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Um dia na vida da Folha de S. Paulo

O dia é quinta, 30 de Outubro de 2008. Mas podia ser qualquer outro. Nessa quinta, o desprezo da Folha pelos seus leitores superou-se com a reportagem “Luz para Todos não cumpre a meta de dois milhões". Minha mulher, que já vinha se aborrecendo com a Folha, fechou as páginas, irritada: “Esse jornal pensa que somos idiotas”.

Começa pela foto que encima a história, uma cena de escuridão no Congresso Nacional, que não tem nada nadinha a ver com o programa Luz para Todos. Depois vem o título, enorme, em quatro colunas, numa página nobre do jornal, chamando de fracassado um programa que os números da reportagem revelam estar sendo um dos maiores sucessos do governo Lula.

O Luz para Todos atingiu até a semana anterior à publicação da matéria, nada menos que 1, 744 milhão de famílias. São famílias, por definição, localizadas em regiões remotas, pequenos vilarejos que as concessionárias não serviam por não ser econômico.

Mesmo se ficasse só nisso, já seria um feito excepcional. Não só pelo número absoluto de famílias e comunidades beneficiadas, mas também pelo fato de quase 90% da meta ter sido alcançada – meta essa que já era bastante ambiciosa.

Foi tão forte o desejo de narrar um fracasso que o repórter excluiu do seu argumento sobre o não cumprimento da meta deste ano o fato relevante de que o ano ainda não terminou. Só lá em baixo, no pé da reportagem, separadas propositalmente do argumento principal da narrativa, está a informação de que já há mais R$ 13 bilhões em contratos fechados, sendo R$ 9,4 bilhões do governo federal, R$ 1,6 bilhão dos governos estaduais e R$ 1,9 bilhão das concessionárias. O sucesso é tanto que o Ministério de Minas e Energia já pensa em ampliar a meta em mais 1,1 milhão de famílias entre 2009 e 2010. (1)

Na mesma edição, a Folha relata outro retumbante “fracasso” do governo Lula. “Gastos do governo com o PAC caem 70%”. O título é de quatro colunas ocupando também o topo de página. Um gráfico de pagamentos do PAC revela investimentos crescentes ao longo do ano, exceto pequena redução em junho, e as quedas que deveriam justificar o título, em setembro e outubro.

De pronto está a desonestidade do título. Gastos só caíram nos últimos dois meses. E mais: caíram de forma brusca. A explicação está lá, escondida, no meio da própria reportagem: as chuvas de setembro e a greve dos servidores do Departamento Nacional de Infra-estrutura (DNIT) que “bloqueou pagamentos e todas as demais fases da gastos durante três semanas…” (2). Um título mais preciso seria na linha de ”greve paralisa obras do PAC”. Mas esse título não serviria ao propósito aparente de retratar um governo inoperante e incompetente.

Manipulação de números repetiu-se no título de página inteira ”Diminuem as vendas em supermercados”. O segundo parágrafo, aliás atropelado, diz que “a queda nas vendas em setembro, além de ser sazonal, ocorreu porque, em agosto, houve queda nos preços de alguns alimentos, o que resultou em alta no consumo daquele mês…”

Afinal, se em agosto os preços caíram, significa que o povo estocou, com isso comprando menos em setembro? Além dessa confusão, o jornal admite que comparou dois meses incomparáveis. Agosto teve 31 dias e cinco finais de semana. Setembro teve apenas 30 dias e quatro fins de semana. Os fins de semana concentram as idas aos supermercados para as compras maiores do mês.

Só o ajuste sazonal do número de dias de cada mês daria uma “diminuição” de 2,2% no faturamento de setembro em relação a agosto. E mais: lá adiante, em outro parágrafo, está escrito que o preço médio de uma cesta com 35 produtos caiu 1,25% em setembro, em relação a agosto. E nem consideramos ainda que setembro teve um fim de semana a menos. Portanto a queda de 5,6% no faturamento foi inferior ao que se deveria esperar pelo menor número de dias, menor número de fins de semana, e preços menores dos alimentos. O oposto do que o titulo dá a entender.

É isso que se chama inversão dos sentidos, truque que vem se tornando especialidade desse jornal. Na história do Luz para Todos o objetivo aparente é passar a idéia de um governo que não cumpre promessas e na reportagem da redução do ritmo do PAC, o objetivo é caracterizar um governo incompetente.

Há uma outra dimensão ainda mais interessante nessas manipulações: as duas reportagens saíram na véspera do evento em que o governo prestaria contas dos programas, quando o correto seria usar as informações para questionar a prestação de contas, não deixar o governo falando sozinho. Isso seria bom jornalismo. Por que o jornal se antecipou?Sua intenção aparente e nada modesta foi a de esvaziar a prestação de contas do governo. Ou seja: o jornal quis pautar a agenda nacional e/ou negar ao governo seu potencial de pautar essa agenda.

O jornal torce os fatos porque está torcendo pelos fatos, em vez de tentar retratá-los com a maior precisão e contextualização possível. A matéria do PAC é mais uma de toda uma torcida do jornal contra o programa, desde o seu início.

