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TV pública: WebTV, o debate estratégico que não houve

O debate sobre a TV Pública no Brasil passou ao largo de uma questão estratégica. Tudo indica que as diferenças entre internet e televisão digital tendem a diminuir cada vez mais e que boa parte da discussão atual pode ficar sem sentido muito antes da mudança de padrão técnico no sistema brasileiro de TV. 

O novo padrão de televisão e a internet usam sinais digitais, portanto as imagens podem ser visualizadas tanto no aparelho da sala como no computador. A badalada interatividade, que dá ao usuário o poder de interferir na programação, é também idêntica tanto na TV como no PC, porque são sinais digitais enviados para o emissor usando o que os técnicos chamam de canal de retorno. 

A briga pela alocação de canais no espectro digital tem a ver com o uso de faixas de transmissão, mais ou menos como é agora, só que com uma qualidade de imagem e amplitude de freqüências, muito maiores. Mas esta briga pode tornar-se inócua se os usuários decidirem ver televisão através de uma webtv, que é um site da internet que transmite programas de televisão. Qualquer um pode montar uma webtv sem ter que disputar uma freqüência concedida pelo governo. 

Para ter acesso à televisão digital os usuários nas grandes cidades podem escolher o sinal aberto recebido via antena ou o sinal por cabo e telefone (banda larga) para visualização num monitor acoplado a um computador.  

O usuário é que terá a palavra final sobre quando e onde vai sintonizar a TV digital. Pode então surgir uma situação curiosa e que não está sendo levada em conta nos debates sobre a nova TV.  

O usuário poderá assistir à TV digital, na sua sala de estar, da mesma forma que utiliza o seu receptor analógico atual porque o que ele quer é entretenimento, quer ver novelas, um filme, uma partida de futebol, um show e por aí vai. Ele quer sentir-se num cinema, num teatro, num estádio ou num espaço musical. Este é o espaço onde a família e os amigos se reúnem para assistir juntos a um mesmo programa. 

Quando o usuário desejar interatividade, muito provavelmente vai para o seu computador, onde ele adota uma postura diferente do sofá da sala. É natural, porque manipular um mouse e um teclado é muito mais cômodo numa cadeira ou poltrona de escritório. Além do mais, a interatividade é quase sempre uma atitude individual. Vai ser muito difícil alguém tentar acessar a conta bancária na TV da sala de jantar enquanto o resto da família quer ver novela, filme ou um jogo de futebol. 

Quando se leva em conta todos estes fatores percebe-se que a discussão sobre canais digitais na verdade pode tornar-se inócua porque a ampliação da malha de banda larga para uso por computadores pode resultar tão ou mais importante do que toda a complicada divisão de freqüências entre emissoras de TV, grupos de comunicação, organizações da sociedade civil e governos. 

Se o mesmo sinal que serve para fluxo de dados também pode ser usado para transmitir imagens de vídeo, então é preferível ampliar a rede de banda larga porque ela é estrategicamente mais importante na medida em que é uma alavanca de crescimento econômico.  

Uma internet rápida, democrática e barata é essencial para a indústria, comércio, agricultura, ensino, pesquisa e setor de serviços. Mais ainda quando se sabe que a tendência no universo da comunicação é a convergência de meios, na qual a televisão acabará se combinando com a comunicação textual, com o rádio e com os sistemas interativos. 

Ao pensar na televisão pública, não se pode deixar de lado este contexto, porque são grandes as possibilidades de que muitos dos pontos que hoje dividem opiniões tornem-se obsoletos com o avanço das tecnologias e a redefinição dos comportamentos do público. 


Enquanto brigamos por freqüências, as empresas de telecomunicações e os conglomerados de comunicações monopolizam a rede de banda larga da internet e freiam a democratização deste espaço que é muito mais estratégico para o desenvolvimento do país e de todos nós.

