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Código Brasileiro de Telecomunicações: a História sem “Bem” nem “Mal”

Passados 45 anos de sua promulgação, o Código Brasileiro de Telecomunicações ainda desperta polêmica. Nas últimas semanas, que marcaram o aniversário do CBT, a importância atual do marco foi debatida, neste Observatório, por pelo menos dois artigos – um de Venício A. de Lima ("45 anos do CBT: Sem festas, nada a celebrar") e outro de autoria de um dos autores deste texto ("De volta para o futuro, 45 anos depois"). É curioso que, em manifestação recente, Walter Vieira Ceneviva ("Marco regulatório contra o arbítrio") opte por tentar recontar o passado com uma ótica do presente, na crítica que faz ao trabalho "Memória da gestação do Código Brasileiro de Telecomunicações", de nossa autoria.

O artigo que Ceneviva critica foi elaborado originalmente como texto acadêmico, publicado na revista eletrônica Eptic, tal como mencionado por este Observatório, e tem as características naturais a este tipo de trabalho: um espaço pré-definido; um objetivo específico e delimitação em função do tema analisado. Nesse caso, o foco era o processo legislativo que levou à promulgação do Código Brasileiro de Telecomunicações, restringida a análise, portanto, àquele período histórico. Beira a obviedade afirmar que esse é o cenário temporal a ser levado em consideração na análise de um episódio ocorrido em 1962.

Em seu artigo, Ceneviva trata de três momentos históricos distintos, abordando-os com o mesmo olhar que hoje dirige à radiodifusão. O primeiro momento citado por Ceneviva é a ditadura capitaneada por Getúlio Vargas. O autor cita o exemplo de uma emissora de rádio, cuja concessão não foi renovada pelo governante em 1945. Conforme parecer do então consultor-geral da República, Themistocles Cavalcanti, o presidente da República tinha competência para assim proceder, dados os documentos legais existentes (decretos e contrato de concessão). Com base nesse parecer, Ceneviva manifesta todo o seu espanto e conclui:

"Ninguém ganha com o arbítrio do presidente da República, salvo o próprio presidente. Limitar o poder do presidente da República e, portanto, derrubar os vetos de João Goulart, era uma missão de enorme importância, não apenas para os empresários de radiodifusão. Limitar o arbítrio dizia (e diz!) respeito ao interesse do Brasil, aí incluídos os empresários, a classe política e a sociedade brasileira".

Ou seja: tomando o exemplo da não renovação de uma concessão por um ditador, o autor presume que era preciso brecar qualquer possível ação de um presidente da República escolhido democraticamente (eleito vice-presidente de Juscelino Kubitschek e reeleito para o mesmo posto no governo de Jânio Quadros, a quem substituiu na Presidência). Mais que isso: insinua que os vetos de João Goulart ampliavam as possibilidades de "arbítrio", prática a ser coibida também no presente. Assim, o "Mal" das histórias infantis torna-se o presidente da República e o "Bem", os empresários, a classe política e a sociedade brasileira, de acordo com o relato de Ceneviva – curiosamente fazendo uso da oposição de atores que criticara em seu próprio artigo.

Mote da união

Não menos curiosa é a generalização dos vetos de João Goulart, feita pelo autor. Conforme claramente mencionado em nosso artigo que originou o debate, os citados vetos podem ser agrupados da seguinte forma:

Vetos de João Goulart ao Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT):

 

  Número de Vetos % do Total
Fortalecimento do Presidente da República 13 25
Competências de ministérios e outros órgãos 16 30,77
Conflito com outros marcos legais 8 15,38
Imprecisão do texto do CBT 11 21,15
Outras 4 7,70
Total 52 100%

FONTE: Elaboração dos autores

Assim, três quartos dos vetos não se referiam ao fortalecimento do presidente da República – o suposto "arbítrio" criticado por Ceneviva. Eis o exemplo de um deles: a tentativa de impedir a renovação automática das concessões, mesmo que o Poder Público não se manifestasse sobre o pleito em até 120 dias. Em tempos de mudança da administração pública para Brasília e transferência de competências, de pessoal (em número insuficiente) e de material (disperso e confuso) da Comissão Técnica de Rádio (CTR) para o Contel, a probabilidade de atraso naquele procedimento era gigantesca.

Em sua transposição do cenário político de 1962 para o presente, Ceneviva chama atenção para a falta de coesão interna entre os grupos que denomina de "Bem" e "Mal". Não há dúvidas de que, hoje, o fortalecimento de grupos políticos e a complexidade do cenário empresarial resultam na participação de um maior número de atores, com distintas demandas, no debate público. É errado afirmar, porém, que essa era a realidade de 1962. No processo de aprovação do CBT, parlamentares manifestaram-se em votação nominal. Se a rejeição explícita de 52 vetos de um presidente da República a um (à época) projeto de lei não demonstra a convergência de interesses, nada mais a demonstra.

Tampouco o grupo dos empresários, naquele momento, demonstrava os interesses divergentes aos quais se refere Ceneviva. Como o próprio site da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) afirma em seu histórico, João Calmon, futuro presidente da entidade, conseguiu reunir, às vésperas da apreciação dos vetos, 213 representantes de empresas do setor, em Brasília, em encontro classificado como "histórico". Note-se que, à época, ainda não existiam as grandes redes; as empresas do setor, em geral, eram menores; e multiplicavam-se as dificuldades de transporte até a nova capital federal.

Por si só, a reunião refletia inequívoca demonstração de força e defesa de interesses convergentes. Esses interesses eram o mote para a união, inclusive, dos empresários de radiodifusão com os atuantes no setor de telefonia, de acordo com o relato de Quandt de Oliveira (um dos únicos sobre o episódio), ex-ministro das Comunicações e ex-presidente do Contel e da Telebrás, em seu livro Renascem as Telecomunicações (Editel, 1992, p. 62-63):

"A união de esforços dos homens de telecomunicações com os de radiodifusão foi bastante proveitosa e seus argumentos junto aos congressistas atingiram o objetivo desejado. Chamou-lhes a atenção e despertou-lhes o interesse para o problema global das telecomunicações, não ficando o projeto apenas restrito à radiodifusão, como anteriormente ocorrera (…). Os vetos provocaram forte reação, tanto de parte do pessoal interessado em telecomunicações, como, principalmente, em radiodifusão. Houve uma mobilização total de todos os radiodifusores, grandes e pequenos, que se deslocaram em massa para Brasília, a fim de defender o texto tão longamente discutido antes de ser aprovado".

