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Massacre nos presídios e o reforço da mídia à cultura da violência

Violência e medo são valores-notícia do jornalismo brasileiro e a economia criminal absorve estes elementos para desenvolver sua indústria

Por Tamara Terso*

“Foi mídia no mundo todo, arrancamos várias cabeças”.

Esta frase, que circulou nas redes sociais nas últimas semanas, faz parte de um funk supostamente composto pela facção criminosa Família do Norte (FDN).

O grupo é acusado, juntamente com o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), de ser responsável pelos massacres nos presídios de Amazonas e Roraima (a agora Rio Grande do Norte).

Ele é chave para entender que o fenômeno da violência tem um circuito maior do que a carnificina presenciada nos primeiros dias de 2017, ponta do iceberg da crise vivida na política de segurança pública brasileira.

Desde que os conflitos nos presídios do Norte foram iniciados, a nacionalização da violência midiática compôs a paisagem de violação dos direitos humanos dos presidiários e familiares envolvidos ou não nos episódios de massacre.

As violações, que na maioria dos casos começam com prisões arbitrárias e provisórias, falta de acesso à Justiça, estrutura desumanizada nas detenções, invariavelmente também são encontradas nas coberturas realizadas em TVs e jornais.

Na cobertura dos acontecimentos recentes sites e jornais impressos expuseram corpos sem vida. Foram cabeças, pernas e braços por todos os lados “dando mídia” na primeira página, galerias de fotos e vídeos sem cortes.

A prática de exibir muito sangue e identificar testemunhas se tornou padrão na cobertura das chacinas pelo jornalismo de referência, como o do Estado de S.Paulo, e até mesmo da ala mais ou menos progressista como Folha de S.Paulo e El País Brasil.

Parece que na ânsia de noticiar em primeira mão os acontecimentos, os jornais esqueceram-se das normas que orientam as práticas jornalísticas (Código de Ética dos Jornalistas), o direito à privacidade e à imagem, garantidos pela Constituição, e mesmo alguns marcos internacionais sobre a preservação da dignidade humana.

A Carta Magna brasileira diz em seu art. 5º, inciso X, que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Ainda em seu art. 5º, inciso III, a Constituição assegura ao preso o respeito à integridade física e moral e certifica que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.

O direito de informar à sociedade, constitucionalmente garantido aos veículos de imprensa, não pode, portanto, confrontar o direito à privacidade. Há que se promover o equilíbrio entre ambos.

Este equilíbrio, no entanto, tem estado longe dos veículos de mídia brasileiros. Há alguns anos temos denunciado, por exemplo, a veiculação indevida em programas de televisão de pessoas que estão sob a tutela do Estado e a incitação à violência.

Algo que ocorre principalmente nos programas policialescos, que entram nas delegacias com o aval das secretarias de segurança pública, expõem indevidamente vítimas e agressores e desrespeitam a presunção de inocência dos acusados.

Se levarmos em conta que 40% dos detidos hoje no sistema penitenciário brasileiro sequer foram julgados pelos crimes dos quais estão sendo acusados (Relatório Uso da Prisão Provisória nas Américas CIDH/OEA, 2014), implica dizer que parte significativa dos que estão sendo expostos nos veículos de mídia são suspeitos e não criminosos.

Esta tem sido uma prática institucionalizada pelas redações brasileiras, sejam de jornais impressos ou programas de TV.

Para além dos direitos individuais da pessoa humana, há algo nestas coberturas que deve ser levado em conta, e que se expressa pela frase que abre este texto.

Até que ponto noticiar intensamente a ação de facções criminosas, dando visibilidade aos atos de violência extrema, contribui para uma discussão aprofundada sobre o sistema carcerário brasileiro?

Será que a espetacularização da notícia não serve apenas para reforçar uma cultura de violência, dando ao crime organizado, inclusive, maior poder de barganha junto aos poderes institucionalizados?

Infelizmente, violência e medo se consolidaram como valores-notícia do jornalismo brasileiro e a economia criminal absorve estes elementos para desenvolver sua indústria, que cresce a passos largos e tem tentáculos no sistema político, econômico, judiciário e também nos meios de comunicação (ou não é comum políticos eleitos serem apresentadores de programas policialescos que violam os diretos humanos ao mesmo tempo em que são financiados por empresas administradoras de presídios, que por sua vez convivem harmoniosamente com o crime organizado?).

Está ligação perigosa é um prato cheio para o reforço da política de guerra às drogas e encarceramento em massa, rentável para poucos e à custa de vidas pobres, jovens e negras.

O discurso da violência é um fator determinante para que esta economia se mantenha em pleno desenvolvimento e reforce a afirmação genocida de que “bandido bom é bandido morto”.

Não é à toa que vários estados com grandes índices de violência, encarceramento e mortes – São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Distrito Federal – são os que têm os programas que mais violam direitos humanos, com recorde de denúncias na plataforma “Mídia sem Violação de Direitos”, organizada pelo Intervozes, em parceria com a ANDI Comunicação e Direitos e apoio da Fundação Rosa Luxemburgo.

Daí, chegamos à conclusão que a aderência de 57% dos entrevistados à frase “bandido bom é bandido morto” (pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2016), não vem apenas da violência concreta vivida por homens e mulheres das grandes e pequenas cidades, mas do reforço cotidiano narrativo-simbólico de sangue, cabeças e corpos dando mídia nas TVs, PCs e rádios país afora.

Para estancar o sangue nos presídios, o governo de Michel Temer anunciou a construção de cinco novas prisões federais e um conjunto de outras medidas de cunho estritamente punitivista e bélico.