 

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Quem ameaça a liberdade de imprensa

A II Conferência Legislativa sobre a Liberdade de Imprensa, promovida pela Unesco, Associação Nacional de Jornais (ANJ) e pela Câmara dos Deputados, realizada na terça-feira (8/5), deu a oportunidade de saber, mais uma vez, que para a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), a ANJ, a Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner) e seus associados da grande mídia o Brasil tem vivido e continuará a viver, pelo menos nos próximos quatro anos, sob a ameaça permanente do autoritarismo e do dirigismo do Estado no que se refere à liberdade de imprensa (ver "Manifesto pela Liberdade de Expressão"). 

Não bastam o "estado democrático de direito", as garantias constitucionais, as declarações quase diárias das principais autoridades públicas de reafirmação da liberdade de imprensa. Não basta o exercício pleno dessa liberdade e o rigoroso cumprimento das normas e dos procedimentos legais nos casos de conflito de interesses que não logram ser resolvidos pela negociação direta. Até mesmo as decisões judiciais são consideradas como "censura prévia". E mais: mesmo projetos de lei que foram apresentados por parlamentares democraticamente eleitos e tramitam regularmente no Congresso Nacional são considerados "preocupantes". 

Editoriais de grandes jornais e revistas expressaram essa "preocupação" nos últimos dias. O diário O Globo ("Acenos positivos", 10/5), por exemplo, afirma que "a incerteza continua" em relação à manutenção da liberdade de imprensa. Primeiro, porque o Poder Público não acredita nos mecanismos de auto-regulação do setor de comunicação e publicidade, e, segundo, pela portaria da Classificação Indicativa para os programas de televisão que é "ação indiscutível de censura prévia" (sic). 

Quinto poder 

Para o observador, eventos, declarações e posicionamentos como esses tem um sentido pedagógico inegável. E mesmo sendo repetitivo, é importante chamar a atenção para a estratégia permanente dos principais atores que desde sempre dominam a comunicação no Brasil. 

Liberdade de imprensa não é a mesma coisa que liberdade de expressão ou liberdade de informar e de ser informado. Um direito individual – a liberdade de expressão – não pode ser, sem mais, equacionado com o direito de "indústrias de comunicação" cada vez maiores e mais capazes de controlar o que as pessoas escutam, ouvem e lêem. Não há qualquer simetria entre o seu, leitor, direito de expressão e a liberdade de imprensa dos integrantes da Abert, da ANJ ou da Aner. 

Desde que as instituições de mídia se transformaram, no mundo moderno, em grandes grupos empresarias e constituíram um setor em expansão chamado de "economia da cultura", além de poderosos atores econômicos elas são também poderosos atores políticos capazes, por exemplo, de exercer enorme influência na determinação das agendas públicas. Esses grupos empresariais de mídia têm, claro, interesses privados a defender e a preservar.  

Dessa forma, a ameaça à liberdade de imprensa que historicamente partia somente do Estado – porque absoluto ou autoritário e não-democrático – já há algum tempo parte também dos interesses que esses grupos de mídia têm a defender e que acabam por contaminar sua autonomia e independência editorial. É por isso que se fala na "privatização da censura". E é por isso que o conceito da imprensa como quarto poder – representante e fiscalizador do interesse público – está sendo substituído pelo novo conceito de um quinto poder, agora fundado na cidadania e necessário para fiscalizar inclusive o poder da própria grande mídia. 

Direito fundamental 

O que sempre falta nas reiteradas manifestações de "desconfiança" do empresariado privado de mídia em relação ao Estado democrático de direito e a sua ameaça à liberdade de expressão é a reafirmação de que a mídia é, por excelência, um serviço público. Além disso, a radiodifusão é uma concessão pública, outorgada pela União em nome do público e que deveria, portanto, nortear sua ação tendo em vista o interesse público e não o interesse privado. 

O que falta, finalmente, é reafirmar que a comunicação é um direito fundamental de todo cidadão, longe, muito longe de se transformar em realidade neste Brasil onde, historicamente, uns poucos grupos controlam o que deveria ser controlado democraticamente por todos: a liberdade de expressão.

