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TV Digital: o mundo é móvel, portátil e conectado

Desde quarta-feira, 17, os habitantes de Whiteheaven, Inglaterra, que tentam sintonizar seus televisores analógicos na BBC2, estão vendo a tela em branco. Whiteheaven foi a primeira cidade do país a completar a migração para o digital e devolver para o governo as antigas freqüências. Tal coisa só acontecerá no Brasil dentro de seis ou sete anos. Mas, ao contrário do que acontece na pequena cidade inglesa, a televisão já será bem diferente. E o que será mais diferente não é o que estará na tela do televisor: é o local onde o próprio televisor estará.

Os primeiros paises a completarem a transição para o digital ainda atrelam o receptor de televisão à sala de estar. E no entanto este será o lugar mais improvável para encontrá-lo quando as freqüências hoje ocupadas pelas emissoras brasileiras forem devolvidas ao organismo que estiver onde neste momento está a Anatel.

A televisão perdeu sua imobilidade. Não está sozinha nisto, aliás. Tornou-se, pelo mais bizarro dos caminhos, prima-irmã do telefone – assim como de toda forma de comunicação. Na sexta-feira, 19, por exemplo, o governo japonês finalizou o recebimento das propostas para as duas licenças de WiMax que concederá até o final deste ano.

O WiMax é por enquanto a mais importante das tecnologias de Internet móvel. É análoga ao Wi-Fi – que permite a conexão sem fio a partir de um servidor próximo e que no Brasil é usado de modo rudimentar por operadoras transformadas em caça-niqueis de aeroportos – mas tem um alcance de dezenas de quilômetros. É uma das soluções mais prováveis para resolver o problema da interatividade na televisão, estabelecendo o canal de retorno para o espectador (que é por onde o espectador "responde" à TV). Envolve empresas como a Samsung, a Sprint Nextel e a Intel. Só a Sprint estará investindo nela 5 bilhões de dólares ao longo dos próximos três anos.

Até o final deste ano, o WiMax vai estar cobrindo áreas como Chicago e Washington-Baltimore. Quem estiver com um laptop ou um handheld em qualquer esquina dessas cidades, estará conectado. Parece muito, mas o governo do Japão acha que é pouco. Ele exige que as empresas que ganharem as licenças iniciem os serviços dentro de três anos no máximo e que, até 2012, pelo menos 50% dos japoneses possam estar conectados onde quer que eles estejam.

Se o WiMax não conseguir isso, tecnologias similares – WiBro, HSPA, iBurst, UPS – estarão prontas para tentar. O certo é quando as crianças que nascerem hoje ainda estiverem brincando com bonecas, praticamente nenhum adulto estará desconectado no meio da rua.

2,3 trilhões de mensagens

Conectividade e mobilidade estão em toda parte. Escreve-se hoje para não se perder tempo com as frivolidades da etiqueta oral. As operadoras de telefonia móvel fazem 60 bilhões de dólares/ano no mundo só com mensagens de texto. Em 2010, segundo a Dataquest, 2,3 trilhões de mensagens serão enviadas pelo que hoje chamamos de telefone celular. Isso estará gerando 72,5 bilhões de dólares para as operadoras.

Neste momento, existem 2 bilhões de seres humanos usando celulares e um bilhão conectados à Internet. Na Europa, há mais celulares do que gente. Todos esses aparelhos caminham a curtíssimo prazo para se tornar receptores de televisão. E, logo em seguida, para estarem conectados à web.

A previsão do CEO da Intel, Paul Otellini, é que 150 milhões dessas pessoas estejam cobertas pelo WiMax até o final do próximo ano. É praticamente a população inteira do Brasil conectada. No mundo dito civilizado não há como escapar à conectividade – e sobretudo à conectividade móvel.

É para lá que ruma a televisão, muito mais rápido do que a maioria das pessoas pensa e de forma mais inexorável do que os piores pesadelos das emissoras são capazes de criar. Elas estão perdendo de 1 a 3% de audiência no mundo para outros suportes, todos os anos. O publico cativo da televisão fixa se esvaiu.

Por ironia, a televisão tenta agora imitar a aparência das novas mídias (blogs, fóruns, formas interativas) assim como os jornais (USA Today à frente deles) tiveram que imitar a aparência da televisão para sobreviver.

França: novas regras

A luta pela sobrevivência é mesmo dura. A ministra da Cultura e Comunicação da França, Cristine Albanel, anunciou no inicio da semana passada que vai reformular a regulamentação audiovisual do país.