Parece que as ações, um tanto quanto (des)governadas, continuarão, contudo, apostando em tapa-buracos que não levam em consideração a macro-organização da violência, no qual a mídia tem um papel fundamental no reforço ou desconstrução.

*É jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

Comunicação apresenta agenda de lutas na Assembleia dos Povos em Resistência

No terceiro dia do Fórum Social das Resistências aconteceu a tradicional Assembleia dos Povos em Resistência, realizada no auditório Araújo Vianna em Porto Alegre, quinta-feira dia 19. A atividade apresentou o resultado de treze plenárias que aconteceram pela manhã e abrangeram os temas: de Comunicação e Cultura Urbana, Direito Humanos, Defesa dos Serviços e Servidores Públicos, Saúde e Defesa do SUS, Tribunal dos Povos e Matriz Africana, Mulheres em Resistência, Juventude, Democracia, Reforma no Sistema Político e Cidades Sustentáveis, Educação – Escola sem Mordaça e os velhos e novos sistemas de resistências econômicas. O objetivo da assembleia é apresentar as reflexões feitas nas plenárias, que foram orientadas por três perguntas: contra o que e contra quem nós resistimos; quais os valores que nossa luta/causa oferecem para um outro mundo possível e; qual a agenda que propomos para para 2017.

As pautas da comunicação foram apresentadas na assembleia por Bia Barbosa, secretária geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e por Cristina Charão, jornalista da TVE – emissora pública vinculada a Fundação Cultural Piratini e que passa por um processo de desmonte promovido pelo governo do estado do Rio Grande do Sul.

Charão convocou as entidades representadas no evento a se somarem a luta em defesa da Empresa Brasil de Comunicação e das emissoras públicas nos estados. “Precisamos que a comunicação pública seja percebida pela sociedade como um direito e manter um compromisso com aprofundamento desse modelo de comunicação, que é um projeto em construção, e que começou a engatinhar nos últimos anos e vem sofrendo ataque nos últimos meses. Comunicação pública não é apenas um tema, é um fundamento”, reforçou.

Bia Barbosa, que tem acompanhado a pauta nacional, informou que uma agenda conservadora tem sido aprovada a “toque de caixa” no Congresso Nacional. “Essa agenda é o preço do golpe que está sendo pago pela população aos grandes meios de comunicação e de telecomunicações do país que ajudaram a consolidar o impeachment”, afirmou.
Barbosa destaca dois temas principais nessa linha: O projeto de lei que altera a lei geral das telecomunicações (LGT), que entrega cerca de 100 bilhões em infra-estrutura pública para as operadoras de telecom sem contrapartida das empresas. E a possível limitação do acesso à internet fixa, anunciada pelo ministro das comunicações, Gilberto Kassab, na semana passada. “Sabemos o impacto que essas duas medidas podem ter, no caso da limitação de dados ela amplia a exclusão digital, isso quando sabemos que metade da população ainda não tem acesso. A medida também limitar o acesso de quem usa a internet como ferramenta de mobilização e organização política no nosso país”, frisou.

Outra questão levantada por ela são as violações de direitos e principalmente de liberdade de expressão que vem acontecendo no Brasil nos últimos meses. Bia apresentou a Campanha “Calar Jamais!” e convidou as entidades a se somarem e fortalecer a campanha que visa denunciar as violações de direitos à liberdade de expressão no país.

Conheça a Campanha “Calar Jamais!”

A liberdade de expressão é um direito fundamental, base de toda sociedade democrática. Não à toa, em tempos de avanço do conservadorismo e de ruptura democrática em nosso país, as violações à liberdade de expressão têm se intensificado. Da repressão aos protestos de rua à censura privada ou judicial a conteúdo nas redes sociais, passando pela violência contra comunicadores, pelo desmonte da comunicação pública e pelo cerceamento de vozes dissonantes dentro das redações, nossa diversidade de ideias, opiniões e pensamentos tem sido sistematicamente calada.

Para chamar a atenção da sociedade para a seriedade de tais violações, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, em parceria com diversas organizações da sociedade civil, lança a campanha “Calar jamais!”. A plataforma recebe denúncias de violações que ocorrem em todo o país.

3º Encontro Nacional de Comunicação

O FNDC está organizando o 3º Encontro Nacional de Direito à Comunicação que deve acontecer entre os dias 5 a 7 de Maio em Brasília. “Será o momento de mobilização de exercício do direito à liberdade de expressão, quando iremos estruturar uma agenda de luta mais aprofundada em torno da comunicação”, destacou convidando a todos para o evento.

A plenária de comunicação ainda solicitou que o conselho internacional do Fórum Social Mundial entenda a comunicação como uma agenda estratégica dos movimentos e garanta infraestrutura para que esse espaços funcione. “Para que mídia livristas, comunicadores, ativistas e militantes da comunicação que venham participar do FSM tenham como fazer o seu trabalho e que o que é produzido saia daqui para o mundo. Nós falamos sobre isso há 15 anos que é importante construir uma rede internacional de comunicação contra-hegemônica e entendemos que o espaço do Fórum Social Mundial pode ser o embrião para o nascimento dessa rede”, desabafou Barbosa.

