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Fascismo midiático, TV Globo e paparazzi: tudo a ver

A TV Globo mais uma vez se vê envolvida num episódio que merece uma reflexão profunda. Câmara escondida e invasão de privacidade com o visível objetivo de atingir uma pessoa com nome, endereço e posição política definida. Na verdade, o que foi feito com Marco Aurélio Garcia, assessor internacional do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, é um exemplo típico de fascismo midiático.

Pior ainda: a Globo foi repercutir o gesto de Garcia, um gesto sem fala e sem que se possa afirmar com precisão a que estava relacionado, embora em princípio fosse atribuído a divulgação de uma informação pela própria Globo de um defeito no avião sinistrado da TAM, o que tira a culpa do governo pela tragédia. Acabou virando uma verdade absoluta, sem nenhum tipo de contestação, só pelo fato de a emissora de maior audiência do país ter decidido divulgar.

Dois políticos foram escalados para comentar o top-top de Garcia – os senadores Pedro Simon e Jefferson Péres. Simon, com o seu estilo teatral de sempre, criticou o que ele considerou uma comemoração, enquanto Peres, ao velho estilo udenista que o caracteriza, seguiu a mesma linha e disse que o gesto de Garcia representava uma afronta ao povo brasileiro. De quebra, o pessoal da Globo foi ouvir um parente de uma das vítimas da tragédia do avião da TAM no aeroporto de Congonhas, que também fez duras críticas ao autor do gesto.

No caso de Marco Aurélio Garcia, como se trata de uma figura polêmica cujas posições em matéria de política externa desagradam os setores conservadores, a TV Globo aproveitou para queimar a imagem do cidadão, ainda mais em um momento que os brasileiros estão chocados e impactados com a tragédia aérea. Só faltou a TV Globo, como estão fazendo outros veículos, ter acionado alguém para pedir a exoneração do autor do gesto.

Ética no jornalismo

É o caso de se perguntar: se alguém vinculado ao conservadorismo fosse flagrado, como foi Marco Aurélio Garcia, a direção da Globo, leia-se Carlos Schroeder e Ali Kamel, autorizaria a divulgação escancarada da imagem? No momento que os jornalistas vão discutir o Código de Ética nos próximos dias 3, 4 e 5 de agosto em um congresso extraordinário da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), o episódio serve para se refletir sobre o tema.

Senadores como Pedro Simon e Jefferson Péres deveriam, isto sim, pensar duas vezes antes de aparecer nos tais cinco minutos de fama que o Jornal Nacional oferece aos políticos, sobretudo àqueles que defendem posições muito próximas aos interesses da mídia conservadora.

Quanto ao acidente aéreo propriamente dito, mais uma vez a mídia tentou, de uma forma equivocada, fazer um julgamento precipitado sobre as causas da tragédia. Antes de mais nada, os principais jornais brasileiros já tinham escolhido o governo federal como o principal culpado. Não se trata de criticar ou aplaudir este governo, que, por sinal, é um dos mais ambíguos da história brasileira, mas aí é outra história. Mas, de antemão, apontar o governo como culpado de uma tragédia, sem nenhuma base técnica, isto tem um nome: manipulação da informação – algo que os meios eletrônicos, sobretudo, têm feito com muita freqüência de uns anos para cá.

Quanto a Marco Aurélio Garcia, não é de hoje que a mídia conservadora tem feito marcação cerrada sobre ele. O colunista Augusto Nunes, do Jornal do Brasil, numa ocasião chegou a mencionar a precariedade da dentição de Marco Aurélio ao criticá-lo. Mas, até aí, como tal comentário só mostra o baixo nível jornalístico do colunista, não há grandes problemas. É um direito que assiste ao jornalista se ocupar dos dentes de Marco Aurélio, em nome da liberdade de expressão… Até porque o Brasil lidera o ranking mundial dos desdentados, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), de acordo com revelação feita pelo cirurgião buco-maxilo-facial Fabio Guedes.