 


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Classificação e Publicidade: em defesa da lei da selva na terra de ninguém

Publicado originalmente no Observatório da Imprensa – www.observatoriodaimprensa.com.br

 

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Os norte-americanos criaram os neo-cons, neo-conservadores, turma da pesada cujo símbolo é o dedo no gatilho – primeiro atiram e depois perguntam quem vem lá.   

No Brasil, terra dos pudores e manhas, é difícil achar quem queira assumir-se integralmente como neo-lib, neoliberal. Preferem o uniforme "libertário", sem se incomodar em parecer os antigos anarquistas que combatiam qualquer ação reguladora do Estado.  

Estes libero-anarquistas detestam normas, limites e ordenações, prostrados aos pés do Deus do Mercado e de sua cônjuge, a Deusa Livre Iniciativa. Usam o crachá de democratas, mas desprezam solenemente o bem-comum, o interesse público, a comunidade e a sociedade.  

Esse é o mix ideológico do estranhíssimo lobby que reúne os adversários da classificação indicativa da programação de TV e da regulamentação da publicidade de cervejas na mídia eletrônica. O denominador comum é o rancor contra qualquer tipo de regulamentação. Em nome de uma liberdade imprecisa e indefinida, advogam a lei da selva.  

Compromissos esquecidos  

A classificação indicativa da programação da TV, assim como o controle sobre a publicidade de bebidas alcoólicas, está prevista de forma explícita e insofismável em diversas passagens dos artigos 220 e 221 da Constituição: 

** "Compete à lei federal regular as diversões e espetáculos públicos, informar sobre a sua natureza e as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada (art. 220, parágrafo 3º, inciso I).  

** "Compete à lei federal estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no artigo 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente." (art. 220, parágrafo 3º, inciso II). 

** "A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais nos termos do inciso II do parágrafo anterior e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso." (art. 220, parágrafo 4º). 

O citado artigo 221 prevê no seu inciso IV que a produção e programação das emissoras de rádio e TV devem respeitar "os valores éticos e sociais da pessoa e da família". 

O legislador-constituinte não foi casuísta, foi preciso. Excepcionalmente claro e objetivo. Não deixou qualquer contradição entre a letra e o espírito da lei como muitas vezes acontece. Preocupado com o uso indevido das concessões de rádio e TV – e com as confusões costumeiras entre o público e privado – amarrou muito bem a regulamentação sobre a programação e sobre a difusão de publicidade nociva à saúde. O interesse comercial não pode impor-se ao interesse social, sobretudo numa esfera claramente pública (o espectro da radiodifusão). 

Os juristas contratados pelas cervejeiras, empresas de radiodifusão e de propaganda desta vez precisarão suar as suas camisas de seda para encontrar aquelas famosas brechas ou imprecisões que convertem nossas leis num emaranhado de lapsos. Estranha muito que o Conar, geralmente apontado como paradigma de auto-regulamentação, no caso dos comerciais de cerveja esqueça os seus compromissos com a saúde pública, seduzido pelas fabulosas verbas de publicidade das cervejeiras. 

Celebridade instantânea 

O governo Lula não inventou coisa alguma em matéria de classificação indicativa. Deu seqüência ao trabalho de José Gregori ao tempo em que ainda era Secretário de Direitos Humanos do governo FHC, ao igualar a baixaria televisiva a um atentado aos direitos humanos.  

Agora os neo-libs nativos, a pretexto de fidelidade libertária, passam ao largo dos compromissos com a preservação dos valores humanos e morais indispensáveis à democracia. 

Os ministérios da Justiça e da Saúde e a presidência da República estão certos ao exigir uma regulamentação nessas duas frentes. O único erro foi a proposta de vedar às celebridades a participação em comerciais de cerveja. Aqui houve intenção de discriminar: a celebridade não tem culpa de ser célebre. Na sociedade do espetáculo em que vivemos a fabricação da fama é instantânea – ou quase. Em apenas 15 minutos qualquer pagodeiro desconhecido pode converter-se num celebrado Zeca Pagodinho. 