Os pontos levantados pela plenária de comunicação serão discutidos junto com os outros temas e será elaborado um relatório das causas e a agenda de lutas propostas pelo Fórum das Resistências, que será apresentado no dia 21, no encerramento do evento.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

NEGROS E MÍDIA: INVISIBILIDADES

*Ana Claudia Mielke

Há cerca de um ano a imagem do pequeno Matias Melquíades, fotografado pelos pais feliz da vida ao lado de um boneco do Finn, personagem de Star Wars, ganhava as redes sociais. A foto não apenas viralizou nas redes brasileiras, como chegou a John Boyega, ator norte-americano que interpretou o herói no filme O despertar da Força.
Essa historinha consolida o que os negros já vêm há muito tempo dizendo: representatividade importa, sim! Não apenas na televisão e no cinema, como também na publicidade, na literatura e na própria produção dos brinquedos. Afinal, Matias, de apenas 4 anos, quis comprar o boneco porque “se parecia com ele”.
A questão da representatividade do negro na mídia brasileira é algo que vira e mexe recebe holofotes em pesquisas e debates. Não é para menos, a indústria cultural midiática ainda é pouco permeável à ideia de ter o negro em papel protagonista e segue reproduzindo estereótipos, colocando o negro em papéis que configuram, quase sempre, subalternidade.
Os velhos papéis se repetem. Do lado negativo, o escravo, a “mulata” lasciva, a empregada doméstica, o preto bobo ou ignorante que faz a gente rir e o bandido. Do lado positivo, o jogador de futebol, o sambista ou aquele personagem que interpreta a exceção: o moço de família humilde que lutou muito e “venceu na vida”. Figuras que não são exclusividade dos produtos de ficção, visto que são assim também apresentados em programas de auditório e em quadros do jornalismo.
Até três anos atrás, a TV Globo veiculava nas noites de sábado, em seu programa humorístico Zorra Total, a personagem Adelaide, uma negra, pobre e desdentada, retratada como alguém sem higiene, que dividia a casa com uma ratazana e pedia dinheiro nos vagões do metrô, embora carregasse consigo aparelhos celulares de última geração – uma definição de seu caráter. E por que não mencionar a polêmica charge do Jaguar publicada na edição 111 deste Le Monde Diplomatique Brasil? Polêmica que, aliás, rendeu debates e provocou a produção deste especial sobre negros e mídia, que ocupará as páginas do jornal ao longo de 2017.
A eleição de certos atributos dos negros como metonímia para definir e consolidar determinado olhar negativo sobre a negritude vem sendo há muito tempo uma das mais contundentes estratégias para fixar sentidos e inviabilizar a diferença racial. O  indiano Homi Bhabha (2007) identificou essa estratégia ao estudar o discurso do colonialismo. Segundo ele, a diferença é reconhecida como parte da cultura, mas ao mesmo tempo é repudiada em nome da construção de uma identidade unificadora e idealizada. Dessa forma, mantém-se o controle sobre determinadas raças e culturas por meio do alijamento de suas próprias identidades.
No Brasil, o “espetáculo das raças”1 orientou a construção do mito da democracia racial, que por sua vez elaborou a ideia de miscigenação e convivência racial pacífica para forjar o sujeito social mestiço denominado “brasileiro”. Enquanto isso, violentamente produzia o apagamento sistemático e sistêmico da cultura e identidade negras, o que ocorreu pari passu a uma política de exclusão dos negros (do trabalho e dos centros urbanos) no Brasil pós-abolição.
O problema é que esses apagamentos e exclusões seguiram sendo reproduzidos – antes como política e violência, agora como discurso. E em uma sociedade midiatizada são as mídias de massa as principais responsáveis por isso. É como se algo estivesse sempre no mesmo lugar e, ao mesmo tempo, tivesse de ser exaustivamente repetido em uma relação ambivalente entre manutenção e repetição. E os estereótipos são, segundo Bhabha, exatamente isso, um modo de representação complexo, ambivalente e contraditório.
A característica da ambivalência é que dá ao estereótipo a garantia de “repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes” (Bhabha, 2007, p.106) e faz muitos estereótipos continuarem sendo reproduzidos no cinema e na TV, e que estes sejam, por sua vez, temas provocadores de debates acalorados.
Ao mapear a evolução da presença negra na teledramaturgia e no cinema brasileiros, Joel Zito Araújo (2008) concluiu que a telenovela não dava visibilidade à verdadeira composição racial do país e reproduzia a ideologia da branquitude como padrão ideal de beleza. Segundo ele, compactuando “conservadoramente com o uso da mestiçagem como escudo para evitar o reconhecimento da importância da população negra na história e na vida cultural brasileira” (p.982).
A análise é precisa, basta lembrar que a primeira protagonista negra numa telenovela da TV Globo foi vivida pela atriz Taís Araújo em Da cor do pecado, no recentíssimo ano de 2004 – a mesma atriz havia interpretado Xica da Silva numa novela de época na extinta TV Manchete, nos idos de 1996, e voltou ao protagonismo a representar Helena na novela Viver a vida, em 2009. E a primeira protagonista negra de Malhação é de 2016.
A ausência de negros é, ao lado da reprodução de estereótipos, uma forma também de inviabilizar a diferença, apagá-la. Há o “trabalho do silêncio” (Orlandi, 1997), que se produz pela não presença de negros nas produções audiovisuais. Ausência essa que é, em alguma medida, deliberada, visto que seguimos vivendo no regime da normatividade branca, da branquitude2 como padrão. Então, o negro é ausentado, já que sua cor marca uma presença que produz estranhamentos dentro dessa normatividade branca.