Quando uma emissora de televisão coloca um cinegrafista clandestino para invadir a privacidade do assessor internacional de Lula, ainda mais o gesto filmado sendo comentado com a maior naturalidade, com o visível intuito de queimar Marco Aurélio Garcia, o fato se torna grave. Não é uma questão de liberdade de expressão, mas, como se dizia antigamente, de jornalismo marrom. Muitas vezes na Europa, os paparazzi – os tais fotógrafos que se escondem para bater uma foto sensacional em um momento de privacidade de alguma figura pública, ator, atriz, jogador de futebol, autoridade ou político – perdem processos milionários na Justiça, exatamente porque os magistrados consideram a imagem colhida como invasão de privacidade.

Trata-se, isto sim, de uma corrida desenfreada atrás de audiência. Muitos órgãos de imprensa embarcam nesta canoa aética e publicam as fotos com grande destaque. Quando perdem ações na Justiça, na Europa ninguém é acusado de tolher a liberdade de expressão, um conceito utilizado a todo o momento pelas grandes empresas de comunicação que se sentem autorizadas a fazer o que bem entendem, seja invadindo clandestinamente a privacidade de alguém, seja montando imagens ou simplesmente utilizando meias verdades e mentindo. Até mesmo quando apóiam golpes de Estado e são advertidos ou punidos por isso, os meios eletrônicos botam a boca no trombone em nome da liberdade de expressão. E quando perdem o direito de ter renovado o canal, aí nem se fala.

Às favas com a ética

A TV Globo, ao apresentar a imagem de Marco Aurélio Garcia, simplesmente repetiu o que os paparazzi fazem diariamente em nome de um jornalismo para lá de discutível.

No caso em questão, vale repetir, a emissora de maior audiência do país, ao se sentir ameaçada no telejornalismo por uma outra emissora concorrente, faz o possível e o impossível para ganhar mais pontos no Ibope – pois, afinal de contas, precisa a qualquer custo manter o primeiro lugar. Da mesma forma como o então ministro Jarbas Passarinho mandou "às favas os escrúpulos" ao votar, em dezembro de 1968, favoravelmente à decretação do AI-5, os diretores da Globo mandaram a ética jornalística às favas. Fizeram a opção pelo fascismo midiático. Os senadores Simon e Péres, consciente ou inconscientemente, embarcaram no esquema. O parente de uma das vítimas da tragédia com o avião da TAM foi envolvido na base da emoção.

É bom tirar algumas conclusões sobre o episódio, que deve servir de alerta para os homens públicos deste país atentem sobre até que ponto uma emissora de televisão tudo pode, impunemente. Se, amanhã, alguém que se sinta ofendido com a invasão de sua privacidade entrar na Justiça, como fazem os atingidos pelos paparazzi, aí, podem crer, haverá uma grita orquestrada em favor da liberdade de expressão. E a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) será acionada por algum big shot midiático.

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ACM: desaparece um símbolo do coronelismo eletrônico

Faleceu na sexta-feira (20/7), aos 79 anos, o senador Antonio Carlos Magalhães (DEM-BA). Sua biografia e, sobretudo, sua carreira política são paralelas à consolidação de um sistema de comunicação de massa na Bahia e no Brasil. Político profissional desde o início da década de 1950, ele talvez tenha sido a figura emblemática por excelência do coronelismo eletrônico no país. Esse, aliás, é um importante aspecto da sua vida pública que os vários obituários publicados pela grande mídia ignoram ou ao qual fizeram apenas referências ligeiras.

O coronelismo eletrônico exige o compromisso da participação recíproca tanto do poder concedente como do concessionário que recebe a outorga e explora o serviço público. Como deputado estadual, federal, governador, ministro das Comunicações e senador, ACM foi ativo como concessionário – direto e/ou indireto – de emissoras de rádio e de televisão, mas, sobretudo, como poder concedente.

Ao longo de sua vida pública, ACM e seus aliados "carlistas" conseguiram construir uma extensa rede de radiodifusão na Bahia, um dos estados da Federação onde há maior controle da radiodifusão por políticos profissionais.