Obra coletiva 

Estão errados os neolibertários, liberalóides e falsos democratas ao impedir que a sociedade brasileira produza os antídotos necessários à defesa da saúde e à formação das crianças e adolescentes. 

Nos EUA, pátria do liberalismo e da resistência às regulamentações, a classificação etária para a exibição de filmes em cinemas ou teatros tem mais de meio século. Algumas decisões são eventualmente contestadas, mas ninguém ousaria opor-se à idéia de eliminar os limites. As redes abertas de TV também adotam princípios rígidos para compatibilizar sua grade com horários e faixas etárias.  

O processo civilizador, como obra coletiva, impõe normas. Pretender uma civilização do tipo vale-tudo leva fatalmente a um intransponível beco sem saída.

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Fragmentação versus convergência

Há algum tempo parece haver uma contradição entre a inevitável convergência tecnológica nas comunicações e a crescente fragmentação que tem ocorrido na pesquisa e na formação profissional do campo da Comunicação no Brasil. 

É fato conhecido e estudado que a chamada revolução digital diluiu as fronteiras entre as telecomunicações, a comunicação de massa e a informática, provocando uma convergência tecnológica que está tendo repercussões importantes na economia política, na legislação e no amplo espaço de formação e exercício profissional do setor.  

A própria definição conceitual do campo parece ser melhor expressa pelo plural comunicações que reuniria, numa única palavra, áreas hoje integradas que até há pouco tempo estavam diferenciadas pelas antigas tecnologias.  

É no quadro de referência dessa convergência tecnológica que se postula a necessidade de um novo marco regulatório, de um novo modelo de negócios e, por conseqüência, de uma rediscussão das formas tradicionais de formação profissional – em boa parte ainda orientadas pela clivagem das antigas tecnologias. 

Sentido oposto 

Uma rápida panorâmica sobre o ensino e a pesquisa da Comunicação, no entanto, revela uma ausência de sintonia com o que está a ocorrer na economia política, na legislação e nas profissões do setor. 

A principal entidade científica de Comunicação, a Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, inclui entre os objetos de seus núcleos de pesquisa conteúdos que vão desde a ficção seriada até o turismo e a hospitalidade. 

Já a Compós – Associação dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, lista em seu sítio na internet cerca de duas dúzias de programas de pós-graduação surgidos no país da década de 1970 até hoje. Há informação de que, pelo menos, 25 desses programas estão em funcionamento. Talvez não seja exagero afirmar que a característica principal deles é a diversidade de seu conteúdo e de suas linhas de pesquisa, que vão da semiótica às tecnologias da informação.  

Tanto os núcleos de pesquisa quanto os programas de pós-graduação em Comunicação padecem da ausência de uma "convergência" em torno de um objeto que os articule e os identifique como constituidores de um campo específico de estudo e pesquisa. 

Os últimos anos assistiram também ao surgimento de diversas associações que reúnem pesquisadores em subáreas autodefinidoras de seus respectivos interesses e objetos de pesquisa: Sociedade Brasileira de Pesquisadores de Jornalismo (SBPJor); Fórum Nacional de Professores de Jornalismo; Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Cibercultura; Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação e Política; e a Unión Latina de Economía Política de la Información, la Comunicación y la Cultura, que embora não seja exclusivamente brasileira, reúne pesquisadores brasileiros identificados com esta área. 

Numa importante instituição de ensino e pesquisa – a Universidade Federal da Bahia – houve até mesmo a separação formal entre os estudos da comunicação e da cultura com a criação do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade. Esse foi um movimento, registre-se, em sentido oposto ao que deu origem ao importante Center for Contemporary Cultural Studies, na Inglaterra dos anos 1960, até hoje uma referência para os estudos do campo. 

Políticas públicas 

Claro que essa fragmentação revela o estado de efervescência do campo da Comunicação. Anualmente há um sem-número de congressos, encontros, seminários e, consequentemente, centenas de trabalhos e relatos de pesquisa podem ser apresentados e discutidos. Há novas publicações e novos sítios na internet dessas diferentes entidades e programas.  