Já a reportagem sugerindo falsamente que o povo está comprando menos comida, além de usar como referência um dado (faturamento) que interessas apenas aos proprietários dos supermercados, faz parte de uma nova e preocupante torcida da Folha: a torcida para que a crise dos bancos chegue logo ao Brasil. Esse catastrofismo vem marcando a cobertura de toda a mídia. Mas também nisso a Folha vem se superando.

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(1) No dia seguinte, a Folha voltou ao assunto em pequena nota na qual a ministra Dilma Rousseff, diz que faltarão apenas 100 mil famílias para a meta deste ano. Ou seja o programa terá cumprido 95% de sua meta. Mesmo assim, o jornal manteve a narrativa do fracasso.

(2) Também nesse caso a Folha voltou ao assunto no dia seguinte com o titulo: “Planalto culpa greves por ritmo menor de obras.” O jornal não contesta o argumento. Ao contrário, reforça-o dizendo que “conforme o jornal informou ontem, a greve de três semanas no DNIT paralisou todas as etapas dos gastos em obras de conservação, manutenção e construção de rodovias, responsáveis pela maior parcela dos investimentos do PAC.”

* Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é colaborador da Carta Maior e autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996) e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000).

Justiça tardia: o caso do grupo Isaías no Equador

[Tradução: Marco Aurélio Weissheimer]

Em 1998, o Equador mergulhou em uma das piores crises econômicas de sua história. O PIB caiu, a pobreza e a desigualdade aumentaram dramaticamente. Uma migração sem precedentes levou cerca de 1,3 milhões de equatorianos para a Espanha e, em menor medida, aos Estados Unidos, em um tempo relativamente curto. Alguns fatores contribuíram para essa situação: uma queda dramática dos preços do petróleo, o fenômeno do El Niño que inundou e destruiu grandes extensões de cultivos destinados à exportação e ao mercado interno, o super-endividamento do país que fez com que os compromissos de pagamento da dívida absorvessem uma parte importante dos limitados recursos fiscais disponíveis.

A estes fatores externos somou-se a derrocada do sistema financeiro. Não é possível deixar de relacionar essa derrocada com dois tipos de decisões: por um lado, com o conjunto de reformas iniciadas em meados dos anos 1990 com uma agressiva flexibilização das normas que regulavam o funcionamento do sistema financeiro e que permitiu que os bancos e seus acionistas pudessem intervir em outros negócios para além da banca financeira; por outro, o enfraquecimento da capacidade do Estado de regular, controlar e intervir naquelas instituições financeiras que apresentaram problemas ou que descumpriram as leis do país. Um ambiente permissivo permitiu que os grupos econômicos que controlavam a banca financeira usassem os recursos dos correntistas e poupadores tanto em operações especulativas de alto risco, sem as devidas garantias, assim como em empréstimos a membros do grupo e a empresas vinculadas. A isso se somou a grande ingerência política dos grupos financeiros nos governos desde 1992.

Os problemas macroeconômicos, as dificuldades no setor externo e o manejo irresponsável e especulativo da banca privada levaram ao colapso do sistema financeiro. A defesa das reformas que flexibilizaram o sistema financeiro e que limitaram o papel do Estado foi a base das políticas neoliberais que dominaram as políticas públicas nos anos 1990.

O paradoxal é que os setores que defenderam a redução das funções estatais de regulação e controle no âmbito financeiro, não hesitaram um instante em pedir socorro ao Estado para manter a sobrevivência do sistema financeiro. Foi implementado, então, um conjunto de operações de socorro ao setor bancário que, em 1999, ano em que os efeitos da crise afetaram a maioria da população, representaram 30% do PIB equatoriano. Somente um banco, Filanbanco, propriedade do grupo econômico Isaías, recebeu mais de US$ 1,2 bilhões de dólares, o que representou “mais do dobro do que o Estado destinou para a saúde pública entre 1998 e 2001” (1).

O grupo Isaías, proprietário do Filanbanco, a partir de seus negócios no setor financeiro, expandiu suas operações a quase todos os setores da economia. Quando o banco faliu e foi passado para as mãos do Estado – e apesar de ter sido um grupo particularmente favorecido pela operação de socorro bancário – o grupo teve a oportunidade de reestruturar, em condições vantajosas, boa parte dos créditos que tinha junto às empresas vinculadas e inclusive exigiu do Estado a devolução de garantias outorgadas pelos recursos entregues para salvar o banco.

Convertido em um dos grupos econômicos mais poderosos do país, os chefes do grupo Isaías protegeram-se da ação da Justiça refugiando-se nos Estados Unidos. Seu poder paralisou qualquer tentativa do Estado equatoriano, através da Agência de Garantia de Depósitos (AGD), para ressarcir os prejuízos econômicos causados aos depositantes e ao próprio Estado.

Tem razão o governo do presidente Rafael Correa ao afirmar que a decisão de bloquear os bens dos principais acionistas do Filanbanco devia ter sido tomada há dez anos. A longa espera para que se faça justiça permitiu que os irmãos Isaías continuassem e ampliassem seus negócios no Equador (incluindo aí a propriedade de dois canais de televisão aberta e um de tv a cabo) e aumentassem seu poder de influência, amparados por uma justiça lenta e ineficiente, um Estado que se recusou a enfrentá-los e a falta de vontade política dos governos que se sucederam desde 1998 até hoje para cumprir a lei.