O audiovisual é onde os silenciamentos são mais sentidos, visto que lidam com imagem. Para não ficar apenas nos exemplos das telenovelas, vale jogar luz sobre o que acontece no campo das séries de TV. No Estados Unidos, a presença de sitcons e seriados protagonizados por negros é uma realidade desde os anos 1970.3 No Brasil, por outro lado, as tentativas de produzir séries com protagonistas negros são muito recentes, datam da última década: na TV Globo, Antônia (2006), Suburbia (2012), Sexo e as negas (2014) e Mister Brau (2015).
Os exemplos mostram que existem avanços, impulsionados em sua maioria pelas ações históricas do movimento negro e pelo empoderamento dos jovens negros da periferia nos últimos quinze anos (graças ao hip hop ou a movimentos mais ligados à arte urbana e à estética). A adoção de cotas nas universidades, as organizações de cursinhos populares negros nas periferias e a produção de políticas de inclusão em âmbito federal corroboram neste cenário.
Mas estes avanços ainda são pequenos do ponto de vista da qualidade – é preciso garantir maior representatividade positiva do negro nos meios de comunicação – e também do ponto de vista da quantidade, visto que esta representatividade ainda está bem distante da proporção numérica da presença do negro na sociedade brasileira.
Saindo da esfera da ficção, é possível perceber que os silenciamentos operam também nos produtos jornalísticos. São raros os casos de especialistas negros entrevistados em matérias de economia e política. A lógica dos comentaristas segue sendo a da meritocracia: escreve sobre um tema ou responde sobre determinadas questões apenas aqueles que alçaram um nível de elevada qualidade “técnica” ou “intelectual” – nada mais conveniente para uma sociedade que sempre alijou seus negros do acesso a essa suposta qualificação.
Nas matérias de cotidiano, que pautam família, educação, transporte, saúde, moradia etc., quase nunca os negros são personagens das situações ordinárias. Contraditoriamente, estão sempre estampando os cadernos policiais e as imagens deletérias dos programas policialescos que promovem autoritarismo na TV, associando violência, pobreza e negritude.
Mantém-se, assim, tudo exatamente como está: naquela “repetição demoníaca” dos estereótipos descrita por Bhabha. E assim a repetição do estereótipo vai negando a articulação da ideia de raça como elemento cultural, histórico, identitário, permitindo que esta apareça tão somente em sua fixidez como racismo, conforme destaca o filósofo.
O frisson causado pela presença da jornalista Maria Júlia Coutinho no quadro fixo do Jornal Nacional é um bom exemplo da negação da diferença e da produção do racismo. Parte da sociedade não assume enxergar a diferença dela, a sua negritude. Mas bastou ela ocupar um lugar ao qual não era historicamente “destinada” para enxergarem a sua pretidão.
Na publicidade não é diferente. Conforme pesquisa de Carlos A. M. Martins (2010), em 1995 apenas 7% dos anúncios veiculados tinham a presença de modelos negros, número que subiu para 10% em 2000 e para 13% em 2005. Além disso, embora seja visível o aumento progressivo de negros escritores, ainda há limitações e barreiras inexplicáveis à entrada destes no mercado editorial tradicional ou, como afirmou certa vez Fernanda Felisberto, “a literatura negra é rotulada como fundo de catálogo”.4
Evitar a repetibilidade dos estereótipos e dos apagamentos da diferença produzidos na mídia é algo que requer política pública. Nesse sentido, a regulação dos meios, especialmente das mídias eletrônicas de massa (rádio e TV), que no país são objeto de concessão pública, é essencial para garantir a diversidade racial e a participação efetiva dos negros. Não se trata apenas de um debate sobre o consumo, mas do entendimento de que a não representatividade produz consequências devastadoras para a construção da identidade de um povo.
Na ausência de identificações positivas com negros na TV, nas revistas, nos livros, nos brinquedos, “a criança negra afasta-se de si própria, de sua raça, em sua total identificação com a positividade da brancura que é ao mesmo tempo cor e ausência de cor” (Bhabha, 2007, p.118). E são muitas as gerações que passaram por isso no Brasil (eu mesma tive dificuldade outro dia em me lembrar dos personagens negros que marcaram minha infância e adolescência).
A regulamentação do artigo 221 da Constituição Federal seria um primeiro passo na promoção da diversidade, visto que trata, entre outras coisas, da necessidade de garantir a regionalização da produção. Esta, por sua vez, possibilitaria que identidades e culturas regionais (dentre elas a negra, a quilombola) fossem mais bem representadas. Além disso, parece ser necessário retomar o debate sobre as políticas de ações afirmativas nos meios comerciais de comunicação, como inicialmente se previa com a elaboração do Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/2010) ou como se pretendia com o PL n. 4.370/1998.5
Por fim, se as mudanças são poucas diante da amplitude do problema, podemos dizer que elas seguem persistentes, à revelia daqueles que não aceitam a diferença e não querem promover a inclusão. Felicidade seria ver, daqui para frente, outras crianças podendo se identificar com personagens negros no cinema e na TV, tal como Matias.