As medidas incluem a modificação do decreto que obriga as redes de televisão a aplicar 2/3 de seus orçamentos na compra de ficção de produtores franceses independentes. Isto permitirá à TF1, a maior rede aberta do país, reduzir seus custos em 50 milhões de euros por ano.

As redes deverão ter permissão também para veicular 12 minutos de comerciais por hora. Atualmente elas só tem direito a 6 minutos. Isto fará com que a própria TF1, para não sair dela, possa aumentar sua receita anual em 40 milhões de euros. Os dados estão no Le Journal des Finances de 13 de outubro.

Brasil: momento emblemático

São as mídias emergentes que estão forçando a adequação dos modelos de negocio na televisão. O embate entre a regulamentação, o papel do Estado e a construção de uma televisão apta a olhar para o futuro terá no Brasil um momento emblemático em 2 de dezembro, no mesmo dia em que o país começar oficialmente suas transmissões digitais terrestres. Ali estará se instalando também a rede de televisão publica criada pelo atual governo.

Dois testes serão capazes de revelar a quem estará servindo a nova rede. O primeiro é sua capacidade de vislumbrar os novos tempos e se adaptar a eles. Por "novos tempos" deve-se entender uma época em que a televisão aberta deixa de ser massificada, torna-se prioritariamente móvel, já não é mais hegemônica em relação às outras mídias e tem que adequar seu conteúdo às plataformas existentes.

O segundo teste é naturalmente o da possibilidade de se construir uma gestão ética. O retrospecto do país está longe de ser encorajador neste quesito. Mas as perspectivas são muito boas.

Há ótimos exemplos no mundo a serem seguidos. A BBC é sempre citada – muito mais como um formato de gestão do que como um modelo de comportamento. E, no entanto, absorver modelos de comportamento nada tem de subserviência colonial.

Ainda na semana passada o diretor geral da BBC, Mark Thompson, teve que voltar a dar explicações ao Conselho sobre a desastrosa edição da chamada do programa em torno da rotina da Rainha Elizabeth II, onde o espectador é levado a concluir, erroneamente, que ela retirou-se de uma sessão de fotografias com Annie Leibovitz. Parece banalidade, mas não é. O antecessor de Thompson, Greg Dyke, teve que deixar o cargo em 2004 quando um inquérito judicial encontrou incorreções no tratamento dado pela BBC à atuação do governo durante a invasão do Iraque.

Tanto as emissoras privadas quanto os tablóides ingleses mentem e ofendem livremente – mais talvez que na maior parte do mundo civilizado – mas em se tratando da BBC ela é considerada culpada por iludir o público até mesmo ao anunciar que num programa infantil (Blue Peter) as crianças haviam escolhido o nome Socks para um gatinho, quando a votação, na verdade, dera a vitória ao nome Cookie.

O que é público tem para os ingleses a obrigação de ser bom e ser responsável. Não é pecado algum seguir esse ensinamento. O Tietê não se tornaria o Tamisa, mas o Brasil melhoraria bastante.

Cinema e Telenovela: abrindo terreno para a política-caveira

Era um risco e vai se tornando realidade. A tematização, pelo cinema e a televisão, do combate ao crime encastelado nas favelas, deslocando-o de seu cenário habitual – e inócuo – do jornalismo, seja ele o policial ou o político, põe o debate sobre a segurança pública no país em novos termos. Novos e preocupantes.

Agora, a cidadania já não forma opinião baseada somente no noticiário criminal, em geral burocrático e estatístico, da imprensa "séria", nem na histeria irracional e oportunista da imprensa "sensacionalista" Também não se alimenta, apenas, das doutas considerações dos sociólogos, psicólogos, juristas e afins, que pululam nas páginas de opinião dos jornais e revistas, e nos comentários do rádio e do telejornalismo.

Agora há também, para alicerçar a opinião pública, um punhado de personagens ficcionais, calcados em tipos reais, carregados de verossimilhança e plausibilidade, mais "verdadeiros" do que parecem os seres descritos na crônica policial, mais complexos e integrais na mescla de razão e emoção com que percebem o mundo (como os demais humanos). Heróis ou vilões, aí estão eles influenciando o cidadão e suas idéias sobre o combate ao crime e à violência.