A decisão histórica é, sem dúvida, a mais importante das já adotadas por um governo para enfrentar um grupo de poder que se transformou na maior expressão da impunidade, da prepotência e de um poder ilimitado frente à lei e as instituições jurídicas e políticas. Que a falta de memória não sirva de pretexto para esquecer os amargos dias do latrocínio que significou o “socorro” bancário e lançar terra sobre o custo que teve para o Equador e as famílias equatorianas.

Os críticos da decisão da AGD, tomada no estrito respeito às leis vigentes, esgrimem dois argumentos: por um lado, que se trata de uma decisão política e eleitoral: por outro, que é uma ação que tem como objetivo atacar a liberdade de expressão. Os dois são argumentos débeis. É evidente que a decisão, por sua natureza e os interesses em jogo, independentemente do momento em que tivesse sido tomada, tem natureza política. Tanto é assim que nenhum governo teve a coragem de tomá-la até então. Deveria se esperar mais dez anos? Por outro lado, está dentro das atribuições de um governo fixar a agenda para tomar as medidas que considere oportunas de acordo com o contexto político. Em um ambiente de inevitável desgaste devido ao complexo debate constitucional que vive o Equador, a decisão é uma reafirmação da vontade de mudança que o governo Correa assumiu. É uma jogada no tabuleiro político que dá ao governo novamente a iniciativa para defender sua agenda política e comunicacional.

Por outro lado, o caso do grupo Isaías demonstra o acerto da proposta, atualmente em debate constitucional, que aponta para a necessidade da independência dos meios de comunicação frente ao controle por parte de impérios econômicos como o deste grupo. Outro tema que deve ser amplamente debatido é o futuro desses meios e a forma de convertê-los em verdadeiros espaços plurais de opinião.

* Carlos Arcos Cabrera é sociólogo (Equador)


(1) Acosta Alberto, Recordando los entretelones del salvataje bancario, 8 de julho de 2008.

 

 

A TV Globo e o feitiço da cidadania

O jornalismo imita a arte. Tal como no filme “O feitiço do tempo", em que um repórter parte para fazer a cobertura de uma festa e, por algum motivo inexplicável, passa a acordar no mesmo dia, nossa grande mídia parece estar condenada a uma eterna repetição. O tempo passou. A nação reencontrou o caminho da democracia, mas, para boa parte do campo jornalístico, a reconciliação política é algo da ordem do impensável. Perpassada por um caldo de cultura que não admite que a arena do jogo político não comporte mais golpes, nega-se a cumprir sua função fundamental: expressar, com a maior diversidade possível, a complexidade social. Ao não fazê-lo, cerceia o que seria seu fundamento: a liberdade de expressão assegurada no texto constitucional. Torna-se o seu contrário: um obstáculo à efetivação da cidadania.

Quem acompanha a história da imprensa brasileira sabe de suas conexões com interesses dominantes na sociedade fracionada. Conhece, e bem, como são editados fatos e discursos. Tem noção aguda de que a autonomia relativa de uma redação encontra seus limites nos interesses do patronato. Franklin Martins e Helena Chagas estão aí como “respaldos de provas robustas”, “evidências empíricas que valem seu sal” como demonstrou, de forma brilhante, Bernardo Kucinski em seu último artigo para Carta Maior.

É de autoria do jornalista Paulo Francis a máxima segundo a qual “a história é monótona, a cada minuto nasce um leitor idiota”. Parece que, pelo que temos visto nos últimos anos, a suposta idiotia de leitores e telespectadores é algo datado, sem sinalização concreta nos dias atuais. Ainda assim, convém ficar atento a certas “espertezas" que podem custar caro ao campo democrático-popular. Quando isso ocorre, a direita comemora com blocos editorializados no Jornal Nacional. E, claro, a nau dos insensatos ainda chama de bom jornalismo o que não passa de desabrida propaganda ideológica.

Está faltando pouco para que as últimas edições do JN tenham fundo musical. Afinal são comemorativas e o regozijo com uma suposta falha do adversário é conhecido do torcedor brasileiro. Se servir para ocultar novos estudos que comprovam os avanços do atual governo, melhor ainda. Saímos do campo futebolístico e adentramos a arena da luta de classes. Com a elegância da boa resolução visual e o capricho nas chamadas.

Recentemente, o frenesi com um suposto dossiê elaborado na Casa Civil não durou nem duas semanas. Ante as flagrante falhas de roteiro, foi substituído pelo “caso VarigLog" que, previsto para ocupar páginas e telas por alguns meses, durou alguma horas de depoimento no Senado.Um resultado inesperado para aqueles que, desde 2006, não se conformam com um fenômeno inédito: uma desgaste político, já consolidado no imaginário do eleitorado urbano, não se desdobrou em derrota eleitoral. E pior, à reeleição seguiu-se uma impressionante recomposição simbólica do governo.