Parâmetros objetivos

Em suma: houve, sim, uma defesa coletiva de interesses – por óbvio – convergentes. Se havia, em 1962, divergências entre os empresários, essas eram pequenas, mínimas. Por outro lado, a oposição a esses interesses convergentes vinha de poucos atores, principalmente do presidente da República. A sociedade civil organizada, à época, pouco se manifestara sobre o tema, inexistindo de sua parte uma mobilização em torno da discussão das telecomunicações no Brasil. Note-se que essa constatação, de nenhum modo, implica uma visão maniqueísta dos diversos atores envolvidos; mas, apenas, reflete um enfrentamento comum à dinâmica social e a coesão existente, em 1962, entre os empresários de telecomunicações.

Se é impossível transpor a realidade do cenário político de 1962 para o presente, permanecem vivos e atuais outros problemas (que o artigo original não pretendeu debater). Um deles é certamente a possibilidade de não renovação de concessões pelo simples "arbítrio" do presidente da República, tão criticado por Ceneviva. Por um lado, há um consenso: em nenhum debate atual tem sido defendida a apreciação das concessões única e exclusivamente pelo chefe do Poder Executivo (e por seu "arbítrio"). Muito pelo contrário, debate-se como o Estado – abrangendo os três poderes – deve se portar na renovação das concessões de emissoras de radiodifusão e como a sociedade – incluindo tanto os empresários, quanto as entidades que militam no setor – devem participar desse processo.

Por outro lado, há um debate ainda não travado: toda e qualquer concessão pública, nos mais diversos setores econômicos, baseia-se em parâmetros claros e objetivos, sendo o respeito a eles determinante para a renovação. Quais devem ser esses parâmetros no caso da radiodifusão? Como deve ser avaliado o atendimento (ou não) dos princípios constitucionais relacionados à programação, como suas finalidades educativa, artística, cultural e informativa e a regionalização da produção? Ou pretende-se defender a mera apreciação formal ou a possibilidade de renovação automática de uma concessão pública – que João Goulart, há 45 anos, tentou evitar?    

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Pauta seletiva: imprensa ignora diversidade ideológica

A imprensa ignorou a organização do movimento de entidades sindicais, partidos de esquerda e movimentos sociais pela reestatização da Companhia Vale do Rio Doce. Com exceção de dois artigos na Folha de S.Paulo e de uma referência do Globo a uma declaração do presidente Lula da Silva em entrevista coletiva para emissoras de rádio – quando disse que o tema não é parte de suas preocupações –, o assunto praticamente não existiu para a mídia até o final da semana, quando as revistas de informação e os jornais noticiaram as manifestações que ocorreram por todo o país.

O movimento partiu da ala chamada "progressista" da igreja católica, que escolheu a privatização da Vale, ocorrida em 1997, como tema do "Grito dos Excluídos" deste ano. O plebiscito, apenas consultivo, foi preparado para acontecer em cerca de 3 mil comunidades entre os dias 1º e 7 de setembro. A organização e os debates aconteceram longe dos olhos da mídia, com exceção de uma ou outra manifestação, como algumas denúncias de violência contra manifestantes.

Interesse público

À parte os méritos da demanda que vicejou na asa esquerda da nossa nave ideológica, a indiferença da mídia é mais um sintoma de que ela julga superadas as questões relacionadas ao papel do Estado na economia. Como se considerasse tabu tratar de mudanças no sistema econômico – no sentido que dão à palavra "tabu" certas sociedades primitivas, nas quais se crê que o próprio enunciado de uma expressão faz com que ela adquira corpo físico e se torne real.

Tabus e dogmas constituem o universo da fé e são também características de certo primitivismo, que tanto pode marcar aqueles que não alcançaram o estágio cultural além da visão mitológica do mundo, como os que, considerando superados os conflitos ideológicos, aceitam como real o fim da História. Diante de temas que ameaçam recolocar na mesa o debate sobre a natureza do sistema econômico e sua relação com o Estado, a imprensa costuma se comportar como o mulá para quem a história começa e termina no ano 600.

Considere-se o aspecto revisionista do movimento pela reestatização da Vale do Rio Doce. Questione-se, mesmo, sua representatividade e a constitucionalidade da demanda que os militantes apresentam. Ainda assim, a questão colocada, e que merecia ser levada à opinião pública, trata do tipo de nação que pretendemos construir e que está se consolidando, com ou sem uma estratégia concertada com a sociedade, no atual processo de estabilidade com crescimento econômico.

Também se coloca aos observadores a possibilidade de analisar a capacidade da chamada esquerda de se recompor após a política de alianças heterodoxas do PT no poder e das lambanças de alguns de seus dirigentes com as finanças de campanha.

Sejam os militantes um bando de visionários sem qualquer noção de realidade, sejam eles um fator a ser ponderado no espectro de escolhas que o país deve considerar, não cabe à imprensa amputar as possibilidades do debate. Pelo menos sob o conceito de uma imprensa de interesse público, o ideal é que seus operadores se abstenham de limitar o rol de assuntos que a sociedade pode ou não considerar.

Atitude de equilíbrio

A Vale do Rio Doce não voltará a se incorporar ao patrimônio do Estado pelo fato de militantes do Movimento dos Sem-Terra acamparem na Esplanada dos Ministérios. O presidente da República declarou claramente que o assunto "não está nem estará" sobre sua mesa. Mas a questão do tamanho do Estado está sempre na pauta da imprensa por outro viés: sempre que o governo anuncia investimentos em programas sociais, a mídia, em peso, prioriza a opinião dos porta-vozes dessa nebulosa a que se convencionou chamar liberalismo.

Na semana passada, quando o Executivo incorporou ao projeto de orçamento para 2008 a possibilidade de contratar alguns milhares de servidores federais, em parte para substituir funcionários terceirizados que ocupam cargos estratégicos, a grita foi geral.