Soluções de força

O fenômeno Tropa de Elite já foi devidamente dissecado, por incontáveis analistas, no potencial regressivo que demonstra, de despertar o sadismo das platéias e reforçar em boa parte delas a crença em soluções de força para a tragédia social brasileira. Certamente era o oposto que seus realizadores desejavam, mas não são mais fatos isolados, numa sessão de cinema ou outra, as manifestações de júbilo e gozo do público com as atitudes do Capitão Nascimento (Wagner Moura), do aprendiz André Matias (André Ramiro) e demais torturadores-fuzileiros que estrelam o filme. Jovens deixam os cinemas cantando os hinos de guerra desses policiais que se pretendem soldados, e correm a comprar objetos e roupas que ostentam seu signo revelador, a caveira. Entregam-se ao culto macabro dos justiceiros fardados, piamente convictos de que é à bala que se enfrenta a criminalidade. Também retratados no filme, os debates universitários sobre crime e violência, as ações sociais das ONGs e as manifestações de rua pela paz são claramente desqualificados como ingênuos, alienados e mesmo hipócritas, posto que seria a classe média a responsável última pelo crime, na medida em que consome drogas e sustenta o aparato econômico-militar em torno delas, seja para o seu comércio, seja para a repressão. Não há qualquer razão, portanto, para a identificação das platéias com os personagens que encarnam esse lado do problema. Não é de estranhar que o público divirta-se com cenas de extrema brutalidade contra eles, como na surra aplicada pelo aspirante Matias no universitário que distribui maconha na faculdade, ou no diretor de ONG queimado vivo por traficantes.  O poder público, habitualmente inepto no enfrentamento da criminalidade, percebe a tendência regressiva e vai na onda, usando o fuzil em vez da cabeça. Afinal, são eleitores os que regozijam-se com a violência e, como se sabe, é mau negócio contrariá-los, mesmo longe das eleições. Daí que o governo do Rio de Janeiro não apenas autoriza operações bélicas totalmente irresponsáveis nas favelas da Rocinha, Dona Marta e Coréia, como se mostra indiferente à sorte das vítimas "civis". Uma criança de 4 anos ser trespassada por um tiro de fuzil, dentro de sua casa, não é mais do que um "dano colateral" no nobre combate armado à bandidagem. Qualquer vivente sabe com que facilidade as balas atravessam as precárias paredes das moradias populares, mas o risco não é suficiente para inibir a insana estratégia de provocar tiroteios em favelas. Tolerância zero e Duas Caras Culpar Tropa de Elite, exclusivamente, pelo recrudescimento da "tolerância zero" no enfrentamento da criminalidade, seria leviano e equivocado. A opinião pública se forja por um conjunto de fatores e mesmo o espetacular sucesso do filme, já um fenômeno de massas, não explica tudo. Convém jogar também no caldeirão de referências oferecido ao juízo da cidadania um outro produto cultural, de influência indiscutível: a novela das nove da TV Globo. O que temos nela de preocupante, a estimular a percepção pública crescente de que o crime se resolve por meios extra-legais?  Em Duas Caras, novela de Aguinaldo Silva dirigida por Wolf Maia, desponta um curioso personagem de nome Juvenal Antena, interpretado por Antonio Fagundes. Ex-segurança de uma construtora que vai à falência e deixa todos os empregados sem receber, torna-se líder e "protetor" dos peões, invadindo um terreno da empresa para formar nele uma nova comunidade, a favela da Portelinha. Os anos se passam, a favela torna-se um bairro gigantesco e o poder de Juvenal apenas se fortalece, fazendo dele o ditador de todas as leis e todas as regras, que incluem deliberar sobre o comportamento privado dos moradores e mesmo suas relações afetivas. Juvenal é um "chefe de morro", o traficante rico e armado até os dentes, que distribui benesses e terror com igual desenvoltura na comunidade? Não, abomina traficantes e criminosos em geral. Então ele é um chefe de milícia, um policial afastado ou em atividade que reúne um grupo armado, expulsa os bandidos da área e "oferece" segurança aos moradores, em troca de pagamento "espontâneo" pelo serviço prestado?  Também não, ele abomina armas e não cobra nada de ninguém. Juvenal é um líder comunitário bastante autoritário, com práticas de poder ambíguas, que mesclam populismo sedutor e uma violência dissimulada, que o telespectador não vê, mas intui, pela atitude sempre impositiva e ameaçadora do personagem. A novela nos mostra que, graças à sua ação heterodoxa, a Portelinha transformou-se em exemplo de comunidade ordeira, livre do crime e da violência, a ponto de suscitar o interesse de jovens documentaristas – iguais aos jovens universitários de Tropa de Elite, também bem-intencionados, ingênuos e incoerentes, embora não lhes seja possível acender nenhum baseado no horário nobre da Globo, enquanto conjeturam sobre as suas responsabilidades sociais.  O Estado não está ausente da Portelinha. Não se vê posto de saúde, carro de polícia ou outros indicativos da presença estatal, mas há em cena o deputado estadual Narciso Tellerman (Marcos Winter), aliado de Juvenal, obviamente eleito graças aos votos da comunidade popular. O Estado se faz presente na novela, portanto, pelo que oferece de pior à população, o conluio interesseiro de políticos com líderes comunitários controladores de currais eleitorais. Tellerman admite os métodos "pouco convencionais" do cacique favelado, mas nem por isso deixa de atuar com ele, nem lhe passa pela cabeça que comunidades efetivamente livres do crime não deveriam carecer de protetores, de "pais de todos", para exercer a sua liberdade. Se o Estado é reduzido à mera politicagem, as ONGs também apanham em Duas Caras. Numa cena emblemática, socialites procuram Juvenal Antena para oferecer a doação de agasalhos aos pobres favelados. Mas não o fazem por compaixão e sim porque concorrem a uma viagem a Paris, paga por organização internacional, onde mostrarão o seu case de ação social. É esse o grau de compromisso e seriedade que Aguinaldo Silva enxerga em ONGs "picaretas", as quais pretende espicaçar outras vezes ao longo da novela. Caldo de cultura para o autoritarismo E é assim que vai engrossando o caldo de cultura para a adoção de políticas autoritárias de segurança pública. Obras influentes do cinema e da televisão glamurizando policiais e líderes comunitários "durões", ridicularizando organizações que procuram atuar num meio social deteriorado e carente, deixando de enfatizar que o Estado deve se fazer presente com políticas de promoção humana, não de carnificinas.  Produtores, autores e diretores protestam inocência e dizem que tratam apenas de "mostrar a realidade como ela é". Mas a realidade é que, a cada dia, o terreno está mais livre para a ética do chumbo quente. Terreno limpo para "deitar corpo no chão".

