O maior negócio da história da mídia em Santa Catarina foi concluído no final de junho sem qualquer cobertura jornalística local – um sinal modesto das conseqüências que a monopolização pode provocar. Quando o empresário Moacir Thomazi entregou ao Grupo RBS o cargo de presidente do jornal A Notícia, de Joinville, chegou discretamente ao fim uma transação de 50 milhões de reais cujos bastidores revelam uma intensa disputa entre os dois principais conglomerados de mídia com atuação no estado. Desde 23 de agosto de 2006, todos os diários com mais de 10 mil exemplares de tiragem impressos em Santa Catarina são da RBS, mas a concentração da propriedade não é feita só de boas notícias para o grupo: um ano depois da aquisição de A Notícia, a circulação paga do jornal caiu 17,5%. Em qualquer outro setor da economia, isso seria pauta obrigatória.
Os efeitos da disputa entre os conglomerados de mídia apareceram nas bancas, mas não nas páginas dos jornais. Entre março e setembro do ano passado, nas regiões mais populosas do estado, o Grupo RBS, afiliado da Rede Globo, e a Rede SC, do SBT, lançaram dois diários populares concorrentes – respectivamente, Hora de Santa Catarina e Notícias do Dia. Como conseqüência indireta dessa rivalidade, a RBS comprou em agosto A Notícia, seu maior concorrente no mercado tradicional, à época com circulação paga superada unicamente pelo Diário Catarinense, do grupo gaúcho. Ao final do ano, havia mais títulos locais do que nunca nas bancas de Santa Catarina, diversificação que disfarçava a concentração da propriedade nos maiores conglomerados.
O império RBS
Com dois lances estratégicos – a aquisição de A Notícia e o lançamento do Hora de Santa Catarina, diário popular vendido na Grande Florianópolis que já tem a segunda maior tiragem do estado –, a RBS eliminou um concorrente que por décadas bloqueara sua expansão na região mais rica do estado e conquistou cerca de 30 mil novos leitores do segmento popular. O grupo chegou mais perto de faturar 1 bilhão de reais por ano com suas empresas – projeto que pretende realizar em 2007, ano do cinqüentenário da RBS, a ser comemorado em 31 de agosto – e conservou o apetite para aquisições e investimentos.
Comprar A Notícia era uma antiga ambição. Durante mais de uma década, a RBS fizera sucessivas tentativas infrutíferas de conquistar o mercado de leitores do Norte catarinense. Antes da aquisição, o Diário Catarinense, principal título do grupo no estado, distribuía não mais de 5 mil exemplares em Joinville – cidade catarinense com a maior população, 496 mil habitantes (IBGE, outubro de 2006). Para tentar incrementar o relacionamento com a comunidade, o DC produzira cadernos com conteúdo local; contratara gerentes radicados na cidade; patrocinara o principal clube de futebol, o Joinville Esporte Clube; oferecera para agências e anunciantes robustos descontos sobre a tabela de publicidade (prática não exatamente comum nos veículos do grupo). Os resultados foram insatisfatórios. Até agosto do ano passado, A Notícia ainda freava a expansão da RBS em Santa Catarina.
A primeira proposta de compra do jornal pelo conglomerado, em 2001, não foi nem levada a sério, mas a última foi perfeitamente concluída. A diferença está no fôlego financeiro do grupo: depois de medidas de saneamento adotadas desde 2003 para rolar dívidas, controlar despesas e incrementar receitas, a RBS está com os cofres cheios. Em 2005, o império regional da família Sirotsky, um dos cinco maiores conglomerados de mídia do Brasil, faturou 860 milhões de reais e lucrou 93 milhões de reais – acumulando mais de 200 milhões de reais com a lucratividade dos anos anteriores. Em 2006, a receita chegou perto do primeiro bilhão. Parte dos resultados foi distribuída para os empregados com a folha de pagamento de janeiro de 2007: cada um recebeu três salários extras.
De arcas repletas, os executivos da RBS foram às compras em 2006.
Dois embates, um adversário
O lançamento do Hora de Santa Catarina e a aquisição do A Notícia são histórias entrelaçadas, nas quais a RBS enfrentou voluptuosamente um mesmo adversário: o empresário Marcello Corrêa Petrelli, diretor-superintendente da Rede SC, dona de rádios e de emissoras de televisão afiliadas ao SBT. A RBS soube, no início de 2006, que Petrelli planejava lançar um diário popular em Florianópolis – o Notícias do Dia. A informação surpreendeu o grupo, que conservava na gaveta planos semelhantes. Os executivos da RBS consideram Petrelli um amador e não gostaram da idéia de ter de correr atrás da concorrência. O vice-presidente executivo, Pedro Parente, provocou:
– E nós, vamos ficar assistindo?