Pelo fato de haver nascido no sindicalismo, o Partido dos Trabalhadores tende claramente a se fechar em ambientes corporativos. Sabe-se que a diversidade na composição do primeiro governo Lula da Silva deveu-se exclusivamente à vontade do próprio presidente, que foi buscar fora do partido um ou dois ministros e outros auxiliares cuja ação se revelou essencial para os resultados econômicos e sociais que o Brasil vem alcançando. A vigilância da imprensa tem sido importante para evitar que o governo seja uma réplica dos estatutos do PT, que, com toda sua variedade de tendências, continua sendo predominantemente um partido de sindicalistas.

Mas a imprensa só se manterá relevante nesse papel se adotar uma atitude de equilíbrio, abrindo-se para debates mais abrangentes e sem temer que a exposição ao contraditório venha a favorecer opiniões com as quais não concorda. Até agora, por exemplo, os leitores não sabem como o governo pretende usar os recursos previstos para os gastos com pessoal.

Espaço de expressão

Pode ser que Lula esteja querendo aumentar o tamanho do Estado para reforçar suas bases eleitorais para 2010. Mas pode ser que o Estado necessite mesmo de mais músculos para administrar e operar seu ambicioso plano de crescimento, que em grande parte ainda está no papel.

Se a imprensa não admitir o debate mais amplo sobre temas que são propostos por organizações que não se alinham aos preceitos do chamado liberalismo, acabará se alienando de uma parte da realidade brasileira.

Queira ou não queira a mídia, também existe inteligência na faixa esquerda do espectro ideológico. A realidade brasileira é feita dessa diversidade e é preciso dar espaço para que ela se expresse.

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Ética, presunção de inocência e privacidade

O novo Código de Ética dos Jornalistas – aprovado no Congresso Nacional Extraordinário dos Jornalistas, realizado em Vitória, de 3 a 5 de agosto –, a recente transformação dos acusados do "mensalão" em réus pelo Supremo Tribunal Federal, e a divulgação de ações privadas de alguns dos juízes recolocaram na ordem do dia a cobertura que a grande mídia fez – e continua a fazer – da crise política iniciada a partir das evidências de corrupção nos Correios, reveladas pela revista Veja e pelo Jornal Nacional em maio de 2005.

As alterações no Código de Ética ratificaram a presunção de inocência como um dos fundamentos da profissão. O novo código reforça o preceito constitucional de que qualquer pessoa é inocente até prova em contrário, com o objetivo de "coibir a ação de meios de comunicação que, em sua cobertura jornalística, denunciam, julgam e submetem pessoas à execração pública. Isto é crime, mas muitas vezes sequer o direito de resposta é concedido aos denunciados".

Por outro lado, a recepção pelo STF de boa parte das denúncias feitas pelo procurador-geral da República é celebrada quase unanimemente como uma espécie de aval tardio à cobertura que tem sido realizada, eximindo jornalistas e empresas de mídia de qualquer responsabilidade por julgamentos e condenações antecipadas, excessos ou omissões. É como se a prática do jornalismo pairasse acima de certas garantias constitucionais.

E mais: a divulgação de atos privados de juízes – sejam eles correspondência eletrônica ou conversa telefônica – tem sido justificada como dever e obrigação do jornalista.

"Lerdeza corporativista"

Por que não se aplicaria ao jornalista o princípio da presunção de inocência, que tem sua origem na Revolução Francesa e está consagrado na Constituição de 1988? O texto constitucional diz, no seu art. 5º, inciso LVII: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Não seria a obediência a este princípio dever elementar de qualquer cidadão e, sobretudo, dos jornalistas, independente das informações que obtiver e de sua convicção pessoal?

A possibilidade de que, em data futura, a presunção de culpa venha, eventualmente, a se confirmar correta prevalece sobre o direito dos acusados de serem tratados como inocentes até que a Justiça prove o contrário?

Quando se estaria colocando em risco a garantia da privacidade individual em nome da liberdade de imprensa?

Não há dúvida de que boa parte da nossa grande mídia opera como se alguns dos princípios que valem para os cidadãos comuns não se aplicassem a ela.

Um bom exemplo é o texto "Opinião" publicado pelo jornal O Globo, ainda em 12 de agosto de 2006, durante a campanha eleitoral. O minieditorial com o título "Coerência" ironizava a posição do Partido dos Trabalhadores em relação aos parlamentares de vários partidos suspeitos de participar na venda fraudulenta de ambulâncias.

"Não se pode acusar o PT de incoerência: se protege mensaleiros, também acolhe sanguessugas. Sempre com o argumento maroto de que é preciso esperar o julgamento final".

Segundo o texto, o argumento do PT era "maroto" – isto é, malandro, velhaco – porque "o julgamento político e ético não se confunde com o veredicto da Justiça" e, na verdade, a esperança do PT era que "mensaleiros e sanguessugas sejam salvos pela lerdeza corporativista do Congresso e por chicanas jurídicas".

Há limites?

Se essa é a postura editorial do Globo, que implicações ela teria na cobertura política que oferece desses fatos aos seus leitores? Qual é exatamente a diferença entre os julgamentos políticos e éticos e o veredicto da Justiça? Quais seriam os fóruns apropriados para que os julgamentos políticos e éticos sejam feitos? E quem os faz? Quais os mecanismos de defesa disponíveis para aqueles que sofrem antecipadamente o julgamento político e ético na mídia?

É preciso que fique claro que a observação crítica democrática que se faz da cobertura da mídia sobre determinados fatos não pode ser necessariamente confundida com a negação de sua existência ou com uma posição prévia sobre eles.

Por outro lado, no clima de polarização irracional de posições que o debate sobre o papel da grande mídia acaba sendo realizado (a quem interessa essa polarização?) é preciso que não se confunda a liberdade de imprensa e a responsabilidade do jornalismo em oferecer a cobertura dos fatos com uma carta branca para se colocar acima dos direitos e garantias individuais.

Existe algum limite para a atuação dos jornalistas e do jornalismo? No campo da observação da mídia, essa é a discussão que se coloca e precisa ser democraticamente enfrentada.