Para não repetir a tragédia da Escola Base

Uma senhora, que se recusa a ser identificada, procurou pelo menos um órgão de imprensa na semana passada para dizer que, certa noite em fins de 1999, por acaso, viu o padre Júlio Lancellotti beijando um adolescente numa dependência da Casa Vida 2, em São Paulo, onde ela trabalhava. A entidade, da qual o padre é um dos fundadores, cuida de jovens portadores do vírus da aids.

Deve ser a mesma mulher que, sem aparecer, contou a mesma história num programa da TV Record, domingo à noite.

Hoje está nos jornais que, procurada pela polícia, ela gravou um depoimento numa delegacia, na terça-feira. De novo, pediu anonimato. A acusação resultou na abertura de inquérito para apurar a história do “ato libidinoso” [a expressão é do delegado responsável pela investigação] que a então funcionária da entidade diz ter presenciado.

Se comprovado, o padre será processado por corrupção de menor. A denunciante diz não saber quem era o jovem. A polícia quer identificá-lo e localizar a sua família – ele teria deixado a instituição pouco depois do alegado incidente.

À polícia, ela confirmou já ter narrado o episódio à imprensa, que nada publicou.

É a coisa certa a fazer quando é procurada por uma pessoa com uma acusação pesadíssima contra alguém – no caso um conhecido religioso, que revelou ser vítima de extorsão –, mas não assume a denúncia, não apresenta provas, não dá qualquer informação substantiva que permita checá-la, além do “ouvir dizer”.

Por que ela não falou antes? A um interlocutor, alegou que teve “medo”, mas não teria deixado claro do que. À polícia, segundo o Estado, ela mencionou o “temor de que ninguém a levasse a sério”.

Enquanto a polícia se ocupa do padre e do moço, a mídia deveria se ocupar da senhora. Primeiro, para excluir, ou corroborar, a possibilidade de que ela tenha motivos ocultos para fabricar uma acusação deste tamanho.

Afinal, além da questão do tempo transcorrido entre o suposto “ato libidinoso” e a denúncia, pelo menos duas dúvidas pedem para ser esclarecidas: por que ela tomou a iniciativa de procurar a imprensa e não a polícia? Por que o anonimato?

Quem diz o que disse a ex-funcionária da Casa Vida – e ainda por cima nessas condições – merece passar pelo pente fino da imprensa.