Motivação poderosa

Levantamento feito em 2005 mostrou que cerca de 30% (65) das 217 emissoras baianas de rádio (AM e FM) e televisão eram controladas por políticos no exercício do mandato eleitoral. Desse total, 41 pertenciam a senadores, deputados federais, deputados estaduais, prefeitos, vice-prefeitos e vereadores; outras 24 a seus familiares – como pais, esposas, filhos e cunhados. A maioria dessas emissoras está localizada no interior do estado e são 34 rádios FM, 27 AM e quatro canais de televisão.

Mais recentemente, estudo "Rádios comunitárias: coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)" revelou que 55,9% (90) das 161 rádios comunitárias autorizadas pelo Ministério das Comunicações a funcionar na Bahia entre 1999 e 2004 são controladas por políticos. Vinte delas são controladas por políticos do DEM (ex-PFL), o partido de ACM.

O grupo de ACM controla a TV Bahia, que passou a ser afiliada da Rede Globo em 1987, substituindo a TV Aratu, a afiliada dos 18 anos anteriores. Especulou-se à época que a troca era a recompensa da Globo às pressões exercidas por ACM (então ministro das Comunicações do governo José Sarney) para forçar a mudança de controle da NEC do Brasil. Além da "cabeça-de-rede" regional em Salvador, o grupo controla seis retransmissoras espalhadas pelo estado, o jornal Correio da Bahia, a BahiaSat Comunicações e a Rádio Tropicalsat FM.

Fim de uma era?

ACM foi escolhido ministro das Comunicações depois de um complicado processo que envolveu as relações da Globo com o novo bloco de poder em formação ao término do regime militar, em 1984-85. Após a vitória no Colégio Eleitoral, Tancredo Neves foi almoçar com Roberto Marinho e ACM – velhos amigos – na residência que a Globo mantém em Brasília. Poucos dias depois, o presidente eleito anunciou que seu secretário de Imprensa seria Antônio Brito, comentarista político da Rede Globo, e Antonio Carlos Magalhães o novo ministro das Comunicações.

Tendo falecido antes da posse, o vice José Sarney assumiu a presidência e manteve a indicação de ACM. Durante os cinco anos em que foi ministro das Comunicações, ele quebrou um recorde na história da radiodifusão brasileira: autorizou concessões de 1.028 emissoras de rádio e TV. O número chega perto do total registrado em 65 anos (entre 1934 e 1979): 1.483 concessões. Só entre novembro de 1987 e setembro de 1988, ACM distribuiu concessões para 362 FMs, 182 AMs e 42 canais de televisão.

Paulino Motter em dissertação de mestrado defendida no Instituto de Ciência Política da UnB, em 1994, mostra que boa parte dessas concessões serviram de moeda de troca para que se votassem pontos importantes da Constituição de 1988 – e não só no capítulo da Comunicação Social – então em fase de elaboração. Por exemplo: dos 91 deputados constituintes que receberam emissoras, 90,1% votaram a favor do mandato presidencial de cinco anos de José Sarney.

Resta saber se a morte de ACM, que certamente foi o principal líder político da Bahia nos últimos 50 anos, sinaliza também o fim de uma forma de fazer política ou se o "carlismo" sobreviverá sem a sua principal figura.

Active Image publicação autorizada, desde que citada a fonte original (Observatório da Imprensa).

Comunitárias: o dia em que os piratas ganharam prêmio de cidadania

Santa Luz, distante 260 quilômetros de Salvador, na Bahia, não existe. Como não existe aquela população que acha que existe por lá – cerca de 34 mil habitantes. A não-existência de Santa Luz foi determinada pela mídia ao estabelecer para o Brasil que o Brasil se resume a Rio, São Paulo e Brasília. É uma mídia preconceituosa e narcisista: ela expurga o que não é espelho, seu espelho. Por isso, Santa Luz e mais outros 5.600 municípios brasileiros não existem.