Em 23 de fevereiro, quinta-feira anterior ao Carnaval, Petrelli recebeu um telefonema do presidente do grupo, Nelson Sirotsky, sondando sobre a possibilidade de uma parceria entre a Rede SC e a RBS no projeto. A idéia de aliança durou só mais um par de telefonemas e chocou-se com as ambições de Petrelli.
"A possibilidade de associação esbarrou no desejo de fazer o nosso projeto, no nosso desejo de sermos pioneiros", afirma o dono da Rede SC. "Se fizéssemos o jornal com a RBS, pelo know-how eles iriam fazer a gestão; não haveria sentido nós sermos sócios do negócio deles."
Um tiro de canhão
Outros empresários acalentavam planos de lançar um diário popular na Grande Florianópolis. Ser o primeiro, de fato, tinha alguma importância estratégica. O Notícias do Dia circulou em 13 de março com 4.000 exemplares e assegurou a Petrelli o pioneirismo a preços módicos: nos seis primeiros meses de operação, o empresário investiu 600 mil reais no veículo, sem a participação dos demais acionistas da Rede SC. Atualmente, imprime 7.700 exemplares por dia e vende 5.500.
A reação da RBS foi rápida e incisiva: fez correr a notícia de que também ela preparava um diário voltado para aquele segmento e, enquanto estruturava a redação e a estratégia comercial, organizou uma promoção para escolher o nome do jornal. Mais de 500 mil cupons, que davam o direito a concorrer ao sorteio de um utilitário esportivo, foram recolhidos na região. Batizado como Hora de Santa Catarina, o veículo foi apresentado ao mercado publicitário num café da manhã que reuniu pouco mais de uma centena de agências e anunciantes no auditório da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc), em Florianópolis, em 28 de julho. No evento, Nelson Sirotsky parecia irritado com o atrevimento de Petrelli e elogiou o principal concorrente do Diário Catarinense, a pretexto de alfinetar o rival do Hora de Santa Catarina.
"Todos os jornais sérios do estado, como o DC e A Notícia, têm suas tiragens auditadas pelo IVC (Instituto Verificador de Circulação)", cutucou Sirotsky.
Não era, à época, o caso do Notícias do Dia, só associado ao IVC em outubro. O tom do discurso era coerente com ações de Sirotsky que a platéia ainda desconhecia: dias antes, ele telefonara ao proprietário e presidente de A Notícia, Moacir Thomazi, e marcara um encontro para conversar sobre o futuro do jornal. Era a reação da RBS a outra ação de Petrelli – um tiro de canhão que interromperia um vôo de andorinha.
Noivado e rompimento
Petrelli, o pioneiro, não ficou parado esperando a concorrência chegar a Florianópolis. Em junho, começara entendimentos com Thomazi para o lançamento, em sociedade, de edição local do Notícias do Dia em Joinville. O objetivo de Petrelli era explorar nas edições regionais do jornal a popularidade dos apresentadores dos programas de TV da Rede SC, líderes ou vice-líderes de audiência nos principais mercados do estado – como o blend de deputado estadual e apresentador Nilson Gonçalves (PSDB), eleito pela população da região Norte. A Notícia gostou da conversa porque tinha planos semelhantes para o segmento.
"Também tínhamos um projeto pronto para lançar um popular em Joinville", lembra Thomazi. "O fizemos porque houve, há algum tempo, um movimento da RBS para editar um popular aqui. Como eles refluíram na idéia, nós também deixamos ali."
O modelo do negócio foi decidido em poucas reuniões: as empresas seriam sócias em toda a operação, mas A Notícia bancaria os custos da edição local do Norte do estado e dividiria com Petrelli a despesa para o lançamento em Blumenau (terceiro município catarinense mais populoso). Em 25 de julho, uma reunião matinal fechou o acordo. Na ponta da mesa, Petrelli, feliz como um Roberto Marinho, brindou com Veuve Clicquot Ponsardin, em copos de vidro, a sociedade com Thomazi (os executivos estavam acompanhados pelo diretor de circulação de AN, Armando Tomazi, do gerente de internet e herdeiro do AN, Rodrigo Thomazi, e do diretor-geral do Notícias do Dia, Rogério Caldana.) A cena era de festa de noivado – mas a atmosfera de celebração evaporou como a perlage do champagne: menos de um mês depois, o pacto seria rompido.