Quanto mais não seja, para assegurar que não se repita com o padre Lancelotti a tragédia dos donos da Escola Base, cujas vidas a polícia e a mídia arrebentaram por causa de uma acusação que se revelou, tarde demais, caluniosa.

Por falar em acusação: o caso Renascer

É comum, nas redações, ouvir queixas contra assessorias de imprensa – de comunicação, como passaram a se chamar – cujas sugestões de pauta ou deixam clara a intenção de puxar o repórter pelo nariz até onde interessa ao cliente da assessoria, ou, de tão toscas, praticamente imploram para ser apagadas do computador do destinatário.

O reverso da moeda é a queixa dos assessores que concebem o seu trabalho como desbravadores de caminhos os quais, se bem percorridos, resultarão em reportagens úteis – assim dizem crer – tanto para o leitor quanto para os assessorados.

Um exemplo de desperdício de pauta parece terem sido as matérias do Estado e do Diário de S.Paulo de ontem sobre as acusações do promotor Marcelo Mendroni, do Ministério Público paulista, contra a auto-denominada Igreja Apostólica Renascer em Cristo.

Os dirigentes da Renascer, Estevam e Sonia Hernandes, estão presos nos Estados Unidos, onde respondem a processo por lavagem de dinheiro. Há ordem de prisão cautelar contra eles no Brasil.

Pois bem. Na terça-feira, o promotor Mendroni convocou uma entrevista para informar que uma inspeção em três entidades beneficentes mantidas pela igreja revelou estarem em situação “precária” porque, segundo ele, o dinheiro que serviria para mantê-las, arrecadado dos fiéis, foi nutrir “o patrimônio pessoal dos chefes da Renascer”.

Em consequência, afirmou o promotor, os seus internos são obrigados a trabalhar para levantar os recursos sem os quais elas não teriam como funcionar.

A assessoria de comunicação da igreja respondeu com um texto de 800 palavras que é um híbrido de candente desmentido formal [“Uma denúncia que não resiste à luz do sol”] e pauta circunstanciada para o órgão de mídia que quisesse tirar a limpo o que se passa nas três entidades, uma em Franco da Rocha, outra em Santana do Parnaíba, outra ainda em Heliópolis, São Paulo.

“A mentira não resiste a uma reportagem bem feita”, provoca o texto.

Qualquer que seja a verdade, é inegável que o texto é uma pauta bem feita. Diz, em cada caso, o que são as instituições, a quem atendem, de onde vêm os assistidos, o que se faz nelas, onde ficam e quem as dirige.

A idéia da assessoria é que os repórteres fossem ver as coisas com os seus próprios olhos, como se diz, e quando lhes conviesse, sem monitoramento.

Nem o Estado, nem o Diário, a julgar pelo que deram, ouviram os principais interessados – os assistidos, seus parentes, a vizinhança, para saber o que acham das acusações do promotor. E, seja lá o que os olhos dos repórteres tenham visto, para o leitor sobrou pouco.

A matéria do Estadão termina com uma frase sumária e cuidadosa: “O Estado visitou ontem a entidade que cuida de crianças em São Paulo, na favela de Heliópolis, duas semanas após a inspeção da polícia e da promotoria, e não viu problema aparente”.

O outro jornal é mais informativo: “Ontem, o Diário visitou uma das unidades, em Heliópolis. Lá, a reportagem constatou problemas na infra-estrutura do prédio, como rachaduras na fachada, algumas infiltrações nas paredes e sujeira no piso. A coordenadora da instituição, pastora Nádia Felfele, disse que o problema no piso e paredes é porque o prédio ficou muito tempo sem telhado, e o das rachaduras é porque houve um problema com a massa corrida da fachada. A coordenadora afirmou ainda que a Renascer envia a ela cerca de R$ 1 mil por semana, além de pagar todas as contas do lugar”.

E se ela mentiu? Como saber se as famílias das crianças ali atendidas não precisam, elas, cobrir “as contas do lugar”?

No fundo, é o de sempre: um lado, outro lado; fala o acusador, fala o acusado. E lá de foi mais uma oportunidade de contar uma boa história sobre uma organização cercada de suspeitas – que, nesse caso particular, podem ser, ou não, procedentes. 