Mas é de lá, de Santa Luz, região sisaleira baiana, que vem o recado. O representante de uma rádio comunitária, junto com outros nobres jornalistas deste país, recebeu nesta quinta-feira, dia 13 de julho, o prêmio "Amigo da Infância", promovido pela Agência Nacional de Direitos da Infância (ANDI), com o patrocínio da Petrobrás e apoio da Unicef.

Seu nome é Edisvânio Nascimento, mas o tratam, como se viu, como inexistente, irreal, ou, como pirata, bandido, marginal. Isto porque Edisvânio atua numa rádio comunitária não autorizada naquele município. Atua, não; atuava. Porque, como se trata de uma rádio "pirata", o Estado brasileiro achou por bem que ela não deveria estar no ar. E a rádio comunitária de Santa Luz, premiada pela ANDI pelo trabalho em defesa da infância, foi fechada.

Comunicação popular

Azar de Santa Luz porque a rádio mesmo reconhecida pela comunidade, pelos que querem um país mais justo, pela ANDI, pelos defensores da democratização da comunicação, pela maioria do povo brasileiro, não é reconhecida pelo governo. Este governo, que se viciou no jogo político para se manter no poder visando à eternidade, tem aqui mais uma prova (existem milhares) de que rádio comunitária sem a concessão oficial é muitas vezes comunitária.

O prêmio da ANDI é uma lição para o governo de que precisa mudar urgentemente a sua política de comunicação. Ou melhor, criar uma política de comunicação para o povo brasileiro. Hoje, o governo apenas obedece à linha política estabelecida pelos empresários do setor. Quando o governo Lula vai entender que só vai mudar alguma coisa neste país quando deixar de fazer política para se manter no poder? Quando irá reconhecer um direito fundamental do ser humano, o direito à comunicação?

Além de Edisvânio, um outro militante do movimento das rádios comunitárias foi agraciado com o prêmio da ANDI: Sérgio Gomes, fundador e diretor da Oboré, uma entidade aplicada em formular e implementar projetos na área da comunicação popular. Sérgio Gomes, ex-professor da ECA-USP, integra a Associação Mundial das Rádios Comunitárias e é um dos ícones do movimento.

Critérios de premiação

A premiação de Edisvânio e de Sérgio é mais uma prova (mais uma, Lula!) de que o atual processo de concessão de emissoras de rádio e TV no país não presta. É sintomático que a rádio comunitária Santa Luz – considerada pirata pelo Estado – pleiteia um canal há nove anos! Isto é, eis um pirata que há nove anos tenta deixar a legalidade. O Estado, que é tão competente e rápido para fiscalizar e reprimir as rádios não autorizadas, demora quase uma década "analisando um processo". A rádio de Santa Luz foi fechada e o canal não saiu. Não saiu por quê? Ora, porque esta é uma boa comunitária e não tem político ou igrejas empurrando.

Não se trata aqui de um xingamento ao Ministério das Comunicações, mas de uma denúncia com provas. E a prova maior de que as autorizações de rádios comunitárias estão submetidas a interesses políticos e religiosos está no rigoroso estudo assinado pelo professor Venício Lima e pelo consultor legislativo Cristiano Lopes, veiculado neste Observatório. Nele se mostra como as autorizações até hoje concedidas às rádios comunitárias não obedecem à legislação, mas sim, a um coronelismo político e religioso que dá as ordens no MC, no governo, no Estado. O estudo foi apresentado há cerca de dois meses e até agora nada aconteceu. Se este governo fosse sério e tivesse o mínimo de compromisso com a legalidade e a nação, o ministro teria caído.

É importante registrar o que leva a ANDI a premiar os 20 jornalistas Amigos da Infância: a escolha dos jornalistas que o recebem não se baseia em uma reportagem ou conjunto de reportagens específico, mas na produção contínua de matérias que contribuem para a discussão de políticas públicas dirigidas à população infanto-juvenil. São reconhecidos tanto os repórteres quanto os editores e chefes de redação, que estimulam suas equipes e orientam a linha editorial de seus veículos para dar maior visibilidade aos temas da infância e adolescência. Da mesma forma, são valorizados profissionais que atuam em ONGs e no meio acadêmico e que por meio de seu trabalho contribuem com essa causa.