"Só não tivemos tempo de assinar o contrato. Quando você vai pegar uma esposa casada é mais difícil. Agora, com uma esposa que não casou, é legítimo", brinca Petrelli.
Transparência e ética
Uma reunião em 16 de agosto, entre as equipes do Notícias do Dia e de A Notícia em Florianópolis, chegou a definir o cronograma de lançamento do popular em Joinville. O veículo seria anunciado ao mercado de anunciantes num café da manhã na Fiesc (exatamente como a RBS fizera com o Hora) e um coquetel à noite na Associação Empresarial de Joinville (Acij). O início da circulação estava programado para 2 de outubro.
Em uma semana, os planos vaporizaram-se, pois a noiva estava sendo cortejada por um rival poderoso. Naquele telefonema de julho, Thomazi e Sirotsky haviam marcado para agosto a primeira de uma breve série de reuniões que decidiria a venda de A Notícia para a RBS. Thomazi manteve Petrelli informado.
"Conversar não custa, e comecei a conversar com os dois grupos", contou o ex-dono de A Notícia, entrevistado em dezembro. "Mas a cada um eu ia dando ciência da conversa que tinha com o outro."
O comportamento não deixou mágoas.
"Thomazi foi de extrema transparência, extrema ética conosco nesse processo", elogia Petrelli.
O valor do jornal
O primeiro encontro entre as equipes da RBS e de A Notícia, no início de agosto, discutiu as premissas da negociação. Várias possibilidades foram cogitadas, como a venda, a sociedade entre o jornal e o grupo ou outras formas de parceria. As duas últimas opções foram descartadas. Thomazi explica:
"Eu disse ‘Olha, Nelson, uma parceria com o grupo RBS para nós é ruim, porque é uma parceria com forças desiguais. A RBS é um grupo muito grande para o nosso tamanho, lá na frente a gente vai brigar’."
Restou a venda. A Notícia ficou de apresentar, no encontro seguinte, um balanço da situação financeira da empresa. Na segunda reunião, em 15 de agosto, com a presença de técnicos de controladoria da RBS, foram discutidos, previamente, os números do jornal: faturamento, despesas, dimensionamento do contencioso cível e trabalhista. Fez-se um pré-contrato. O grupo enviou auditores a Joinville para, em poucos dias, conferir as informações. A RBS admitira assumir o contencioso trabalhista e cível do jornal – um montante inferior a 5 milhões de reais, grande parte já em depósitos judiciais. Só faltava, então, definir o valor da venda.
Quando os executivos da RBS apresentaram a possibilidade de compra de A Notícia, no primeiro encontro, Thomazi perguntou-se: "Quanto vale o jornal?" Como calcular o valor de um veículo que circulava há 83 anos, com circulação paga de 32 mil exemplares em 260 municípios, faturamento de 30,3 milhões de reais em 2005, 437 empregados e um título tradicional e de credibilidade?
"Eu não tinha a mínima idéia", conta Thomazi. "Nós não tínhamos nos preparado para vender a empresa. Não sabia nem o que podia valer. Nunca fizemos uma avaliação."
A referência veio precisamente de um telefonema para Marcello Petrelli, a noiva abandonada no altar da sociedade para o lançamento do Notícias do Dia em Joinville.
"Marcello, você, que é do ramo, tem uma idéia do que pode valer?"
"Olha, Thomazi, acho que um jornal como o teu vale, no mínimo, entre R$ 40 milhões e R$ 60 milhões."
"Não recebi pressão"
Na terceira e última reunião, em 23 de agosto, fez-se a negociação que levou ao contrato. A primeira proposta da RBS, de 30 milhões de reais, apresentada no encontro anterior, foi rejeitada. Amparado nas contas de Petrelli, Thomazi pediu o dobro.
"Foram feitas muitas propostas ao longo da conversa", resume, evasivo, o ex-dono de A Notícia. "Houve muitos momentos durante a mesma reunião."
