. Nela, sucedem-se momentos críticos que envolvem a ausência de um projeto coordenado para a comunicação pública, a recorrente confusão entre sistema estatal e público, e entraves e desafios ligados ao financiamento. Em verdade, esses problemas refletem algo anterior e mais profundo – a histórica indefinição do que seria o sistema público brasileiro e o fato de sua consolidação nunca ter realmente entrado na ordem do dia das políticas de comunicação do país.
Sem dúvida, o lançamento do Canal da Educação é uma boa nova em termos da veiculação de programações voltadas à formação crítica do indivíduo, para sua qualificação para o trabalho e para a universalização dos direitos à educação, à informação, à comunicação e à cultura. No entanto, ele só cumprirá o seu papel se estiver fundamentado nos parâmetros centrais da comunicação pública: efetiva participação social e autonomia de gestão e de recursos. Será melhor se pudermos escrever o roteiro do que ainda vem pela frente com mais e mais diversas mãos.
* Veridiana Alimonti é advogada e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.
Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.