O enredo agora é o “retorno da inflação" e seu impacto sobre o núcleo pobre da novela diariamente apresentada por William Bonner e Fátima Bernardes. Em tom solene, o casal anunciou na edição de ontem que "O IPCA de 15 de junho ficou acima do esperado: 0,9%. O índice mede a inflação de quem ganha até 40 salários mínimos. Nos últimos 12 meses, a alta foi de 5,89%. Já o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que mede a inflação para os mais pobres, foi de 6,64%." O depoimento de uma empregada doméstica serviu como reforço dramático e calculado ingrediente de desinformação funcional: “Ivonete Alcântara, que ganha R$ 620 por mês, conhece bem essa realidade”. “O que a gente comprava no início do ano, hoje só dá para comprar a metade”

Sejamos francos, só mesmo sendo muito ingênuo para cair no “conto dos dossiês”. Qualquer pessoa, com um mínimo de bom senso, farejaria de longe a óbvia “trampa”. É o velho jornalismo que, como poucos, sabe servir à direita autoritária e suas lideranças renovadas, habituadas ao jogo em que podem tudo perder, menos os interesses e privilégios. Personagens que se apresentam como novos, ávidos por instaurar um " marco zero" assustador.

Uma imprensa que ignora o princípio da publicidade, não permite à cidadania controlar a informação. Mais que desinformar, avoca para si uma função que não lhe pertence, pretendendo tomar decisões vinculantes para o conjunto da sociedade. Um parlamento midiático, formado por editores tucano- lacerdistas,respaldados por seguidos pronunciamentos de ministros do STF a lhes prometerem sustentação legal em sua aventura.

Ainda mais, e isso é o muito relevante, desde 2006 há vários dossiês sendo escondidos no noticiário global. O primeiro veio do Pnad (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio). Para desespero dos expoentes da Teoria da Dependência, que agora elegeram a UDN como modelo: o nível de pobreza caiu 19,18% nos três primeiros anos do governo Lula, o maior recuo em dez anos. Somemos a isso a retomada do emprego, estagnada há uma década, segundo Marcelo Néri, coordenador da pesquisa.

Mas o que mais impressionava no “dossiê” a ser ocultado vinha a seguir: “‘Os pobres e ricos tiveram ganhos expressivos de renda’”, dizia Néri, coordenador da pesquisa. 50% dos mais pobres aumentaram sua renda em 8,5%, enquanto os 10% mais ricos, depois de cinco anos de perdas, tiveram ganhos de cerca 6%. A classe média teve um crescimento um pouco menor, de 5,5% da renda."Era esse o governo que privilegiou banqueiros? Com a palavra os editores de economia. Aqueles que deveriam sempre se pautar por evidências empíricas que valem o sal de todo mês.

Passados dois anos, outros "dossiês" continuam sendo discretamente ocultados sob a forma de breves registros, a serem apagados, rapidamente, no dia seguinte à publicação: A taxa de desemprego, anunciada pelo IBGE, caiu para 7,9%, o segundo menor percentual já registrado pela série histórica do Instituto, desde 2002. Certamente há como neutralizar esse "escândalo". O menor número de desocupados só aumenta os riscos de uma inflação de demanda. Para tudo, dirá um bom editor, há um antídoto farsesco.

Outros “dossiês" dão conta de que o volume de crédito cresceu 32% em um ano; que a Previdência tem maior valor médio de benefícios pagos desde 2001; que a desigualdade de renda do trabalho no Brasil, medida pelo Índice de Gini, teve queda de 7%, entre o quarto trimestre de 2002 e o primeiro de 2008.

Mas o direcionamento do noticiário dos conglomerados deve repetir à exaustão, o que a bancada do JN anunciou como o único fato relevante: "Os alimentos foram de novo os vilões da inflação. O arroz subiu 17,09%. Alta também no preço da batata, tomate, macarrão, carne e pão francês. “O que aumentou é o que o pobre come”, disse uma consumidora”.

Pelo visto, a cobertura jornalística continuará não se ocupando com as análises de políticas públicas, mostrando o que é viável ou não. A telecracia continuará impedindo a discussão política que se impõe. O importante é, através de clara sonegação, informativa continuar trabalhando com velhos e novos fantasmas. Será muito difícil para a imprensa fugir de sua própria danação.

Em “O Feitiço do Tempo", o personagem só pode seguir em frente na vida, se mudar seu caráter. Aqui, justiça seja feita às evidências, a arte não imita o jornalismo.

* Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Observatório da Imprensa.

Por que o governo Lula perdeu a batalha da comunicação

Texto modificado em 30/06/2008, pelo autor.

A mídia na era Lula deixou de funcionar como mediadora da política, passando a atuar diretamente como um partido político de oposição (1). Apesar de disputarem agressivamente o mercado entre si, há mais unidade programática hoje entre os veículos da mídia oligárquica do que no interior de qualquer partido político brasileiro, até mesmo partidos ideológicos como o PT e o PSOL. Todos os grandes veículos, sem exceção, apóiam as privatizações, a contenção dos gastos públicos, a redução de impostos;. a obtenção de um maior superávit primário, a adesão do Brasil à ALCA; todos são críticos à criação de um fundo soberano, ao controle na entrada de capitais, ao Bolsa Família, à política de cotas ns universidades para negros, índios e alunos oriundos da escola pública, à entrada de Venezuela no Mercosul e ao próprio Mercosul. Todos criticam o governo sistematicamente, em todas as frentes da administração, faça o governo o que fizer ou deixar de fazer.