 


1    Referência ao livro de Lilia Moritz Schwarcz que conta a história de como a  intelectualidade branca brasileira (e estrangeira que vinha para cá) elaborou os processos ideológicos (científicos) de branqueamento da sociedade no início do século XX.
2    A branquitude “é um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê aos outros e a si mesmo; uma posição de poder não nomeada, vivenciada em uma geografia social de raça como um lugar confortável e do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo” (Frankenberg, 1995, p.43).
3    Dentre as chamadas black sitcoms nos EUA estão com That’s My Mama, Good Times, Sanford and Son, What’s Happening?, nos anos 70; The Cosby Show, A Different World e Frank’s Place, nos anos 80; The Fresh Prince of Bel-air (Um maluco no pedaço), nos anos 90; e recentemente, Everybody Hates Chris (Todo mundo odeia o Chris).
4    Mais sobre esse assunto pode ser encontrado nas pesquisas de Fernanda Felisberto ou no mapeamento da Fundação Palmares, que resultou na publicação Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (2014).
5    De autoria de Paulo Paim (PT-RS), o projeto previa o estabelecimento de cotas mínimas de partição de negros, sendo 25% atores e figurantes dos programas de televisão – extensiva aos elencos de peças de teatro – e de 40% nas peças publicitárias apresentadas nas TVs e nos cinemas. O projeto foi arquivado em 2006.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Joel Zito. O negro na dramaturgia, um caso exemplar da decadência do mito da democracia racial brasileira. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.16, n.3, p. 970-985, set./dez. 2008.
BHABHA, Homi K. A outra questão: o estereótipo, a discriminação e o discurso do colonialismo. In: ______. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
FRANKENBERG, Ruth. The Social Construction of Whiteness: White Women, Race Matters [A construção social da branquitude: mulheres brancas, raça importa]. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1995.
MARTINS, Carlos A. M. Racismo anunciado: o negro e a publicidade no Brasil, 2010.
ORLANDI, Eni. As formas dos silêncios: no movimento dos sentidos. Campinas: Unicamp, 1997.

Ana Claudia Mielke, coordenadora executiva do coletivo Intervozes, jornalista e mestre em ciências da comunicação pela USP

Publicado originalmente na revista Le Monde Diplomatique

Conselho Nacional de Direitos Humanos defende comunicação democrática

No mês do Dia Internacional dos Direitos Humanos, fazemos um balanço da atuação do CNDH na pauta da comunicação

Por Helena Martins*

Na véspera do Dia Internacional dos Direitos Humanos, comemorado em 10 de dezembro, tomou posse, em Brasília, uma nova gestão do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH).

Ao longo de dois anos, o conselho buscou abraçar uma agenda diversa. Os impactos da construção de Belo Monte e de outras grandes obras e projetos; o extermínio da juventude negra e dos povos indígenas; os assassinatos de defensores de direitos humanos; a negação de direitos da população em situação de rua e das pessoas com deficiência; as violações no âmbito do sistema socioeducativo e o caos no sistema prisional foram algumas delas.

Nesse contexto, o Intervozes, organização eleita para compor o fórum, e outros diversos grupos, como a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), a Andi – Comunicação e Direitos, o Instituto Alana e a Artigo 19, buscaram contribuir também para a ampliação do reconhecimento da comunicação como um direito humano fundamental e, assim, da inserção de questões relacionadas à comunicação no cotidiano do Conselho.

Em um país que reconhece a comunicação como direito expressamente em uma norma, o Estatuto da Juventude, e possui pouquíssimos espaços institucionais para o debate aberto e participativo das políticas de comunicação – até hoje não possui um Conselho de Comunicação Social deliberativo, por exemplo – a criação da Comissão sobre Direito à Comunicação e Liberdade de Expressão pode ser apontada como uma conquista dessa primeira gestão.

Isso porque a comissão tem o objetivo, reconhecido em normativas, de receber, analisar e monitorar denúncias de violações do direito à comunicação e dos direitos humanos na mídia, propor mecanismos de regulação dos meios de comunicação, opinar sobre políticas públicas do setor e desenvolver ações de promoção do direito à comunicação e à liberdade de expressão.

Por meio dela, especialmente, o CNDH buscou dar seguimento à deliberação de Grupo de Trabalho do CDDPH que havia aprovado a criação de um Observatório Sobre a Violência Contra Comunicadores.

Como soubemos já no apagar das luzes do governo Dilma, o Observatório, que chegou a ser objeto de portaria interministerial anunciada, porém nunca lançada, teve suas atribuições questionadas pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), que fez propostas sobre uma minuta que chegou até ela, mas não à sociedade civil.

Sem um espaço como esse, sequer as características desses crimes, que dificilmente são investigados, podem ser percebidas e utilizadas para subsidiar políticas públicas. Não à toa, o Brasil é o segundo país com o maior número de jornalistas assassinados da América Latina, atrás do México, segundo a organização Repórteres sem Fronteiras.

A perspectiva do Judiciário frente ao direito à liberdade de expressão também foi objeto de discussão. O CNDH atuou em defesa da Classificação Indicativa, política que acabou fragilizada pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de derrubar a vinculação horária à classificação. Também manifestou preocupação com punições rigorosas que possam intimidar os que usam a liberdade de expressão para veicular conteúdos críticos, como ocorreu no caso do jornalista sergipano Cristian Góes, punido após ter escrito uma crônica em que criticava oligarquias.

Neste caso, o Conselho destacou, em nota, que a “possibilidade de buscar informações e manifestar ideias livremente é uma conquista da sociedade brasileira e deve ser protegida por ela e pelas instituições do país, afinal não há democracia plena sem liberdade de expressão”. Afirmação ainda mais necessária nesses tempos de golpe, em que a repressão aos comunicadores – verificada em diversos momentos anteriores, como durante a Copa do Mundo – tende a crescer. Aliás, uma das agendas que deverá ganhar centralidade na próxima gestão do colegiado é exatamente a defesa da liberdade de expressão, tanto por meio de veículos midiáticos quanto nas ruas, durante protestos.

Temas de destaque durante a discussão das propostas de redução da maioridade penal, a criminalização de determinados setores da sociedade e a abordagem de temas como segurança pública, violência e direitos humanos pela mídia resultaram em amplo debate sobre os programas policialescos. A partir de provocação da Andi e outras organizações, o CNDH debruçou-se sobre essa questão, o que resultou na aprovação de um relatório que apresenta diversas recomendações aos órgãos públicos e também às empresas de radiodifusão, a fim de que atuem para garantir o respeito aos direitos humanos na mídia.