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Imprensa catarinense: RBS expande seus domínios

O maior negócio da história da mídia em Santa Catarina foi concluído no final de junho sem qualquer cobertura jornalística local – um sinal modesto das conseqüências que a monopolização pode provocar. Quando o empresário Moacir Thomazi entregou ao Grupo RBS o cargo de presidente do jornal A Notícia, de Joinville, chegou discretamente ao fim uma transação de 50 milhões de reais cujos bastidores revelam uma intensa disputa entre os dois principais conglomerados de mídia com atuação no estado. Desde 23 de agosto de 2006, todos os diários com mais de 10 mil exemplares de tiragem impressos em Santa Catarina são da RBS, mas a concentração da propriedade não é feita só de boas notícias para o grupo: um ano depois da aquisição de A Notícia, a circulação paga do jornal caiu 17,5%. Em qualquer outro setor da economia, isso seria pauta obrigatória.

Os efeitos da disputa entre os conglomerados de mídia apareceram nas bancas, mas não nas páginas dos jornais. Entre março e setembro do ano passado, nas regiões mais populosas do estado, o Grupo RBS, afiliado da Rede Globo, e a Rede SC, do SBT, lançaram dois diários populares concorrentes – respectivamente, Hora de Santa Catarina e Notícias do Dia. Como conseqüência indireta dessa rivalidade, a RBS comprou em agosto A Notícia, seu maior concorrente no mercado tradicional, à época com circulação paga superada unicamente pelo Diário Catarinense, do grupo gaúcho. Ao final do ano, havia mais títulos locais do que nunca nas bancas de Santa Catarina, diversificação que disfarçava a concentração da propriedade nos maiores conglomerados.

O império RBS

Com dois lances estratégicos – a aquisição de A Notícia e o lançamento do Hora de Santa Catarina, diário popular vendido na Grande Florianópolis que já tem a segunda maior tiragem do estado –, a RBS eliminou um concorrente que por décadas bloqueara sua expansão na região mais rica do estado e conquistou cerca de 30 mil novos leitores do segmento popular. O grupo chegou mais perto de faturar 1 bilhão de reais por ano com suas empresas – projeto que pretende realizar em 2007, ano do cinqüentenário da RBS, a ser comemorado em 31 de agosto – e conservou o apetite para aquisições e investimentos.

Comprar A Notícia era uma antiga ambição. Durante mais de uma década, a RBS fizera sucessivas tentativas infrutíferas de conquistar o mercado de leitores do Norte catarinense. Antes da aquisição, o Diário Catarinense, principal título do grupo no estado, distribuía não mais de 5 mil exemplares em Joinville – cidade catarinense com a maior população, 496 mil habitantes (IBGE, outubro de 2006). Para tentar incrementar o relacionamento com a comunidade, o DC produzira cadernos com conteúdo local; contratara gerentes radicados na cidade; patrocinara o principal clube de futebol, o Joinville Esporte Clube; oferecera para agências e anunciantes robustos descontos sobre a tabela de publicidade (prática não exatamente comum nos veículos do grupo). Os resultados foram insatisfatórios. Até agosto do ano passado, A Notícia ainda freava a expansão da RBS em Santa Catarina.

A primeira proposta de compra do jornal pelo conglomerado, em 2001, não foi nem levada a sério, mas a última foi perfeitamente concluída. A diferença está no fôlego financeiro do grupo: depois de medidas de saneamento adotadas desde 2003 para rolar dívidas, controlar despesas e incrementar receitas, a RBS está com os cofres cheios. Em 2005, o império regional da família Sirotsky, um dos cinco maiores conglomerados de mídia do Brasil, faturou 860 milhões de reais e lucrou 93 milhões de reais – acumulando mais de 200 milhões de reais com a lucratividade dos anos anteriores. Em 2006, a receita chegou perto do primeiro bilhão. Parte dos resultados foi distribuída para os empregados com a folha de pagamento de janeiro de 2007: cada um recebeu três salários extras.

De arcas repletas, os executivos da RBS foram às compras em 2006.

Dois embates, um adversário

O lançamento do Hora de Santa Catarina e a aquisição do A Notícia são histórias entrelaçadas, nas quais a RBS enfrentou voluptuosamente um mesmo adversário: o empresário Marcello Corrêa Petrelli, diretor-superintendente da Rede SC, dona de rádios e de emissoras de televisão afiliadas ao SBT. A RBS soube, no início de 2006, que Petrelli planejava lançar um diário popular em Florianópolis – o Notícias do Dia. A informação surpreendeu o grupo, que conservava na gaveta planos semelhantes. Os executivos da RBS consideram Petrelli um amador e não gostaram da idéia de ter de correr atrás da concorrência. O vice-presidente executivo, Pedro Parente, provocou:

– E nós, vamos ficar assistindo?

Em 23 de fevereiro, quinta-feira anterior ao Carnaval, Petrelli recebeu um telefonema do presidente do grupo, Nelson Sirotsky, sondando sobre a possibilidade de uma parceria entre a Rede SC e a RBS no projeto. A idéia de aliança durou só mais um par de telefonemas e chocou-se com as ambições de Petrelli.

 

"A possibilidade de associação esbarrou no desejo de fazer o nosso projeto, no nosso desejo de sermos pioneiros", afirma o dono da Rede SC. "Se fizéssemos o jornal com a RBS, pelo know-how eles iriam fazer a gestão; não haveria sentido nós sermos sócios do negócio deles."

Um tiro de canhão

Outros empresários acalentavam planos de lançar um diário popular na Grande Florianópolis. Ser o primeiro, de fato, tinha alguma importância estratégica. O Notícias do Dia circulou em 13 de março com 4.000 exemplares e assegurou a Petrelli o pioneirismo a preços módicos: nos seis primeiros meses de operação, o empresário investiu 600 mil reais no veículo, sem a participação dos demais acionistas da Rede SC. Atualmente, imprime 7.700 exemplares por dia e vende 5.500.