Na campanha da grande imprensa que levou Vargas ao suicídio, o governo ainda contava como apoio da poderosa cadeia nacional de jornais Última Hora. Hoje, não há exceção entre os grandes jornais. Outra diferença desta vez é a adesão ampla de jornalistas à postura de oposição, e sua disseminação por todos os gêneros jornalísticos tornando-se uma sub-cultura profissional . Emulada por editores, prestigiada por jornalistas bem sucedidos e comandada pelos intelectuais orgânicos das redações, os colunistas, essa sub-cultura é dotada de um modo narrativo e jargão próprios.

Em contraste com o jornalismo clássico, que trabalha com assertivas verazes para esclarecer fatos concretos, sua narrativa não tem o objetivo de esclarecer e sim o de convencer o leitor de determinada acusação, usando como fio condutores seqüências de ilações. É ao mesmo tempo grosseira na omissão inescrupulosa de fatos que poderiam criar outras narrativas , e sofisticada na forma maliciosa como manipula falas, datas e números. O enunciador dessa narrativa conhece os bastidores do poder e não precisar provar suas assertivas. VEJA acusou o PT de receber dinheiro de Cuba, admitindo na pró´pria narrativa não ter provas de que isso tenha acontecido. Em outra ocasião, justificou a acusação alegando não haver nenhuma prova de que aquilo não havia acontecido.

Trata-se de uma sub-cultura agressiva. Chegam a atacar colegas jornalistas que a ela se recusaram a aderir , criando na redações um ambiente adverso a nuances de interpretação ou divergências de análise. O meta-sentido construído por essa narrativa é o de que o governo Lula é o mais corrupto da história do Brasil, é incompetente, trapalhão, só tem alto índice de aprovação porque o povo é ignorante ou se deixa levar pelo bolso , não pela cabeça.

Levantam como principal bandeira o repúdio à corrupção. Mas como quase todo o moralismo em política, trata-se de mais uma modalidade de falso moralismo: é o “ moralismo dirigido” que denuncia os “ mensaleiros do PT” e deixa pra lá o valerioduto dos tucanos, onde tudo de fato começou, e mais recentemente o escândalo do Detran de Yeda Crusius, no Rio Grande do Sul onde tudo continua. É “ moralismo instrumental”, que visa menos o restabelecimento da ética e mais a destruição do PT e do petismo.

O que poucos sabem é que essa sub-cultura se tornou dominante graças a uma mãozinha da Globo. … A central de Brasília, dizem jornalistas que trabalharam no sistema Globo, formou uma espécie de “gabinete de crise “ com líderes da oposição pautando-os e por eles se pautando. Vários jornalistas faziam parte da operação, cada um encarregado de uma “fonte” da oposição. Tinham a ordem de repercutir junto àquela fonte, todos os dias, falas e acusações, matérias do dia anterior, entrevistando sempre os mesmos protagonistas: Heloísa Helena, ACM Neto, Gabeira , Onix Lorenzoni. No dia seguinte, os jornais davam essas falas em manchete, como se fosse fatos. Assim surgiu todo um processo de construção de um relato da crise destinado a se tornar a narrativa dominante e única.

A VEJA lançara sua própria operação de objetivos estratégicos muito antes. Entre 2003 e 2006 VEJA produziu 50 capas contra Lula , sendo 18 delas consecutivas (2).

Quando surgiu a fita de Waldomiro Diniz, a revista revelou em esse objetivos em ato falho : “Os ares em torno do Palácio tinham na semana passada sabor de fim de governo.”

Na campanha contra Getúlio a sobre-determinante era a guerra-fria, que desqualificava o nacionalismo e as demandas sindicais como meros instrumentos do comunismo. Hoje a sobre-determinante é o neo – liberalismo que desqualifica opções de política econômica em nome de uma verdade única à qual é atribuído o monopólio da eficácia. A unanimidade anti-Lula da grande mídia só tem paralelo na unanimidade pró-neo-liberal dessa mesma mídia.

Mas temos um paradoxo. O governo Lula tem mantido religiosamente seu acordo estratégico com o capital financeiro, que é o setor dominante hoje no capitalismo mundial e brasileiro. E apesar do vasto leque de políticas públicas de apoio aos pobres, não brigou com nenhum dos outros grupos de interesses do grande capital. Por que então tanta hostilidade da mídia? É como se a grande mídia agisse por conta própria, pouco ligando para a dupla capital financeiro-capital agrário e na qual se apóia..

É uma mídia governista, ou ´”áulica”, na adjetivação de Nelson Werneck Sodré, quando o governo faz o jogo da dependência, como foram os governos de Dutra, Café Filho, Jânio Quadros e Fernando Henrique. E anti-governista, quando os governos são portadores de projetos de autonomia nacional, como foram os governos de Getúlio, Juscelino, que rompeu com o FMI, Jango e agora o de Lula..