Do documento, duas propostas devem ser ressaltadas, a fim de que sejam apropriadas pelo conjunto da sociedade e reconhecidas como bandeiras de luta. Uma delas é que não seja veiculada a publicidade de órgãos públicos e empresas estatais em programas de cunho policialescos, seja como cota de patrocínio, seja nos intervalos comerciais ou por meio de merchandising. A segunda proposta aponta que sejam consideradas, na atividade de fiscalização do conteúdo dos programas de rádio e TV, para fim de aplicação de sanções, um conjunto de leis brasileiras e de tratados internacionais ratificados pelo país, que têm sido solenemente ignorados pelo Estado.

O relatório também destaca a necessidade de cumprimento das 19 resoluções aprovadas na 12ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, convocada e organizada também pelo CNDH. Entre elas, estão: elaborar e executar, nos meios de comunicação, campanhas sobre direitos humanos; garantir a democratização da comunicação e a aprovação do Projeto de Lei da Mídia Democrática e regulamentar o Marco Civil da Internet, garantindo os princípios de neutralidade de rede; respeitar as normas de acessibilidade na radiodifusão, com garantia de audiodescrição, legenda, janela e materiais em Libras, fonte ampliada, Braille e outros formatos acessíveis que garantam à pessoa com deficiência acesso igualitário à informação.

Uma das últimas ações da primeira gestão em relação à comunicação foi a defesa da manutenção do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), prontamente atacado por Temer logo após assumir ilegitimamente a Presidência da República. Por meio de Nota Pública, o CNDH posicionou-se contra a extinção do Conselho e exigiu a garantia desse importante espaço de participação da sociedade. Afirmou ainda que a extinção fragiliza o caráter público da empresa e afronta princípios constitucionais que estabelecem a comunicação pública como um direito da sociedade brasileira, além de ferir o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal da comunicação e ir de encontro ao que defendem órgãos vocacionados para a proteção dos direitos humanos.
Criação do Conselho Nacional de Direitos Humanos

Tributário de décadas de atuação do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), o mais antigo colegiado do país, o CNDH foi fruto da luta da sociedade civil, que por anos demandou a efetivação de um órgão que atendesse aos chamados Princípios de Paris, adotados pela Comissão de Direitos Humanos da ONU em 1992.

Alguns deles são: autonomia para monitorar qualquer violação de direitos humanos; autoridade para assessorar o executivo, o legislativo e qualquer outra instância sobre temas relacionados aos direitos humanos; capacidade de se relacionar com instituições regionais e internacionais; legitimidade para educar e informar sobre direitos humanos; e competência para atuar em temas jurídicos.

Até hoje, exatamente por não possuir uma instância com tais características, o Brasil é um dos poucos países da América Latina que não possui uma Instituição Nacional de Direitos Humanos credenciada junto à Organização das Nações Unidas (ONU).

Isso demonstra mais que um descaso. Trata-se, em verdade, de uma tentativa histórica do Estado brasileiro, muitas vezes o principal violador de direitos, de afastar a sociedade civil da definição de políticas desse campo, bem como de reduzir a cobrança interna e também internacional em relação ao cumprimento de tarefas básicas como defender, promover e reparar direitos.

Expressão da tentativa de afirmar a autonomia do Conselho, a principal mudança do CDDPH para o CNDH é exatamente a composição do colegiado. De acordo com a Lei nº 12.986, de 2 de junho de 2014, que instituiu o CNDH, este passou a ter 22 membros, dos quais onze são organizações da sociedade civil.

Possuem assento permanente a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais do Ministério Público dos estados e da União. Nove delas são eleitas pela própria sociedade civil. Além destes integrantes, outros onze são do poder público, entre os quais representantes do Ministério Público Federal (MPF), o que garantiu a destacada atuação da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, e da Defensoria Pública da União (DPU), outra instituição que tem se mostrado cada vez mais relevante na defesa dos direitos humanos.

A lei que criou o CNDH também ampliou suas competências e, consequentemente, sua força institucional. No entanto, também houve perdas no processo de aprovação, como a dependência orçamentária do Conselho em relação ao governo. Apesar desses limites, a primeira gestão foi marcada pela tentativa de afirmar sua autonomia, abrir espaço para a participação da sociedade e abraçar uma diversificada agenda de intervenção.

O processo foi tortuoso. Ao longo do governo Dilma Rousseff, inicialmente dois ministros revezaram-se à frente da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR): Ideli Salvatti e Pepe Vargas. Em setembro de 2015, a reforma ministerial de Dilma levou ao rebaixamento do status ministerial da SDH. As secretarias de Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos foram reunidas no Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, que passou a ter como ministra Nilma Lino. Parte dele, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos foi designada a Rogério Sottili.

A junção, aliás, fora criticada pelas organizações da sociedade civil que integravam o CNDH, as quais destacaram, em nota, tanto o desrespeito à defesa histórica da existência de pastas específicas quanto a possibilidade de criação de obstáculos à atuação em defesa dos direitos humanos.

Cada ministro, que acumulava o cargo de presidente do Conselho, imprimiu um ritmo diferente ao órgão, bem como adotou uma postura mais ou menos respeitosa em relação à autonomia dele, o que impactava o seu próprio funcionamento. Se as mudanças já causaram dificuldades para a atuação do órgão, este teve que enfrentar, ainda, a ruptura democrática confirmada com o golpe que levou Michel Temer ao poder.