O momento-chave foi um encontro a sós entre Thomazi e Nelson Sirotsky, solicitado por este. No diálogo, o presidente da RBS apresentou os planos do grupo para, caso a compra de A Notícia não se concretizasse, lançar um jornal concorrente em Joinville. O grupo teria capital para suportar a operação deficitária do veículo durante mais de uma década. A sede da RBS TV na região, recentemente reformada, estava pronta para abrigar a nova empresa. Cortês e elegante, Sirotsky deixou Thomazi encalacrado entre as possibilidades de vender o jornal de imediato, realizando retorno para os acionistas, ou manter A Notícia sob forte concorrência – e, talvez, ter de vendê-lo no futuro por uma ninharia.
Thomazi nega ter recebido ameaças durante a negociação:
"A gente sabia que haveria um momento em que eles iriam pôr um jornal aqui. Mas a venda não foi em decorrência disso. Não recebi pressão alguma, de parte alguma, de ninguém. Nem da comunidade."
Negócio fechado
Thomazi se queixa é da ausência de sinergia com outros meios de comunicação – sinergia que viabiliza os negócios em função da redução de custos, da exposição compartilhada nas diversas mídias do mesmo grupo, da promoção de eventos e de iniciativas em comum. A Notícia tentou, sem sucesso, obter concessões de rádio e televisão, e permaneceu isolado no mercado das mídias:
"Chegamos a uma encruzilhada. Ou bem a gente se associava ao SBT, o que não eliminava a hipótese de a RBS vir com um jornal para cá… Eles tinham fôlego para bancar um projeto aqui durante dez anos, tirando fatias nossas, nos fragilizando. Aí, concluímos que o melhor seria a venda, desde que os valores fossem compensadores."
A RBS definira, dias antes, os limites para a negociação. E aumentou sua proposta progressivamente até um valor próximo de 50 milhões de reais.
"Muito mais do que o patrimônio do jornal, o que a gente avalia é o potencial futuro de geração de resultados do negócio, a força da marca, a participação de mercado", explicou, em janeiro, o diretor-geral da Unidade Jornal da RBS em Santa Catarina, Marcos Noll Barboza, escalado pelo grupo para comentar a transação.
Uma cláusula contratual impede as partes de confirmarem o valor exato do negócio. Uma projeção baseada no valor recebido por um sócio minoritário resulta na cifra de 48 milhões de reais. O capital de A Notícia era uma rara combinação de propriedade familiar com articulação política local: dois sobrenomes tinham 96,7% do capital, mas 128 acionistas detinham poder simbólico – presidentes de multinacionais com sede na região, ex-dirigentes da Fiesc, políticos: uma elite local inteira. Thomazi tinha carta-branca para negociar no horizonte daqueles valores sugeridos por Petrelli:
"Não havia, por parte da família, nenhum interesse em continuar no negócio. Articulei-me com os acionistas. Estabelecemos um valor. Tinha uma margem de negociação. Não ficou no ideal nem no mínimo."
Fechado o negócio, o governador Eduardo Pinho Moreira (PMDB) foi informado por telefone, por Sirotsky e Thomazi, logo após o encerramento da reunião. Na semana seguinte, a RBS enviou uma equipe que passou quase um mês na sede de A Notícia checando detalhadamente as informações contábeis e outros aspectos estratégicos e operacionais. O contrato foi assinado em 22 de setembro. A RBS assumiu A Notícia em 1º de outubro.
O conquistador e a província
Houve alguma resistência em Joinville, mas o desconforto político foi contornado com habilidade. O mesmo valor por ação oferecido à família foi estendido aos demais acionistas; até o final do ano, apenas oito dos minoritários ainda não haviam vendido sua parte – porque não tinham sido encontrados por Thomazi ou porque estavam com problemas de saúde. Antes de assumir o jornal, os executivos da RBS viajaram para participar de uma reunião da Associação Empresarial de Joinville (Acij) – praticamente uma assembléia de acionistas minoritários de A Notícia.
Thomazi, ex-presidente da entidade de classe, fez um breve relato da transação e assegurou que o controle do jornal não estava sendo vendido a um "grupo de aventureiros ou com interesses meramente políticos", mas a um conglomerado profissional da área da comunicação. Admitiu que haveria alterações nos quadros profissionais da empresa, especialmente na direção. Mas assumiu a condição de "avalista do processo": obedecendo a uma das condições do contrato, ele ficaria na presidência do jornal até 28 de fevereiro de 2007 – prazo estendido até o final de junho. (Outra condição é uma quarentena de cinco anos, se Thomazi quiser voltar ao mercado de comunicação.) O ex-proprietário minimizou a venda, alegando tratar-se só de "mudança de controlador acionário", não da "identidade" do jornal:
"A RBS é tão joinvilense quanto todos os empresários que estão aqui e não permitirá que o jornal se desvie de sua missão, que é a defesa da Joinville e de sua gente."