A reação da RBS foi rápida e incisiva: fez correr a notícia de que também ela preparava um diário voltado para aquele segmento e, enquanto estruturava a redação e a estratégia comercial, organizou uma promoção para escolher o nome do jornal. Mais de 500 mil cupons, que davam o direito a concorrer ao sorteio de um utilitário esportivo, foram recolhidos na região. Batizado como Hora de Santa Catarina, o veículo foi apresentado ao mercado publicitário num café da manhã que reuniu pouco mais de uma centena de agências e anunciantes no auditório da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc), em Florianópolis, em 28 de julho. No evento, Nelson Sirotsky parecia irritado com o atrevimento de Petrelli e elogiou o principal concorrente do Diário Catarinense, a pretexto de alfinetar o rival do Hora de Santa Catarina.

"Todos os jornais sérios do estado, como o DC e A Notícia, têm suas tiragens auditadas pelo IVC (Instituto Verificador de Circulação)", cutucou Sirotsky.

Não era, à época, o caso do Notícias do Dia, só associado ao IVC em outubro. O tom do discurso era coerente com ações de Sirotsky que a platéia ainda desconhecia: dias antes, ele telefonara ao proprietário e presidente de A Notícia, Moacir Thomazi, e marcara um encontro para conversar sobre o futuro do jornal. Era a reação da RBS a outra ação de Petrelli – um tiro de canhão que interromperia um vôo de andorinha.

Noivado e rompimento

Petrelli, o pioneiro, não ficou parado esperando a concorrência chegar a Florianópolis. Em junho, começara entendimentos com Thomazi para o lançamento, em sociedade, de edição local do Notícias do Dia em Joinville. O objetivo de Petrelli era explorar nas edições regionais do jornal a popularidade dos apresentadores dos programas de TV da Rede SC, líderes ou vice-líderes de audiência nos principais mercados do estado – como o blend de deputado estadual e apresentador Nilson Gonçalves (PSDB), eleito pela população da região Norte. A Notícia gostou da conversa porque tinha planos semelhantes para o segmento.

"Também tínhamos um projeto pronto para lançar um popular em Joinville", lembra Thomazi. "O fizemos porque houve, há algum tempo, um movimento da RBS para editar um popular aqui. Como eles refluíram na idéia, nós também deixamos ali."

O modelo do negócio foi decidido em poucas reuniões: as empresas seriam sócias em toda a operação, mas A Notícia bancaria os custos da edição local do Norte do estado e dividiria com Petrelli a despesa para o lançamento em Blumenau (terceiro município catarinense mais populoso). Em 25 de julho, uma reunião matinal fechou o acordo. Na ponta da mesa, Petrelli, feliz como um Roberto Marinho, brindou com Veuve Clicquot Ponsardin, em copos de vidro, a sociedade com Thomazi (os executivos estavam acompanhados pelo diretor de circulação de AN, Armando Tomazi, do gerente de internet e herdeiro do AN, Rodrigo Thomazi, e do diretor-geral do Notícias do Dia, Rogério Caldana.) A cena era de festa de noivado – mas a atmosfera de celebração evaporou como a perlage do champagne: menos de um mês depois, o pacto seria rompido.

"Só não tivemos tempo de assinar o contrato. Quando você vai pegar uma esposa casada é mais difícil. Agora, com uma esposa que não casou, é legítimo", brinca Petrelli.

Transparência e ética

Uma reunião em 16 de agosto, entre as equipes do Notícias do Dia e de A Notícia em Florianópolis, chegou a definir o cronograma de lançamento do popular em Joinville. O veículo seria anunciado ao mercado de anunciantes num café da manhã na Fiesc (exatamente como a RBS fizera com o Hora) e um coquetel à noite na Associação Empresarial de Joinville (Acij). O início da circulação estava programado para 2 de outubro.

Em uma semana, os planos vaporizaram-se, pois a noiva estava sendo cortejada por um rival poderoso. Naquele telefonema de julho, Thomazi e Sirotsky haviam marcado para agosto a primeira de uma breve série de reuniões que decidiria a venda de A Notícia para a RBS. Thomazi manteve Petrelli informado.

"Conversar não custa, e comecei a conversar com os dois grupos", contou o ex-dono de A Notícia, entrevistado em dezembro. "Mas a cada um eu ia dando ciência da conversa que tinha com o outro."

O comportamento não deixou mágoas.

"Thomazi foi de extrema transparência, extrema ética conosco nesse processo", elogia Petrelli. 

O valor do jornal

O primeiro encontro entre as equipes da RBS e de A Notícia, no início de agosto, discutiu as premissas da negociação. Várias possibilidades foram cogitadas, como a venda, a sociedade entre o jornal e o grupo ou outras formas de parceria. As duas últimas opções foram descartadas. Thomazi explica:

"Eu disse ‘Olha, Nelson, uma parceria com o grupo RBS para nós é ruim, porque é uma parceria com forças desiguais. A RBS é um grupo muito grande para o nosso tamanho, lá na frente a gente vai brigar’."

Restou a venda. A Notícia ficou de apresentar, no encontro seguinte, um balanço da situação financeira da empresa. Na segunda reunião, em 15 de agosto, com a presença de técnicos de controladoria da RBS, foram discutidos, previamente, os números do jornal: faturamento, despesas, dimensionamento do contencioso cível e trabalhista. Fez-se um pré-contrato. O grupo enviou auditores a Joinville para, em poucos dias, conferir as informações. A RBS admitira assumir o contencioso trabalhista e cível do jornal – um montante inferior a 5 milhões de reais, grande parte já em depósitos judiciais. Só faltava, então, definir o valor da venda.

Quando os executivos da RBS apresentaram a possibilidade de compra de A Notícia, no primeiro encontro, Thomazi perguntou-se: "Quanto vale o jornal?" Como calcular o valor de um veículo que circulava há 83 anos, com circulação paga de 32 mil exemplares em 260 municípios, faturamento de 30,3 milhões de reais em 2005, 437 empregados e um título tradicional e de credibilidade?

"Eu não tinha a mínima idéia", conta Thomazi. "Nós não tínhamos nos preparado para vender a empresa. Não sabia nem o que podia valer. Nunca fizemos uma avaliação."

A referência veio precisamente de um telefonema para Marcello Petrelli, a noiva abandonada no altar da sociedade para o lançamento do Notícias do Dia em Joinville.

"Marcello, você, que é do ramo, tem uma idéia do que pode valer?"

"Olha, Thomazi, acho que um jornal como o teu vale, no mínimo, entre R$ 40 milhões e R$ 60 milhões."