A primeira conseqüência desse quadro de fragmentação e ausência de identidade, todavia, aparece na qualidade da formação profissional que predomina na Comunicação. A revista Caros Amigos nº 121 traz longa matéria sobre o que pensam os estudantes brasileiros de jornalismo. A reportagem deveria servir de alerta não só para as muitas centenas de responsáveis pelos cursos de graduação em comunicação (jornalismo) – públicos e privados –, como para todos aqueles que se interessam pelo futuro do jornalismo no país.  

Sem jornalistas com formação humanística sólida e consciência crítica, como avançar em questões – como, por exemplo, a credibilidade – com que se defronta o jornalismo brasileiro?  

A segunda conseqüência, aliás já sentida faz tempo, é a impressionante ausência institucional dos programas e entidades de Comunicação do debate sobre as definições de políticas públicas por que passa o setor. Onde está a contribuição que anos e anos de estudo e pesquisa acumuladas têm a oferecer ao país? 

Formação profissional e participação na formulação de políticas públicas são questões sabidamente complexas e polêmicas. Uma reflexão se impõe, sobretudo no momento em que se discute o futuro do setor e a sociedade brasileira precisa, por isso, da contribuição de todos para fazer avançar a democratização das comunicações.  

É hora de cada um colocar na mesa o que tem e pode oferecer.

 

Active Image publicação autorizada, desde que citada a fonte original.

O efeito-dominó das imagens do massacre de Blackburg

A imprensa noticiou – sem muita ênfase, é verdade – que professores norte-americanos vêm fazendo sérias ressalvas à cobertura televisiva do massacre na universidade da Vírgínia. Consideram que a disseminação livre ou "descontrolada" das imagens do acontecimento poderia suscitar novos comportamentos anômicos dessa mesma natureza, uma espécie de efeito-dominó da catástrofe. 

É difícil estabelecer relações de causa e efeito quando se trata da coexistência do mundo virtual com a realidade sócio-histórica, mas o fato é que a nação norte-americana, ainda traumatizada pelo massacre na Virgínia, assistiu quatro dias depois ao episódio do engenheiro espacial da Nasa que se entrincheirou num prédio, em Houston, para fazer dois reféns, matar um deles e se suicidar. Na verdade, segundo os jornais, este foi apenas o caso mais grave de um dia marcado por ameaças de bombas e de ataques a tiros contra escolas em Nova York, Nova Jersey, Minnesota, Califórnia, Washington, Arizona e Texas. 

O temor quanto ao efeito-dominó parece, assim, ter alguma razão de ser. Há algum tempo, a pesquisadora francesa Marie-José Mondzain, indagando-se sobre a possibilidade de que um crime tenha encontrado o seu modelo nas ficções audiovisuais, dizia que, em sua realidade sensível e suas operações ficcionais, as imagens "se colocam a meio-caminho das coisas e dos sonhos, num entre-mundo, um quase-mundo, onde se dispõem talvez as nossas servidões e as nossas liberdades". 

"Ponto de existência" 

Situar-se a meio caminho entre a representação e o real é propriamente a condição da mídia contemporânea, onde tudo é da ordem do quase: quase-presença, quase-verdade, quase-real e, por que não, quase-mente. O conceito acadêmico de quase-mente parece materializar-se na tecnologia avançada da comunicação, constituída por máquinas de computar e de representar. 

Uma hipótese instigante para isso tudo é a do sistema nervoso central funcionando fora do corpo humano. Algo parece "pensar" fora da subjetividade clássica (tanto a televisão quanto a informática operam processos dinâmicos, análogos a operações mentais), ao mesmo tempo em que se organiza uma realidade feita de imagens táteis, capazes de repetir com verossimilhança as rotinas do cotidiano tradicional e, assim, produzir uma forte sensação de realidade. 