Ensinando cidadania

Outros critérios decisivos na escolha são:

– Ética no exercício da profissão;
– Atuação com grande responsabilidade social enquanto formador de opinião;
– Contribuição para a construção de novos valores, buscando uma mudança de comportamento em seus públicos-alvos no que diz respeito aos direitos infanto-juvenis;
– Estímulo ao protagonismo juvenil através de seu trabalho.

A lição da rádio comunitária de Santa Luz é dirigida ao governo, à Anatel, à Polícia Federal, ao Estado brasileiro – que aceita, e algumas vezes reproduz, a versão alucinada, criada por alguns setores anti-democráticos, de que rádio comunitária derruba avião. Quem conhece as rádios comunitárias do Brasil, no entanto, sabe que o caso de Santa Luz não é único. Há várias rádios comunitárias, em todo país, fazendo trabalho similar. A grande maioria, porém, é penalizada, satanizada, amaldiçoada, sob a acusação de não ter cumprido a burocracia. Centenas de militantes já foram indiciados pela PF/Anatel, presos e até punidos, por fazerem o que faz Edisvânio. Muitas vezes, paradoxalmente, a Justiça determina ao condenado que a punição seja efetuar serviços para a comunidade. Ora, é exatamente isto que elas – as boas rádios comunitárias – fazem.

O movimento das rádios comunitárias não defende rádios de empresários, políticos ou religiões. O que se defende é a boa rádio comunitária. E elas são muitas. Em todo o país. Algumas têm a autorização de funcionamento, outras não. Mas estão ensinando o que é cidadania e, principalmente, o que é um jornalismo voltado aos interesses do coletivo.

Vampiros modernistas

O lastimável é que o Estado brasileiro, como prova o estudo do professor Venício Lima, cometeu e está cometendo um tipo de erro que não tem solução à vista: outorga concessões contra a lei, ciente de que estas concessões não podem ser revisadas. A legislação brasileira foi arrumada de tal modo que praticamente impede a cassação da outorga concedida, mesmo quando se comprova que a emissora não está dentro da lei ou comete abusos na programação. Se uma emissora brasileira fizer como a RCTV da Venezuela, por exemplo, que conspirou e promoveu um golpe de Estado, o governo vai ter dificuldades em cassar sua concessão.

Por conta deste Estado dominado pelos políticos e religiões, as falsas rádios comunitárias brotam aos montes, por todo o Brasil. A lei 9.612/09 proíbe a outorga a igrejas, mas… No Distrito Federal foi dada autorização para a "rádio comunitária" da Igreja Casa da Bênção, ligada a um deputado distrital, Júnior Brunelli; no Rio de Janeiro, a (rica) Igreja de Nossa Senhora de Copacabana recebeu do MC autorização para instalar uma "rádio comunitária"; em São Gonçalo (RJ) ocorre a mesma coisa. Como instituições religiosas, ferindo a lei, conseguiram autorização? Ao que parece, esta relação promíscua entre o Estado e as igrejas é caso para uma ação do Ministério Público. Poderia se pensar em CPI, mas qual deputado – de esquerda ou de direita – iria enfrentar a Igreja Católica e o seu poder? A nossa ousada esquerda não teria peito para isso. Hoje ela opta por considerar a Igreja uma aliada, mesmo sabendo que a Igreja está saqueando um espaço que pertence ao povo, tornando-se a maior latifundiária da comunicação no país.