Praticamente no mesmo mês do afastamento de Dilma, contudo, seguindo o regimento interno que determina a alternância, na presidência, entre governo e sociedade civil, esta, representada pela procuradora Ivana Farina, assumiu a presidência do CNDH. O mecanismo e a participação da sociedade civil, mais uma vez, mostraram-se fundamentais para garantir a continuidade da existência de um espaço que não esteja submetido às vicissitudes de governos que, em geral, não estão efetivamente comprometidos com o respeito aos direitos humanos.

Comunicação como direito humano e onda conservadora

Os enfrentamentos do CNDH no campo da comunicação não resultaram em vitórias concretas. Não seria de se esperar o contrário, tendo em vista a avassaladora onda conservadora que tem conseguido imprimir derrotas e devastar, rapidamente, direitos conquistados por meio de décadas de lutas da sociedade brasileira.

Não obstante, as medidas aqui relatadas significam avanços, tanto no debate público quanto no reconhecimento, inclusive por parte das organizações que atuam no campo mais amplo dos direitos humanos, da comunicação como um direito fundamental. E desse direito como uma bandeira que deve ser abraçada por todas e todos nós que queremos uma sociedade radicalmente distinta da que vivemos hoje. Ainda que temporária e merecedora de ações que deem continuidade a ela, essa é uma conquista que deve ser celebrada neste dia.

Para os que seguem, estaremos mais uma vez, ao lado das organizações da sociedade civil e das instituições públicas sérias que ainda nos restam, atuando pelo fortalecimento do CNDH e dos movimentos sociais comprometidos com a defesa de direitos. Porque direitos são indivisíveis e interdependes. E porque sabemos que eles nunca foram nem serão dados, mas arrancados pela mobilização popular.

*Helena Martins é jornalista, coordenadora executiva do Coletivo Intervozes e representou o Coletivo no CNDH durante os últimos dois anos

Associação vai exigir ações afirmativas para negros/as no audiovisual

Homens negros representam menos de 2% das lideranças profissionais em grandes produções audiovisuais; as mulheres negras estão completamente ausentes

Por Marina Pita*

“A melhor resposta que poderíamos dar a essa conjuntura de avanço do conservadorismo nos níveis municipal, federal e internacional era essa”, afirmou a advogada e cineasta Viviane Ferreira, ao analisar a criação da Associação dos/as Profissionais do Audiovisual Negro (Apan).

A organização será formalizada publicamente nesta sexta-feira 2, durante a realização da série Diálogos Ausentes e 1º Seminário Audiovisual Negro. A partir de então, a Apan passará também a compor o Conselho Consultivo da SPCine – empresa de cinema e audiovisual de São Paulo ligada à Secretaria Municipal de Cultura –, criando mais uma frente de reivindicação e demanda para políticas de incentivo ao audiovisual negro.

Em uma das mesas de debate do Encontro SPCine, realizado entre 16 e 18 de novembro, em São Paulo, a fala de Viviane e o anúncio, tanto da criação da Apan, quanto da nova composição do Conselho Consultivo da SPCine, ganhou ares de momento histórico.

Isso porque a participação de profissionais negros e negras no audiovisual no País é baixíssima, quase inexistente, apesar de o Brasil ser um país cuja população é 54% negra, conforme último dado disponível do IBGE.

Pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), com as vinte maiores bilheterias de cada ano, considerando 2002 a 2014, escancarou o racismo na produção audiovisual brasileira: 84% dos cineastas são homens brancos; 14%, mulheres brancas; e 2%, homens negros.

E nestes 13 anos analisados, nenhuma mulher negra esteve à frente de uma produção de grande bilheteria, tampouco assinou roteiros. Já os homens brancos foram responsáveis por 69% dos textos.

Esta ausência não é sentida e questionada apenas no Brasil. Na edição do Oscar de 2016, a ausência de negros e negras indicados aos prêmios de atuação, roteiro e direção, mesmo havendo filmes focados na temática negra e com atores e diretores negros – caso de Selma, da diretora Ava DuVernay – repercutiu em críticas severas à academia norte-americana, que desde 2011 não mantinha negros de fora de suas indicações.

Sendo o audiovisual um setor que, em geral, exige alto investimento e qualificação específica e técnica, a reversão deste cenário – que reflete a desigualdade racial do país – sem políticas afirmativas é inviável.

“Reconhecer a impossibilidade de abdicar do esforço em construir políticas de ações afirmativas no setor audiovisual é um primeiro pressuposto, desmistificar o que vem a ser esse conjunto de políticas é o segundo”, destacou Viviane Ferreira durante a abertura do evento.

“É fundamental garantir aos protagonistas as condições materiais e simbólicas para que as dificuldades ou desníveis possam ser superados e as escolhas possam ser feitas de maneira lúcida e, consequentemente, a médio e longo prazos”, frisou, ainda.

Cenário de oportunidades

Para ela, se por um lado há o avanço do conservadorismo na política institucional, da perspectiva da audiência há o esgotamento da narrativa clássica. “O público não aceita mais essa narrativa viciada proposta pelo homem branco, heterossexual e endinheirado. Ele não consegue mais fazer o seu capital render vendendo a narrativa viciada. E aí há o momento de transição e precisamos pensar como reorganizar o diálogo e essas relações no mercado audiovisual – um diálogo de desconstrução de desigualdades”.