Uma mídia que já nasceu neo- liberal, muito antes do neo-liberalismo se impor como ideologia dominante e organizativa das políticas públicas. Nunca aceitaram o Estado que chamam pejorativamente de “ populista”. Em artigo recente na Folha, Bresser Pereira associou diretamente o discurso da mídia contra o populismo e sua inclinação pelo golpe à nossa extrema pobreza e polarização de renda. “Como a apropriação do excedente econômico não se realiza principalmente por meio do mercado mas do Estado, a probabilidade de que facções das elites recorram ao golpe de Estado quando se sentem ameaçadas é sempre grande.” Diz ainda que nossas elites “estão quase sempre associadas às potencias externas e às suas elites.” Daí, diz ele ”O que vemos na imprensa , além de ameaças de golpe é o julgamento negativo dos seus governantes…” (3)

A incompatibilidade entre governos populares portadores de projetos nacionais e a mídia oligárquica é de tal ordem que muitos desses governantes tiveram que jogar o mesmo jogo do autoritarismo, para dela se proteger. Getulio criou a Hora do Brasil como programa informativo de rádio para defender a revolução tenentistas contra a oligarquia ainda em 1934, quando o regime era democrático, fundado na Constituição de 34 (4). No Estado Novo foi ao extremo de instituir a censura previa através criando o Departamento de Imprensa e Propaganda. (DIP). No em seu retorno democrático, estimulou Samuel Wainer a criar sua cadeia Última Hora.

Estas reflexões, se têm algum fundamento, mostram como foi equivocada a política de comunicação do governo Lula, a começar por não atribuir à comunicação e às relações com a mídia o mesmo peso estratégico que atribuiu às suas relações com a banca internacional. Nem sequer havia um comando único para a comunicação, que sofreu um processo de feudalização. Só na presidência, três feudos disputavam espaço a Secom, o Gabinete do Porta-Voz e Assessoria de Imprensa. Fora dela, dois ministérios definiam políticas públicas na esfera da comunicação: Ministério das Comunicações e Ministério da Cultura.

Propostas longamente discutidas ainda no âmbito dos grupos de jornalistas do PT, e pelos funcionários da Radiobrás, não foram sequer discutidas. Nesse vazio, o único grande aparelho de comunicação social do governo, o sistema Radiobrás acabou embarcando numa política editorial chamada de “comunicação cidadã,” que tinha como preocupação fundamental e explícita de dissociar-se do governo do dia. O que é pior: despojava a Radiobrás de sua atribuição formal de sistema estatal de comunicação. Isso num momento histórico que exigia, ao contrário: reforçar o sistema estatal de comunicação.

Pouco experiente em jornalismo político, a equipe não conseguiu resolver de forma criativa a contradição entre fazer um jornalismo veraz de qualidade e politicamente relevante, e ser ao mesmo tempo um serviço estatal de comunicação. Com definições opacas, que nada acrescentavam ao que se entende por jornalismo, acabaram desenvolvendo um jornalismo de tipo alternativo, parecido ao que fazem as ongs e movimentos sociais. (5)

A importante mudança do papel da Radiobrás nunca foi discutida no Conselho da Radiobrás. O corpo da Radiobrás chegou a se entusiasmar com a idéia sempre simpática a jornalistas, mas simplória, de deixar de ser “chapa-branca”, mas acabou não havendo muita harmonia entre a nova direção e as bases. Uma apregoada “gestão participativa”, ficou mais no papel do que na prática.

Em minucioso relatório sobre as conquistas da Radiobrás perto do final do primeiro mandato, o presidente do Conselho enumerou os muitos avanços técnicos, mas apontou que a Radiobrás havia criado uma outra missão e outro papel para si, sem discutir essas mudanças previamente com o próprio governo. Também apontou ser falso o debate que contrapõe comunicação de caráter oficial com o direito do cidadão à boa informação.

Mais equivocada ainda foi a proposta de acabar com a obrigatoriedade da Voz do Brasil, formulada pela direção da Radiobrás logo no primeiro ano do mandato de Lula, a partir dos conceitos neo-liberais de que o Estado não faz parte da esfera pública e a liberdade de imprensa do baronato da mídia é a própria liberdade de imprensa . A Radiobrás chegou a co- patrocinar no anexo II da Câmara dos Deputados, junto com os Mesquitas um seminário para apoiar a flexibilização da Voz do Brasil.

Essa mesma visão ingênua levou a Radiobrás a adotar como sua e como se fosse a única possível, a narrativa da grande imprensa na grande crise do mensalão, que como vimos foi em grande parte articulada entre o sistema Globo e a oposição. Embora só hoje se saibam alguns detalhes dessa operação, as forçadas de barra no noticiário e nas manchetes eram discerníveis a qualquer jornalista experiente.