Cerca de 100 empresários acompanharam em seguida a longa exposição de Sirotsky, que estava acompanhado de sete executivos da RBS – incluindo-se os três herdeiros dos fundadores do grupo (além dele, seu irmão Pedro Sirotsky e o primo, Sérgio Sirotsky) e o vice-presidente Pedro Parente (ex-ministro do governo FHC). Entronizado por Thomazi na província, o conquistador Sirotsky disse encarar como "natural a preocupação com o significado da transferência do controle acionário do jornal". Assegurou que a motivação fora, essencialmente, empresarial, observada a dimensão do mercado e a oportunidade que se abria ao grupo:
"A Notícia só vale esse investimento porque é um jornal que em seus 83 anos de atividade refletiu os anseios, aspirações e a realidade de sua comunidade. O jornal vai continuar sendo joinvilense, um veículo identificado com a cidade e a região norte catarinense."
Sirotsky terminou seu show com um estranho convite para uma festa que só acontecerá daqui a 16 anos: a do centenário de A Notícia, no dia 24 de fevereiro de 2023. Ninguém da platéia recusou. Semanas depois, a RBS impôs ao jornal a primeira mudança significativa de posicionamento no mercado: trocou o provocativo slogan "catarinense de verdade" por "traduz o seu mundo", mais coerente com o projeto do grupo gaúcho.
Perda de 6 mil leitores
"Foi uma transição muito bem sucedida", reconhece Thomazi. "A gente fez a coisa muito transparente com a comunidade política e empresarial. Há aquele sentimento de perda, que a gente também tem. Mas A Notícia apenas mudou de dono."
A sinergia já cortou pela metade o número de empregos no jornal. Em seis meses, a RBS demitiu 170 dos 437 empregados de A Notícia – e os cortes continuaram. Em 5 de janeiro, precisamente às 14 horas, os telefones da linha direta com o assinante (0800475454) passaram a tocar em Porto Alegre, onde está centralizada a operação de telemarketing e atendimento ao cliente do grupo. Foram eliminadas equipes inteiras de distribuição e comercialização das sucursais.
A guilhotina poupou jornalistas: apenas 15 repórteres ou editores foram demitidos de A Notícia desde 1º de outubro, segundo o sindicato da categoria. Petrelli aproveitou alguns deles. Com um grupo de profissionais que havia se desligado espontaneamente de A Notícia, a Rede SC lançou em Joinville o Notícias do Dia, em 6 de novembro. Vende 4.500 exemplares por dia.
"A cidade está se sentindo órfã com a venda de A Notícia", afirma Petrelli.
Parece exagero, mas A Notícia já perdeu no mínimo seis mil leitores: a circulação média diária caiu 17,5%, de 31,3 mil exemplares para 25,8 mil, segundo o IVC. Movimento semelhante ocorreu nos anos 1990, quando a RBS comprou o Jornal de Santa Catarina, de Blumenau; naquele caso, depois da transformação do formato do diário de standard para tablóide, o número de assinantes tornou a subir.
Concorrente condena dumping
A compra de A Notícia foi fechada cinco dias antes do início da circulação do Hora de Santa Catarina em Florianópolis. O projeto do jornal popular exigiu pouco investimento da RBS. O lançamento beneficiou-se da sinergia entre as diversas mídias na capital catarinense: uma emissora de TV aberta, dois canais de TV a cabo, duas emissoras FM e uma AM. Para a campanha de lançamento, a RBS só precisou pagar panfletos e outdoors.
A redação do Hora ocupa apenas uma sala, na sede do Diário Catarinense. O jornal é vendido ao preço promocional de 25 centavos– seu irmão mais velho e idêntico, o Diário Gaúcho, lançado pelo mesmo valor no ano 2000 em Porto Alegre, custa hoje 60 centavos. Não bastasse o preço irrisório, o jornal distribui prêmios a quem coleciona os selos impressos na capa: 60 selos valem um kit caipirinha, um jogo de panelas ou de travessas, um faqueiro. A concorrência não gosta.