Um exemplo de tentativa do mercado audiovisual de suprir a demanda por um audiovisual negro, mas sem superar a estrutura excludente, é a série O Sexo e as Nega. “O audiovisual é, sobretudo, um retrato da realidade e cada um faz o retrato a partir de sua experiência de vida. A experiência de vida de um homem branco não é a experiência de vida de uma mulher negra. E aí a gente precisa entender que para conseguir avançar e sair desse jogo de manobra e apropriação cultural do que é a nossa criatividade, nossa subjetividade negra, precisamos diversificar todos os espaços do setor audiovisual”, disse.

Para Viviane, o momento pode ser muito fértil para a democratização da produção audiovisual porque além das exigências da audiência por conteúdo de qualidade e que retrate a realidade do País, as produções culturais provenientes de grupos sociais tradicionalmente marginalizados vêm paulatinamente ganhando espaço.

“Dentro da cultura, a marginalidade, embora permaneça periférica em relação ao mainstream, nunca foi um espaço tão produtivo quanto é agora. E isso não é apenas uma abertura dos espaços dominantes à ocupação dos de fora. É também resultado de políticas culturais da diferença, de lutas em torno da diferença, da produção de novas identidades e do aparecimento de novos sujeitos no cenário político cultural”, destaca. “E isto vale não apenas para raça como também para “outras “etnicidades, marginalidades, assim como para o feminismo e as políticas sexuais e movimentos LGBTs”, analisou a cineasta negra durante debate.

Por outro lado, há a preocupação e cautela da Apan em não deixar o espaço de visibilidade e diálogo em torno do cinema negro se transformar em um cubículo cuidadosamente regulado e vigiado para impedir qualquer avanço e fortalecer o racismo e suas práticas nefastas e arraigadas.

Dessa forma, a associação mantém como objetivo elaborar e pressionar pela implementação de estratégias culturais para o setor audiovisual capazes de construir uma teia para consolidar um conjunto de políticas de ações afirmativas para o setor que dê conta de aprimorar iniciativas existentes.

Uma destas iniciativas é o Curta Afirmativo, linha de financiamento audiovisual criada pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) em 2014 – a primeira ação afirmativa com recorte racial do audiovisual no país.

“Há importância de existir a Apan, em diálogo com a Ancine, em diálogo com a SPCine, em diálogo com o mercado, em diálogo com a sociedade civil para entendermos como cada uma das partes pode atuar para alterar essa ordem. O audiovisual é uma brincadeira muito cara e não podemos continuar neste jogo de perde-perde apenas para garantir a continuidade do status quo racial”, afirmou a representante da Apan.

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Cena de Selma, de Ava DuVernay (EUA/2015)

“Ou a gente avança e entra no jogo de ganha-ganha, tanto materialmente quanto subjetivamente, ou a gente precisa endurecer o jogo. O conjunto identificado como massa mostra que não está mais disposto a ser manobrado e aí, a partir deste ponto, podemos alterar a ordem e resolver essa questão”, completou.

Em momento de transição tanto no governo municipal de São Paulo quanto na esfera federal, Viviane não titubeia diante da possibilidade de portas se fecharem para este diálogo tão necessário em um futuro breve.

“Como fazer para ter continuidade nas políticas afirmativas? Da perspectiva da sociedade civil, o nosso diálogo é com o Estado e seja qual for o Estado, ele precisa dialogar com a sociedade civil. Se não há espaço para isso, a gente mete o pé na porta e adentra a estrutura do Estado para garantir o diálogo”, diz.

“É importante não perder isso de perspectiva porque a estrutura do Estado não é o condomínio, o play, o apartamento de indivíduos. Posso assegurar que uma população que conseguiu sobreviver às políticas genocidas de um Estado durante 500 anos, não está disposta a deixar de combater as posturas racistas, seja lá qual for o governo”.

A seguir, algumas das propostas iniciais para políticas afirmativas:

– Garantir a presença de profissionais negros em comissões de seleções de projetos audiovisuais tanto na iniciativa pública quanto na iniciativa privada;

– Garantir a presença de profissionais negros nas instâncias decisórias dos órgãos e empresas públicas e privadas do setor audiovisual;

– Fortalecer os espaços específicos dentro dos grandes festivais e no circuito alternativo para exibição do cinema negro, como política de formação de público;

– Garantir a representação de produções e realizadores negros nos espaços principais – nas telas e nos debates – dos grandes festivais como política de reconhecimento da excelência das obras e de seus profissionais;

– Programa de fortalecimento institucional de pequenas e médias empresas geridas por pessoas negras e com forte produção e distribuição de conteúdo voltada para essa parcela da população;

– Reserva de espaço pelas programadoras e distribuidoras para aquisição obrigatória de conteúdo produzido por empresas geridas por pessoas negras com foco em produção de conteúdo voltada para a população negra;

– Estruturação de uma resolução por parte da Ancine que olhe para o princípio da isonomia alinhada com o princípio da equidade e estabeleça regras reguladoras iguais entre os iguais e diferentes para os diferentes;

– Fortalecer uma política de formação que oferte laboratórios para que pareceristas, críticos, dramaturgos, curadores, exibidores, programadores, distribuidores e realizadores para que possam compreender a diversidade de temas e possibilidades de abordagem e reconhecimento da subjetividade negra por meio da linguagem audiovisual;

 

*Marina Pita é jornalista, branca e compõe o Conselho do Coletivo Intervozes. É prima-tia de duas meninas negras e espera que as próximas gerações possam se ver nas telas – e possam estar atrás delas – e que o momento de identificação das próximas gerações de crianças negras com o conteúdo audiovisual brasileiro não seja na repercussão de tragédias como a do terremoto do Haiti, que tanto chamou a atenção das pequenas já citadas.