Ao premiar Edisvânio e Sérgio Gomes, a ANDI revela este Brasil intencionalmente oculto pela mídia comercial brasileira. Revela o Brasil verdadeiro, de gente que luta contra o Estado, as grandes redes comerciais de comunicação, o governo Lula, a falta de recursos… Enfim, luta contra todos os inimigos da democracia. Quando um cabra como Edisvânio ganha um prêmio como este, ele está dizendo à história que não somente Santa Luz existe, como existe um Brasil vasto, real, belo e corajoso. Um Brasil que não se avista das janelas dos palácios de Brasília, onde as conversas mais inteligentes e profundas, apreciadas por condes e viscondes, discorrem sobre a eternidade humana, e de como continuar o jogo da política para que, quando vier o eterno, eles continuem ali, quais vampiros modernistas, nessa declamatória bizarra, bizantina, interrompida apenas pelo zumbido das milhares de moscas azuis, amarelas e cinzas que habitam com eles este palco de efemeridades.

* Dioclécio Luz é jornalista, diretor do Sindicato dos Jornalistas do DF, autor do livro "A arte de pensar e fazer rádios comunitárias"

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Classificação Indicativa: agora uma responsabilidade de todos

Desde o dia 11 de julho de 2007, de acordo com a Portaria 1.220/07 do Ministério da Justiça, a classificação indicativa (por faixa etária e horário de exibição) de produtos audiovisuais de entretenimento televisivo passou a ser uma autoclassificação, feita pelas próprias emissoras de TV e não mais pelo Departamento de Classificação do Ministério da Justiça. Essa mudança, no entanto, tem uma implicação previsível, já que a vidraça mudou de lado – para o lado que, literalmente, está exposto aos olhos de todos: a televisão.

Não resistindo a mais uma onda de ataque por parte das grandes redes, o Ministério da Justiça renunciou ao poder que há vários anos vinha exercendo sobre elas – de analisar previamente a programação, especialmente as telenovelas – mas não abriu mão do vínculo entre classificação e horário, outro ponto que as emissoras, representadas pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), queriam abolir. E a nova portaria ainda criou para a autoridade pública um poder adicional, o de exigir uma reclassificação, caso não concorde com alguma das autoclassificações televisivas. Em síntese, as emissoras não conseguiram a liberdade total desejada e ainda por cima terão de arcar com mais trabalho e mais responsabilidade.

Utilizando-se de um argumento questionado por vários segmentos – da sociedade e do governo –, de que o exame prévio da programação representava um exercício da censura, algo que é taxativamente vedado pela Constituição, a Abert liderou uma campanha contra a suposta inconstitucionalidade da classificação indicativa exercida pelo Ministério da Justiça. Não foi a primeira vez que adotou essa postura, valendo-se de métodos como a arregimentação de artistas famosos na cruzada contra a volta dos "censores". O governo FHC foi igualmente pressionado e, à época, a Abert também acenou com a alternativa da autoclassificação.

Fusos horários

Agora, as emissoras terão a oportunidade de sentir na própria pele o quanto é complexa e passível de críticas a tarefa de classificar conteúdos, ofício que vinha sendo desempenhado por um quadro técnico de 25 pessoas, no Ministério da Justiça, que agora se acha diante de um novo desafio: checar a pertinência das "indicações" feitas pelas emissoras.

Entretanto, se o governo e as próprias emissoras cumprirem com o dever de informar a população sobre essa mudança de responsabilidade, cada cidadão, cada associação, cada movimento e cada ONG poderão atuar como observadores da responsabilidade social das televisões. Ou, quem sabe, governo, sociedade e mercado encontrem formas de se representarem num conselho paritário, sugestão feita em carta dirigida ao ministro da Justiça, Tarso Genro, pela Dra. Zilda Arns, coordenadora da Pastoral da Criança, entidade vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Um colegiado dessa natureza funcionaria como uma instância plural, capaz de dirimir eventuais discordâncias entre os vários setores interessados.