Naquele momento, a Radiobrás era o único sistema de comunicação social capaz de criar uma narrativa realmente independente da crise, que sem ser chapa branca também não fosse submissa à articulação comandada pela Globo. Mas quando veio a crise, seu projeto editorial entrou em parafuso. Mais do que isso: a crise traumatizou a direção da empresa que viu ruir a bandeira ética do PT, sob a qual muitos deles cresceram, formaram-se e criaram sua identidade pública. Só um estado catatônico poderia explicar o fato da Radiobrás; dar ao vivo e na íntegra o depoimento de Roberto Jefferson de junho de 2005 como se quisesse se colocar à frente do sistema Globo. No momento crucial da crise cortou um discurso de Lula em Luziania, o que nem a Globo fez.

Foi a fase em que manchetes da Agência Brasil rivalizavam com as da grande imprensa na espetacularização da crise e na disseminação de noticias infundadas. Entre essas manchetes está a acusação nunca comprovada do dia de renuncia de Zé Dirceu((16/06/05) : “ Ex-agente do SNI diz que Casa Civil está envolvida nas provas dos correios”. E a noticia falsa de que “Miro Teixeira confirmou as acusações de Jeffersson”, dada no mesmo dia 21/06;05 em que até a grande imprensa admitia que Miro Teixeira não havia confirmado essas acusações. Mesmo sem atentar para a dimensão política desse tipo de noticiário, sua fragilidade era incompatível com o padrão que se espera de uma comunicação de Estado.

Outras manchetes meramente reproduziam falas de lideres da oposição:”Nada poderá restringir nosso trabalho na CPI”, diz líder do PFL ( 17/056/05) ou “ PFL e PSDB alegam que PT violou legislação ( 22/06/05). …. Naquele momento nascia o processo de colonização da comunicação de governo e do Estado pelo ideário liberal-conservador , que acabou levando ao fechamento intempestivo da própria Radiobras. ..

Fechar a Radiobrás foi o ato síntese de todos os grandes erros na política da comunicação do governo Lula. Ademais, ao fechar a Radiobrás o governo violou a Constituição que manda coexistirem os três sistemas; púbico, privado e estatal E não é à toa que a Constituinte cidadã assim decidiu. Como sabemos, diversas vezes a grande mídia latino-americana apoiou golpes de Estado, algo inimaginável nas democracias dos países centrais. Ter um sistema Estatal de comunicação minimamente funcional , com credibilidade e legitimidade junto á populaçãoé uma espécie de apólice de seguro contra golpes de Estado.

O governo lidou com a comunicação como se a nossa democracia fosse igualizinha a democracia americana. Mas o que vale para os Estados Unidos da América, pode não valer para o Brasil. O Estado americano não tem uma Radiobrás ou uma Voz do Brasil, porque nunca sofreu um golpe midiático, mas tem a Voice of America, para defender seus interesses imperiais. O Estado brasileiro não contempla interesses imperiais, mas precisa se defender do golpismo e das pressões externas sobre a Amazônia. Por isso precisa de uma Radiobrás e de uma Voz do Brasil.

(1) Observação feita originalmente por Venício Lima num texto para o Observatório da Imprensa.

(2) Nesse mesmo período, houve quatro outras capas dedicadas a Lula neutras, e nenhuma a favor.

(3) Folha de S. Paulo, 05/05/2008, pg B2. Governar Países Pobres.”

(4) Portanto é falacioso o argumento de que a Hora do Brasil é filha do Estado Novo e inspirada em Goebbels. Sua inspiração foi muito mais o programa Conversas ao pé da lareira de Roosevelt, surgido sem 1933. Conf.: A Voz do Brasil, Lassance, A . Mimeo, 12007.

(5) O texto fundador dessa proposta editorial se entitula: Jornalismo de espírito público não pode ser “chapa branca.” O titulo consegue cometer duplo pleonasmo, já que jornalismo só pode ser de espírito público e sendo assim não pode ser chapa branca. In: Comunicação & Educação, Ano X, numero 2, maio/agosto de 2005, pp227-232.

Os desafios do Fórum de Mídia Livre

A luta pela recuperação da palavra crítica é latino-americana e internacional. Em janeiro de 2009, Belém do Pará estará sediando mais uma edição do Fórum Social Mundial. Podemos, de agora até o final do ano, trabalhar pelo fortalecimento dessa articulação e pela construção de uma agenda de debates que aponte para propostas concretas para a democratização da comunicação e da informação.

No dia 14 de maio deste ano, um grupo de mais de 750 intelectuais argentinos lançou uma carta aberta à sociedade alertando para o crescimento de um clima golpista no país, com participação ativa dos grandes meios de comunicação. Além disso, o documento advertiu os governos latino-americanos para uma batalha simbólica que não está sendo enfrentada. A manifestação dos intelectuais argentinos identifica bem um problema estratégico relacionado à atuação da mídia em toda a América Latina. O contexto político argentino fornece a moldura dessa advertência. Uma advertência que é pertinente à realidade política de toda a América Latina e que merece toda a nossa atenção. Os signatários do documento divulgado em Buenos Aires definiram do seguinte modo o contexto da crise política na Argentina, explicitada a partir da mobilização do setor ruralista contra o governo de Cristina Kirchner:

“Como em outras circunstâncias de nossa crônica contemporânea, hoje assistimos em nosso país a uma dura confrontação entre setores econômicos, políticos e ideológicos historicamente dominantes e um governo democrático que tenta implementar determinadas reformas na distribuição de renda e adotar estratégias de intervenção na economia. A oposição às retenções – compreensível objeto de litígio – deu lugar a alianças que chegaram a lançar a ameaça da fome para o resto da sociedade e lançaram questionamentos sobre o direito e o poder político constitucional do governo de Cristina Fernández para efetivar seus programas de ação, a quatro meses de sua eleição pela maioria da sociedade”.