"Não recebi pressão"

Na terceira e última reunião, em 23 de agosto, fez-se a negociação que levou ao contrato. A primeira proposta da RBS, de 30 milhões de reais, apresentada no encontro anterior, foi rejeitada. Amparado nas contas de Petrelli, Thomazi pediu o dobro.

"Foram feitas muitas propostas ao longo da conversa", resume, evasivo, o ex-dono de A Notícia. "Houve muitos momentos durante a mesma reunião."

O momento-chave foi um encontro a sós entre Thomazi e Nelson Sirotsky, solicitado por este. No diálogo, o presidente da RBS apresentou os planos do grupo para, caso a compra de A Notícia não se concretizasse, lançar um jornal concorrente em Joinville. O grupo teria capital para suportar a operação deficitária do veículo durante mais de uma década. A sede da RBS TV na região, recentemente reformada, estava pronta para abrigar a nova empresa. Cortês e elegante, Sirotsky deixou Thomazi encalacrado entre as possibilidades de vender o jornal de imediato, realizando retorno para os acionistas, ou manter A Notícia sob forte concorrência – e, talvez, ter de vendê-lo no futuro por uma ninharia.

Thomazi nega ter recebido ameaças durante a negociação:

"A gente sabia que haveria um momento em que eles iriam pôr um jornal aqui. Mas a venda não foi em decorrência disso. Não recebi pressão alguma, de parte alguma, de ninguém. Nem da comunidade."

Negócio fechado

Thomazi se queixa é da ausência de sinergia com outros meios de comunicação – sinergia que viabiliza os negócios em função da redução de custos, da exposição compartilhada nas diversas mídias do mesmo grupo, da promoção de eventos e de iniciativas em comum. A Notícia tentou, sem sucesso, obter concessões de rádio e televisão, e permaneceu isolado no mercado das mídias:

"Chegamos a uma encruzilhada. Ou bem a gente se associava ao SBT, o que não eliminava a hipótese de a RBS vir com um jornal para cá… Eles tinham fôlego para bancar um projeto aqui durante dez anos, tirando fatias nossas, nos fragilizando. Aí, concluímos que o melhor seria a venda, desde que os valores fossem compensadores."

A RBS definira, dias antes, os limites para a negociação. E aumentou sua proposta progressivamente até um valor próximo de 50 milhões de reais.

"Muito mais do que o patrimônio do jornal, o que a gente avalia é o potencial futuro de geração de resultados do negócio, a força da marca, a participação de mercado", explicou, em janeiro, o diretor-geral da Unidade Jornal da RBS em Santa Catarina, Marcos Noll Barboza, escalado pelo grupo para comentar a transação.

Uma cláusula contratual impede as partes de confirmarem o valor exato do negócio. Uma projeção baseada no valor recebido por um sócio minoritário resulta na cifra de 48 milhões de reais. O capital de A Notícia era uma rara combinação de propriedade familiar com articulação política local: dois sobrenomes tinham 96,7% do capital, mas 128 acionistas detinham poder simbólico – presidentes de multinacionais com sede na região, ex-dirigentes da Fiesc, políticos: uma elite local inteira. Thomazi tinha carta-branca para negociar no horizonte daqueles valores sugeridos por Petrelli:

"Não havia, por parte da família, nenhum interesse em continuar no negócio. Articulei-me com os acionistas. Estabelecemos um valor. Tinha uma margem de negociação. Não ficou no ideal nem no mínimo."

Fechado o negócio, o governador Eduardo Pinho Moreira (PMDB) foi informado por telefone, por Sirotsky e Thomazi, logo após o encerramento da reunião. Na semana seguinte, a RBS enviou uma equipe que passou quase um mês na sede de A Notícia checando detalhadamente as informações contábeis e outros aspectos estratégicos e operacionais. O contrato foi assinado em 22 de setembro. A RBS assumiu A Notícia em 1º de outubro.

O conquistador e a província

Houve alguma resistência em Joinville, mas o desconforto político foi contornado com habilidade. O mesmo valor por ação oferecido à família foi estendido aos demais acionistas; até o final do ano, apenas oito dos minoritários ainda não haviam vendido sua parte – porque não tinham sido encontrados por Thomazi ou porque estavam com problemas de saúde. Antes de assumir o jornal, os executivos da RBS viajaram para participar de uma reunião da Associação Empresarial de Joinville (Acij) – praticamente uma assembléia de acionistas minoritários de A Notícia.

Thomazi, ex-presidente da entidade de classe, fez um breve relato da transação e assegurou que o controle do jornal não estava sendo vendido a um "grupo de aventureiros ou com interesses meramente políticos", mas a um conglomerado profissional da área da comunicação. Admitiu que haveria alterações nos quadros profissionais da empresa, especialmente na direção. Mas assumiu a condição de "avalista do processo": obedecendo a uma das condições do contrato, ele ficaria na presidência do jornal até 28 de fevereiro de 2007 – prazo estendido até o final de junho. (Outra condição é uma quarentena de cinco anos, se Thomazi quiser voltar ao mercado de comunicação.) O ex-proprietário minimizou a venda, alegando tratar-se só de "mudança de controlador acionário", não da "identidade" do jornal:

"A RBS é tão joinvilense quanto todos os empresários que estão aqui e não permitirá que o jornal se desvie de sua missão, que é a defesa da Joinville e de sua gente."

Cerca de 100 empresários acompanharam em seguida a longa exposição de Sirotsky, que estava acompanhado de sete executivos da RBS – incluindo-se os três herdeiros dos fundadores do grupo (além dele, seu irmão Pedro Sirotsky e o primo, Sérgio Sirotsky) e o vice-presidente Pedro Parente (ex-ministro do governo FHC). Entronizado por Thomazi na província, o conquistador Sirotsky disse encarar como "natural a preocupação com o significado da transferência do controle acionário do jornal". Assegurou que a motivação fora, essencialmente, empresarial, observada a dimensão do mercado e a oportunidade que se abria ao grupo:

"A Notícia só vale esse investimento porque é um jornal que em seus 83 anos de atividade refletiu os anseios, aspirações e a realidade de sua comunidade. O jornal vai continuar sendo joinvilense, um veículo identificado com a cidade e a região norte catarinense."