Face a um eloqüente interlocutor preocupado com a defesa da liberdade de expressão, o secretário nacional de Justiça, Antônio Biscaia, orientado pelo ministro Tarso Genro, inicialmente atuou como moderador, promovendo uma audiência pública (em 20 de junho) que lotou o Auditório Tancredo Neves, no Ministério da Justiça, quando se sucederam oradores pró e contra a Portaria 264, alvo das críticas da Abert. Em seguida, encontrou uma fórmula de atender os dois lados. Derrubou a "censura prévia" dos conteúdos, mas manteve de pé outras exigências, entre elas, a vinculação das faixas etárias aos respectivos horários de exibição e o respeito às populações situadas em diferentes fusos horários.

No Acre, por exemplo, são duas horas a menos da hora de Brasília; três, no verão. As emissoras terão 180 dias para encontrar uma solução técnica para esse problema, possivelmente, a "reapresentação" dos programas e capítulos de telenovelas, embora nada impeça que eles sejam captados por quem dispõe de antenas parabólicas.

Dado novo

Durante todo o período em que procurou cumprir com as exigências da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, de classificar conteúdos de diversões públicas, o ministério da Justiça desenvolveu paulatinamente um esforço de se legitimar com relação ao seu ingrato papel de classificador, possivelmente porque o mesmo atraía para si a pecha de "censor".

Não faltaram campanhas de esclarecimento, consulta nacional, audiências públicas, publicações, seminários, cartilhas, livro e convites à participações do cidadão, por telefone e por e-mail. Com a mudança nas regras do jogo, mesmo que o ministério da Justiça permaneça em silêncio e mesmo que as emissoras busquem um perfil discreto sobre a sua atuação auto-regulamentadora, dificilmente as iniciativas do tipo "Quem financia a baixaria é contra a cidadania" (da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados) deixarão de estar atentas.

E se antes se alinhavam ao governo, quando este era alvo de críticas, mais um motivo terão, agora, de se fazerem fiscais da mídia, já que é sempre mais antipático para o Estado essa função de leitura crítica, quase sempre identificada, na retranca, como investidas da "censura".

A nova conjuntura classificatória também abre mais espaço para um ator cada vez mais presente no cotidiano brasileiro, o Ministério Público. Junto ao mesmo, o ministério da Justiça prometeu recorrer sempre que não for ouvido pelas emissoras, quando solicitadas a reclassificar programações.

Em tese, qualquer cidadão ou entidade pode fazer o mesmo, ou seja, na lacuna de um Conselho de Comunicação Social aberto à sociedade (o que existe é apenas um órgão auxiliar do Congresso Nacional, sem poder deliberativo), o Ministério Público poderá fazer as vezes de ouvidora pública de mídia, com uma capacidade que outras figuras institucionais não o têm: encaminhar o assunto direto para o Judiciário, como já aconteceu.

Para a sociedade, uma das vantagens da auto-regulamentação é que o exercício da responsabilidade social não elide os recursos civis e penais, embora as soluções consensuais sejam mais encorajadas do que as punitivas.

Desse embate em torno da melhor forma de classificar conteúdos de entretenimento midiático, um ganho adicional para todos poderá ocorrer se cumprida a promessa feita pela Abert, de criar um novo Código de Ética da Radiodifusão Brasileira, em substituição ao de 1993, jamais posto em prática – possivelmente porque se referia à relação entre modalidades de conteúdos e respectivas faixas etárias e horários de exibição. Segundo informaram o diretor-geral da Abert, Flávio Cavalcanti Júnior, e o advogado da Abert, Luís Roberto Barroso, um código "mais atualizado" será feito. Ou seja, as emissoras poderão ter uma bússola para essa dupla tarefa que abraçaram, a de garantir Ibope sem descuidos para com o decoro.

Em suma, há elementos para se concluir que a classificação indicativa – e não impositiva, como sempre desejou a Abert – poderá contar com a participação dos mais variados segmentos da vida pública. Para além do dado novo, que é a auto-regulamentação, o Estado permanecerá atento, já que o ministério da Justiça poderá valer-se do seu bem-treinado olho classificatório para exigir a "reclassificação" sempre que entender que as emissoras foram abusivas. Por sua vez, as ONGs, que integraram toda uma militância liderada pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) em favor da manutenção do sistema classificatório na mão do Estado, não ficarão inertes.