O que essa realidade tem a ver conosco?

Tem a ver na medida que se refere a processos que nos são bastante familiares aqui no Brasil. Senão, vejamos as palavras seguintes do manifesto dos intelectuais argentinos sobre a natureza da ação da oposição ao governo de Cristina Kirchner:

“Instalou-se um clima de desconstituição que tem sido considerado com a categoria do golpismo. Não, talvez, no sentido mais clássico de incentivar alguma forma mais ou menos violenta de interrupção da ordem institucional. Mas não há dúvida de que muitos dos argumentos que se ouviram nestas semanas têm paralelos ostensivos com os que, no passado, justificaram esse tipo de intervenções e, sobretudo, um muito reconhecível desprezo pela legitimidade governamental”.

Essas palavras soam familiares. Elas falam da “barbárie política diária da mídia” e de uma “atmosfera política perigosa” alimentada pelos grandes meios de comunicação:

“Na atual confrontação em torno da política de retenções (impostos sobre produtos de exportação) desempenharam e desempenham um papel fundamental os meios massivos de comunicação mais concentrados, tanto audiovisuais como gráficos, de altíssimos níveis de audiência, que estruturam diariamente a realidade dos fatos, que geram ‘o sentido’ e as interpretações e definem ‘a verdade’ sobre atores sociais e políticos a partir de variáveis interessadas que excedem a busca de audiência. Meios que gestam a distorção do que ocorre, que difundem o preconceito e o racismo mais espontâneos, sem a responsabilidade por explicar, por informar adequadamente nem por refletir com ponderação as mesmas circunstâncias conflitivas e críticas sobre as quais operam”.

O documento prossegue:

“Esta prática de autêntica barbárie política diária, de desinformação e discriminação, consiste na gestação permanente de mensagens formadoras de uma consciência coletiva reacionária. Privatizam as consciências com um sentido comum cego, iletrado, impressionista, imediatista, parcial. Alimentam uma opinião pública de perfil anti-político, que desacredita a existência de um Estado democraticamente interventor na luta de interesses sociais. A reação dos grandes meios diante do Observatório da discriminação na rádio e na televisão mostra claramente um desprezo fundamental pelo debate público e pela efetiva liberdade de informação”.

Diante dessa prática de “barbárie política diária de desinformação e discriminação”, os intelectuais argentinos colocam como desafio para toda a América Latina, ou seja, para todos nós, “a recuperação da palavra crítica em todos os planos das práticas e no interior de uma cena social dominada pela retórica dos meios de comunicação e pela direita ideológica de mercado”. A recuperação de uma palavra crítica que “compreenda a dimensão dos conflitos nacionais e latino-americanos, que assinale as contradições centrais que estão em jogo, mas sobretudo que acredite ser imprescindível voltar a articular uma relação entre mundos intelectuais e sociais com a realidade política”.

Esse é um dos principais desafios que está colocado diante de nós que estamos construindo esse movimento de Mídia Livre no Brasil. Não se trata de uma luta que se encerra nas fronteiras nacionais. Não se trata também de um debate que se limita à reivindicação por critérios democráticos na distribuição de verbas públicas para o setor de comunicação. Há uma dimensão política nesta disputa que envolve um enfrentamento com fortes estruturas de poder político e econômico ligadas ao grande capital financeiro. É disso que se trata.

A luta pela recuperação da palavra crítica é uma luta latino-americana e internacional. É importante ter isso em mente no momento em que realizamos o primeiro Fórum de Mídia Livre no Brasil. Nossos problemas não são exclusividade nossa. Fazem parte de uma realidade internacional onde a chamada grande mídia não é um feudo dissociado de outras estruturas de poder. Como já disse Bernard Cassen, os proprietários dos grandes sistemas midiáticos são empresários transnacionais que, na imensa maioria dos casos, têm negócios diversificados em outros setores para além da mídia. Ou seja, eles estão conectados ao mercado global e são atores centrais do processo de globalização. Enquanto tal, conclui Cassen, esse sistema é um vetor ideológico estratégico da globalização do capital.

Cabe a nós, portanto, trabalhar pela construção de uma articulação latino-americana e internacional em torno da proposta de uma mídia livre. Temos uma grande oportunidade histórica para fazer essa luta avançar. Em janeiro de 2009, Belém do Pará estará sediando mais uma edição do Fórum Social Mundial. A agenda da mídia e da comunicação mais uma vez estará presente nos debates do FSM. Podemos, de agora até o final do ano, trabalhar pelo fortalecimento dessa articulação e pela construção de uma agenda de debates que aponte para propostas concretas para a democratização da comunicação e da informação. Esse é um dos principais desafios que está em nossas mãos.

* Joaquim Ernesto Palhares é diretor da Agência Carta Maior