Sirotsky terminou seu show com um estranho convite para uma festa que só acontecerá daqui a 16 anos: a do centenário de A Notícia, no dia 24 de fevereiro de 2023. Ninguém da platéia recusou. Semanas depois, a RBS impôs ao jornal a primeira mudança significativa de posicionamento no mercado: trocou o provocativo slogan "catarinense de verdade" por "traduz o seu mundo", mais coerente com o projeto do grupo gaúcho.

Perda de 6 mil leitores

"Foi uma transição muito bem sucedida", reconhece Thomazi. "A gente fez a coisa muito transparente com a comunidade política e empresarial. Há aquele sentimento de perda, que a gente também tem. Mas A Notícia apenas mudou de dono."

A sinergia já cortou pela metade o número de empregos no jornal. Em seis meses, a RBS demitiu 170 dos 437 empregados de A Notícia – e os cortes continuaram. Em 5 de janeiro, precisamente às 14 horas, os telefones da linha direta com o assinante (0800475454) passaram a tocar em Porto Alegre, onde está centralizada a operação de telemarketing e atendimento ao cliente do grupo. Foram eliminadas equipes inteiras de distribuição e comercialização das sucursais.

A guilhotina poupou jornalistas: apenas 15 repórteres ou editores foram demitidos de A Notícia desde 1º de outubro, segundo o sindicato da categoria. Petrelli aproveitou alguns deles. Com um grupo de profissionais que havia se desligado espontaneamente de A Notícia, a Rede SC lançou em Joinville o Notícias do Dia, em 6 de novembro. Vende 4.500 exemplares por dia.

"A cidade está se sentindo órfã com a venda de A Notícia", afirma Petrelli.

Parece exagero, mas A Notícia já perdeu no mínimo seis mil leitores: a circulação média diária caiu 17,5%, de 31,3 mil exemplares para 25,8 mil, segundo o IVC. Movimento semelhante ocorreu nos anos 1990, quando a RBS comprou o Jornal de Santa Catarina, de Blumenau; naquele caso, depois da transformação do formato do diário de standard para tablóide, o número de assinantes tornou a subir.

Concorrente condena dumping

A compra de A Notícia foi fechada cinco dias antes do início da circulação do Hora de Santa Catarina em Florianópolis. O projeto do jornal popular exigiu pouco investimento da RBS. O lançamento beneficiou-se da sinergia entre as diversas mídias na capital catarinense: uma emissora de TV aberta, dois canais de TV a cabo, duas emissoras FM e uma AM. Para a campanha de lançamento, a RBS só precisou pagar panfletos e outdoors.

A redação do Hora ocupa apenas uma sala, na sede do Diário Catarinense. O jornal é vendido ao preço promocional de 25 centavos– seu irmão mais velho e idêntico, o Diário Gaúcho, lançado pelo mesmo valor no ano 2000 em Porto Alegre, custa hoje 60 centavos. Não bastasse o preço irrisório, o jornal distribui prêmios a quem coleciona os selos impressos na capa: 60 selos valem um kit caipirinha, um jogo de panelas ou de travessas, um faqueiro. A concorrência não gosta.

"O monopólio não vem da compra de A Notícia", critica Petrelli. "Isso é legítimo. A decisão de querer monopolizar o mercado vem de querer agredir a concorrência, de impor um produto subsidiado, com dumping, para inviabilizar outros players no mercado. Acho que a RBS se equivoca quando faz isso. Se equivoca em depreciar o produto jornal. Ela dá uma demonstração real de querer nos inviabilizar.

A RBS ignora as acusações, com a soberba de quem já conta quase sete vezes mais leitores no mesmo segmento de mercado que Notícias do Dia. Preparado para suportar prejuízo com o Hora por pelo menos 20 meses, o grupo se surpreendeu com o retorno dos leitores e dos anunciantes. O jornal foi projetado para vender em torno de 20 mil exemplares diariamente, mas a circulação, vitaminada pelas promoções, já ultrapassou os 35 mil.

Espaço de sobra

"Muita gente que não lia jornal está lendo a Hora", celebra Marcos Barboza. "Esse é o grande mérito, até mesmo em termos de importância social do jornal, de trazer informação, fortalecer o senso crítico, a cidadania. Nosso objetivo com a Hora é de longo prazo. É formar uma base de leitores. Muitos deles vão passar a ter um nível de exigência maior sobre o jornal e vão passar a ler o Diário Catarinense."

Vendido a 2 reais em dias úteis, o DC, como ocorrera com Zero Hora em relação ao Diário Gaúcho, não perdeu leitores para o Hora de Santa Catarina. E o popular conquistou anunciantes mais rapidamente do que o previsto, conforme Barboza:

"A gente chegou, nos primeiros meses, num nível de faturamento publicitário [previsto] talvez para o segundo ano do jornal. Em dezembro de 2006, tivemos um faturamento muito acima do esperado."

O próprio Notícias do Dia festeja a receptividade positiva do mercado ao jornal popular. Petrelli afirma ter alcançado o break-even em setembro, seis meses depois de começar a circular em Florianópolis. Na véspera do lançamento do Hora de Santa Catarina, os diretores do Notícias do Dia decidiram manter o preço de capa em 50 centavos. O jornal perdeu 25% dos leitores no dia seguinte, mas se recuperou rapidamente.

"Três semanas depois da Hora, nós havíamos crescido 15%", calcula Petrelli. "Quando a RBS entra [nesse mercado], dois benefícios acontecem. Aumenta o número de leitores porque aumenta a divulgação. E também agrega comercialmente, ao aumentar a credibilidade do jornal popular. O líder tem que promover o crescimento do bolo."

O reconhecimento não ameniza a verve de Petrelli. Subitamente galgado ao posto de rival que merece respostas do líder, ele ataca a RBS:

"Nós não somos um poder", provoca, evocando o espectro autoritário que acompanha certa visão sobre o grupo. "Somos uma empresa que está a serviço da sociedade organizada. Nosso papel não é impor nossa verdade, nossa percepção; é criar um fórum para discussão e isso só acontece quando se tem espaço e comunicadores. Eu não estava procurando enfrentar a RBS. Ela é que veio ao nosso patamar para nos enfrentar. E é claro que agora eu tenho de me defender. A RBS criou um concorrente."