"O monopólio não vem da compra de A Notícia", critica Petrelli. "Isso é legítimo. A decisão de querer monopolizar o mercado vem de querer agredir a concorrência, de impor um produto subsidiado, com dumping, para inviabilizar outros players no mercado. Acho que a RBS se equivoca quando faz isso. Se equivoca em depreciar o produto jornal. Ela dá uma demonstração real de querer nos inviabilizar.
A RBS ignora as acusações, com a soberba de quem já conta quase sete vezes mais leitores no mesmo segmento de mercado que Notícias do Dia. Preparado para suportar prejuízo com o Hora por pelo menos 20 meses, o grupo se surpreendeu com o retorno dos leitores e dos anunciantes. O jornal foi projetado para vender em torno de 20 mil exemplares diariamente, mas a circulação, vitaminada pelas promoções, já ultrapassou os 35 mil.
Espaço de sobra
"Muita gente que não lia jornal está lendo a Hora", celebra Marcos Barboza. "Esse é o grande mérito, até mesmo em termos de importância social do jornal, de trazer informação, fortalecer o senso crítico, a cidadania. Nosso objetivo com a Hora é de longo prazo. É formar uma base de leitores. Muitos deles vão passar a ter um nível de exigência maior sobre o jornal e vão passar a ler o Diário Catarinense."
Vendido a 2 reais em dias úteis, o DC, como ocorrera com Zero Hora em relação ao Diário Gaúcho, não perdeu leitores para o Hora de Santa Catarina. E o popular conquistou anunciantes mais rapidamente do que o previsto, conforme Barboza:
"A gente chegou, nos primeiros meses, num nível de faturamento publicitário [previsto] talvez para o segundo ano do jornal. Em dezembro de 2006, tivemos um faturamento muito acima do esperado."
O próprio Notícias do Dia festeja a receptividade positiva do mercado ao jornal popular. Petrelli afirma ter alcançado o break-even em setembro, seis meses depois de começar a circular em Florianópolis. Na véspera do lançamento do Hora de Santa Catarina, os diretores do Notícias do Dia decidiram manter o preço de capa em 50 centavos. O jornal perdeu 25% dos leitores no dia seguinte, mas se recuperou rapidamente.
"Três semanas depois da Hora, nós havíamos crescido 15%", calcula Petrelli. "Quando a RBS entra [nesse mercado], dois benefícios acontecem. Aumenta o número de leitores porque aumenta a divulgação. E também agrega comercialmente, ao aumentar a credibilidade do jornal popular. O líder tem que promover o crescimento do bolo."
O reconhecimento não ameniza a verve de Petrelli. Subitamente galgado ao posto de rival que merece respostas do líder, ele ataca a RBS:
"Nós não somos um poder", provoca, evocando o espectro autoritário que acompanha certa visão sobre o grupo. "Somos uma empresa que está a serviço da sociedade organizada. Nosso papel não é impor nossa verdade, nossa percepção; é criar um fórum para discussão e isso só acontece quando se tem espaço e comunicadores. Eu não estava procurando enfrentar a RBS. Ela é que veio ao nosso patamar para nos enfrentar. E é claro que agora eu tenho de me defender. A RBS criou um concorrente."
No início deste ano, o executivo Marcos Barboza afirmava que, por enquanto, o Notícias do Dia de Joinville continuaria sem concorrente em seu segmento: a RBS não pretendia lançar o Hora de Santa Catarina no Norte do estado. Segundo o diretor, novas aquisições não estão nos planos do grupo:
"A gente começou o ano [de 2006] com dois jornais e terminou com quatro. Nosso objetivo [em 2007] é consolidar a Hora, fortalecer sua relação com os leitores, e fazer um bom trabalho em A Notícia. Não está em nossos planos lançar a Hora em Joinville, nem outro jornal lá. O objetivo da RBS é otimizar as suas operações atuais nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e priorizar investimentos relacionados a novas plataformas de distribuição de informação e conteúdo."
Os oito jornais do grupo (quatro são do Rio Grande do Sul) imprimem quase meio milhão de exemplares por dia – fossem um só jornal, seriam, disparado, o maior do país. A queda contínua na circulação de A Notícia no primeiro semestre de 2007 reacendeu os planos de editar um popular em Joinville. Depois das demissões, há espaço de sobra na sede do jornal.
* Jacques Mick é jornalista, professor da Associação Educacional Luterana Bom Jesus/Ielusc, Joinville, SC