Por esse caminho de uma humanidade artificial se orienta o padrão comunicacional em que a imersão – envolvimento dos sentidos na simulação de um ambiente tridimensional – do indivíduo é a regra principal. Trata-se de algo mais do que um mero tecnicismo do contato entre a mídia e seu público. É uma absorção que leva o indivíduo a viver virtualmente no espaço imaterial das redes de informação, teleguiado pelo mercado. Mais do que simplesmente visual, o contato que se estabelece é tátil, entendido como interação dos sentidos a partir de imagens simuladoras do mundo. 

Vem daí a sensação de se ocupar um ponto qualquer numa ambiência ou numa "paisagem" feita de "matéria" audiovisual ou de compressão numérica em altíssima velocidade. Esta é a idéia do "ponto de existência" (em vez do "ponto de vista"), que permitiria ao indivíduo encontrar uma posição física em meio aos sentidos tecnologicamente prolongados. 

Efeito da falta de convivência 

A sociedade norte-americana é aquela que, em nossa contemporaneidade, mais se aproxima dessa descrição de uma realidade recoberta por mídia e mercado. E tal modelagem tecnológica do mundo não é impermeável, muito pelo contrário, às características históricas e psicossociais de constituição do povo norte-americano – um povo de guerreiros e comerciantes, com aspirações hegemônicas sobre o resto do mundo.  

A instilação coletiva do medo (tida por Hobbes como a emoção fundamental) ao Outro (seja o estrangeiro ou o vizinho) faz parte de estratégias contemporâneas de controle de comportamentos que baseiam seus recursos retóricos na cultura da velha propaganda política. São claros exemplos disto os filmes de catástrofe norte-americanos, assim como toda uma literatura de grande consumo voltada para a acentuação paroxística dos temores sociais e, ao mesmo tempo, o culto às armas que, nos Estados Unidos, se associa à violência física e mental. 

A retórica do bode expiatório (cuja fonte de conhecimento mais antiga é o Levítico, no Antigo Testamento), isto é, a invenção de alguém a quem se atribuam as culpas latentes e manifestas no grupo social, é atualíssima para os grandes demagogos no mundo inteiro, mas é um mecanismo forte nos Estados Unidos, onde a extrema-direita elege como alvos os cidadãos não-brancos, em especial negros e hispânicos.  

Nada impede, porém, o reverso da moeda, ou seja, que a minoria constitua objetos idealizados (a plenitude da cidadania branca, o paraíso artificial do campus escolar etc.) como objeto coletivo da expiação. Este último é investido por emoções negativas, de modo a que se configure como um "Outro" em que se cristaliza a incerteza ou o Mal.  

A violência é o efeito natural da falta de convivência (a democracia define-se aí como o respeito jurídico às diferenças, mas não como aproximação real entre elas) entre os numerosos grupos diferenciados, em geral conotados como guetos. 

O contágio "virótico" das imagens 

Cho Seung-Hui, o autor do massacre na Virgínia, era filho de coreanos, logo, membro de um grupo existencialmente guetificado, embora juridicamente respeitado. A imprensa pode representá-lo como psicótico, mas também é possível concebê-lo, além da hipótese de psicopatia, como uma presa do sofrimento típico de alguém cujas únicas identificações reais se fazem com a mídia. Seu "ponto de existência" transportava-o da incomunicação do gueto à comunicabilidade livre das imagens ficcionais dos videogames e da televisão.  

É possível que se visse como um loser (perdedor), e nada pior do que isto numa sociedade em que mídia e mercado divide o mundo entre perdedores e vencedores. A arma fácil, ao alcance da mão na esquina mais próxima, é o argumento extremo. 

É certo que, como frisamos, tudo isso diz respeito aos traços da sociedade norte-americana. Mas no tocante ao contágio "virótico" das imagens televisivas, ou mesmo à cobertura sensacionalista dos jornais, vale a pena começarmos a botar as barbas de molho. Já se vem observando que comportamentos violentos ocorridos no Rio de Janeiro e transmitidos tais e quais pela mídia instantânea são replicados com a mesma crueza por parte de pequenos marginais em outras cidades do país.

 

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