No início deste ano, o executivo Marcos Barboza afirmava que, por enquanto, o Notícias do Dia de Joinville continuaria sem concorrente em seu segmento: a RBS não pretendia lançar o Hora de Santa Catarina no Norte do estado. Segundo o diretor, novas aquisições não estão nos planos do grupo:

"A gente começou o ano [de 2006] com dois jornais e terminou com quatro. Nosso objetivo [em 2007] é consolidar a Hora, fortalecer sua relação com os leitores, e fazer um bom trabalho em A Notícia. Não está em nossos planos lançar a Hora em Joinville, nem outro jornal lá. O objetivo da RBS é otimizar as suas operações atuais nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e priorizar investimentos relacionados a novas plataformas de distribuição de informação e conteúdo."

Os oito jornais do grupo (quatro são do Rio Grande do Sul) imprimem quase meio milhão de exemplares por dia – fossem um só jornal, seriam, disparado, o maior do país. A queda contínua na circulação de A Notícia no primeiro semestre de 2007 reacendeu os planos de editar um popular em Joinville. Depois das demissões, há espaço de sobra na sede do jornal.

* Jacques Mick é jornalista, professor da Associação Educacional Luterana Bom Jesus/Ielusc, Joinville, SC

45 anos do CBT: sem festas, nada a celebrar

O que sobrou do Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT) – a Lei 4.117, de 27 de agosto de 1962 – completou 45 anos na segunda feira (27/8). Velho e desatualizado, ele ainda é – por incrível que possa parecer – a principal norma legal da radiodifusão brasileira, levando-se em conta, sobretudo, que a Lei Geral de Telecomunicações (a Lei 9.472/1997) retirou dele toda a parte referente às telecomunicações. Aliás, na pressa da privatização das telecomunicações e na contramão do que ocorre no resto do mundo, a Emenda Constitucional 08 de 1995 já havia separado a radiodifusão das telecomunicações.

O CBT, na verdade, é o símbolo perfeito da regulação – ou da ausência dela – no setor de radiodifusão. Sua elaboração e aprovação no Congresso Nacional marcam a fundação da Abert – Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão –, que até hoje é a principal representante dos interesses dos empresários de radiodifusão. A maioria desses empresários apoiou o golpe de Estado que, apenas um ano e meio depois da aprovação do CBT, destituiu do poder o presidente João Goulart, responsável por 52 vetos à Lei 4.117, todos posteriormente derrubados no Congresso Nacional, numa inédita demonstração de força da radiodifusão privada no país.

Os artigos cujos vetos foram revogados determinaram, dentre outros, os prazos de 15 e 10 anos para as concessões de televisão e rádio, respectivamente, e o deferimento da prorrogação da concessão se o órgão competente não se pronunciasse em 120 dias. Mais importante, todavia, são as omissões do CBT em relação aos limites da propriedade e à propriedade cruzada dos meios. Essas omissões são as principais responsáveis pela concentração da propriedade da mídia entre nós.

Coronelismo eletrônico

Na verdade, a única limitação existente à propriedade dos meios de comunicação – e, mesmo assim, ignorada – foi introduzida cinco anos depois no CBT em modificação feita pelo Decreto 236/1967. Em seu artigo 12, o decreto reza que:

"Cada entidade só poderá ter concessão ou permissão para executar serviço de radiodifusão, em todo o País, dentro dos seguintes limites: (…)

I – estações radiodifusoras de som:

locais: ondas médias, 4; freqüência modulada, 6; regionais: ondas médias, 3; ondas tropicais, 3 (sendo no máximo 2 por estado); nacionais: ondas médias, 2; ondas curtas, 2;

II – estações radiodifusoras de som e imagem – 10 (dez) em todo o território nacional, sendo no máximo 5 (cinco) em VHF e 2 (duas) por estado; (…)

Essas limitações, no entanto, se tornam inócuas porque, contrariamente a toda evidência, o Ministério das Comunicações considera "entidade" como significando "pessoa física" e, ademais, não leva em conta o parentesco.

Por outro lado, não existe no CBT qualquer restrição à propriedade cruzada dos meios, isto é, à possibilidade de um mesmo grupo empresarial controlar, num mesmo mercado, emissoras de rádio (AM e/ou FM) e televisão (aberta ou paga).

Ademais, não é clara no CBT a restrição àqueles que estiverem em gozo de imunidade parlamentar para ser concessionários de rádio e/ou televisão. O Parágrafo Único do Artigo 38 determina que o parlamentar não possa exercer a função de diretor ou gerente de empresa concessionária. Apesar da Constituição de 1988 também proibir que deputados e senadores mantenham contratos ou exerçam cargos, função ou emprego remunerado em empresas concessionárias de serviço público (letras a. e b. do item I do Artigo 54), é de conhecimento público o fenômeno do coronelismo eletrônico que historicamente tem caracterizado o vínculo de oligarquias políticas regionais e locais com a radiodifusão no Brasil.

Marco regulatório

O resultado de tudo isso foi a formação e consolidação histórica de um sistema de mídia que tem, desde as suas origens, a propriedade cruzada e o vínculo político como uma de suas principais características.

Os exemplos mais significativos, claro, são os dois maiores conglomerados de comunicações já formados no país: os Diários Associados, dominantes durante boa parte do século passado, e as Organizações Globo, hegemônicos dos anos 70 até os nossos dias. Esses grupos cresceram e se consolidaram através da propriedade cruzada e de afiliações regionais com oligarquias políticas, em diferentes estados da federação.

Dessa forma, a lição histórica que os 45 anos do CBT nos deixa é a reafirmação da necessidade inadiável de um marco regulatório para as comunicações no Brasil que substitua esse superado diploma legal. Fundado no direito à comunicação e considerando a convergência tecnológica – que dissolve as fronteiras entre as telecomunicações, a comunicação de massa e a informática – esse marco regulatório deve assegurar a pluralidade, a diversidade e o localismo nas comunicações e ter como horizonte o interesse público.

Não há outro caminho para a consolidação da nossa democracia.

* Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007

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