Liberdade e responsabilidade

Em passado recente (2005), as ONGs deram uma surpreendente demonstração de que podem contar com a austeridade do Ministério Público e do Judiciário. Foi quando desbancaram o apresentador João Kleber, então na Rede TV!, obtendo contra ele um inédito e histórico direito de resposta na TV em favor de toda uma legião de humilhados e ofendidos em matéria de direitos humanos.

Falido aqui, sucesso no além-mar. João Kleber foi ter com os lusitanos, onde tem contabilizado em euros muito êxito com testes de fidelidade e outras baixarias. De lá, tem até exportado as suas "Tardes quentes" para outros países. Por aqui, no entanto, teve de ceder o espaço equivalente a 30 dos seus programas (dez dos quais por ele financiados) para um coletivo de ONGs (Intervozes na cabeça) que fazem advocacia de direitos humanos difusos e específicos (igualdade racial; liberdade de orientação sexual etc.).

Em matéria de classificação indicativa de conteúdos de TV, poderemos, então, estar chegando a uma "maioridade", na acepção kantiana. O eterno filósofo da Fundamentação metafísica dos costumes entendia que a verdadeira maioridade moral é atingida quando nos tornamos capazes de agir com autonomia, ou seja, de modo que as nossas ações estejam acima de nossos interesses e inclinações individuais e corporativas. De forma veemente, representantes da Abert repeliram a insinuação de "raposa cuidando do galinheiro" nesse assunto de autoclassificação. Estaremos testemunhando, realmente, o primado da responsabilidade social das empresas? Existirá, de fato, uma genuína "cidadania empresarial", mesmo quando a violência é um dos principais filões mercadológicos?

O fato é que toda essa polêmica pode ter representado um avanço institucional. Nem o Estado, nem o mercado e nem a sociedade estão, agora, isolados ou hegemônicos em relação ao decoro para com as diversões públicas. E a partilha de poder – e de conseqüente interlocução – tem sido uma das fórmulas das democracias modernas. Em outras palavras, a liberdade só não é um valor absoluto porque há a contrapartida da responsabilidade – não apenas do mercado, mas de todos.


 

* Luiz Martins da Silva é jornalista, professor da Faculdade de Comunicação da UnB e co-autor (com Fernando Paulino) de um dos capítulos do livro Classificação Indicativa no Brasil – Desafios e perspectivas, Brasília, DF, Ministério da Justiça, 2006.

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Classificação indicativa: radiodifusores não venceram

Foram pequenas as alterações que o ministério da Justiça fez na portaria que estabelece a classificação indicativa para os programas de TV, mas o noticiário de ontem, terça-feira, dava a impressão de que o novo texto significava uma "vitória esmagadora" das empresas de mídia eletrônica.

O governo foi apenas hábil: fez os ajustes apropriados, sobretudo no fraseado, e assim evitou que a cruzada orquestrada pelas empresas de televisão continue insistindo na tecla de que a classificação equivale à "censura".

A exigência de adaptar o teor de um programa ao horário em que é exibido foi finalmente consagrada, a TV comercial terá que respeitá-la e quem fiscalizará as irregularidades ou infrações será o Ministério Público.

O que não pode ser esquecido neste episódio é o jogo pesado adotado pelas empresas de TV capitaneadas pela Globo. Aqueles anúncios de página inteira nos principais jornais do país reproduzindo o manifesto assinado pelos astros e estrelas das telinhas contra uma classificação de programas que existe em todos os países mostra que as concessionárias de radiodifusão estão somente interessadas em servir aos seus próprios interesses, e não ao interesse público.

Esta orquestração serviu por escancarar a imperiosa necessidade de um debate sobre a concentração da mídia em nosso país. Se adotássemos aqui as normas vigentes nos EUA sobre a propriedade de diferentes veículos pelos mesmos grupos, a cruzada contra a classificação teria sido menos autoritária.

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