Caso Cisco: a mídia cobre mal o crime corporativo

O escândalo envolvendo a multinacional de informática Cisco Systems é mais um exemplo de como o jornalismo de negócios e o jornalismo econômico andam distantes dos novos paradigmas do capitalismo. Em um mundo agitado por mudanças, com a premência de processos de produção limpos, responsabilidade social empresarial e transparência na gestão, a imprensa ainda segue antigos padrões, avaliando as companhias quase unicamente por seus resultados financeiros, posicionamento no mercado e inovação tecnológica.

O próprio noticiário relativo aos crimes de que são acusados dirigentes da Cisco deixa de lado elementos importantes do contexto em que se deu a investigação da Polícia e da Receita Federal, que se referem ao sistema de importação e distribuição de produtos de informática na chamada periferia da economia global. A utilização dos chamados "canais" – nome pelo qual são chamados os revendedores de produtos de alta tecnologia – há muito deveria estar atraindo a atenção da imprensa, pela extrema vulnerabilidade do sistema ao risco de fraudes.

Os grandes jornais e, especialmente, as publicações especializadas em Tecnologia da Informação, mantêm repórteres quase setorizados nessa área da economia, que cresce exponencialmente e também empurra outros setores, como o de telecomunicações e o de automação industrial. No entanto, a maioria desses jornalistas não recebe capacitação para desenvolver uma visão sistêmica dos negócios que devem cobrir. Quase sempre, o noticiário se refere a novidades tecnológicas, grandes negócios e mudanças nos rankings.

Perversidades da globalização

Em suas comunicações institucionais, quando se dirigem diretamente ao mercado, as empresas de tecnologia procuram ressaltar aspectos relacionados aos novos paradigmas do sistema global de negócios, que destacam a necessidade de padrões éticos na concorrência, esforços pela inclusão social e busca incessante de produtos ecoeficientes. Mas, na mediação dos fatos de negócios, a imprensa ignora esse tipo de notícia, por considerar que não é bom jornalismo oferecer informações favoráveis às companhias. No entanto, não demonstra qualquer constrangimento em reproduzir de forma laudatória dados de balanços e declarações sobre os sucessos financeiros das mesmas empresas.

Seria razoável esperar que, não se dispondo a noticiar informações sobre bons procedimentos das empresas nos aspectos ambiental, social e ético, a mídia cuidasse, ao contrário, de abordar as vulnerabilidades do ambiente de negócios quanto a desperdício de energia, irresponsabilidade social e outras práticas negativas, como concorrência desleal e risco de fraudes.

Assim como não tem disposição ou habilitação para esse tipo de cobertura, a imprensa também revelou não possuir recursos para ir além do que liberam as autoridades policiais, no presente escândalo. A cobertura não informa aspectos relevantes do esquema criminoso revelado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público que ajudariam o leitor a entender certas perversidades do sistema econômico globalizado.

A constatação do observador é que a imprensa, sempre animada para desvendar a delinqüência de indivíduos e a corrupção nas instituições públicas, não sabe e não quer saber como cobrir o crime corporativo.

Deslumbramento e poder

No caso da Cisco, a demissão inesperada de um alto executivo, ocorrida há cerca de um ano, foi noticiada burocraticamente pela imprensa especializada, embora muitos jornalistas comentassem sua estranheza sobre o fato. Este executivo foi posteriormente vítima de boatos maledicentes no meio jornalístico, mas nem mesmo os blogs se dispuseram a investigar as razões de sua demissão. Estava ali, provavelmente, um fio da meada que conduziria ao escândalo. Esse executivo, cujo nome não consta na lista de dirigentes da Cisco presos e indiciados, pode ser um dos informantes das autoridades. Poderia ter sido a fonte de jornalistas, se houvesse disposição e recursos para o jornalismo investigativo.

Uma diversidade maior de informações está disponível em outras fontes, como os sites e blogs ultra-especializados, como gigaom (www.gigaom.com), onde se pode obter, por exemplo, o depoimento de um ex-funcionário da Cisco e de outras pessoas do ramo, e revelações sobre como os sistemas de importação e venda de produtos de informática são passíveis de defraudações.

Assim como um certo deslumbramento com a tecnologia parece cegar a mídia, o inegável encantamento com o poder das empresas produz a adesão irrestrita de não poucos jornalistas ao universo de interesses relativos ao capital. Essa parece ser uma das razões pelas quais a imprensa não se mostra capaz de fazer a crítica do sistema, nem mesmo quando o sistema, por si, gera novos paradigmas e enfrenta o desafio de ter que buscar a sustentabilidade.

A inconstitucionalidade da Medida Provisória da TV Brasil

O governo federal encaminhou ao Congresso a Medida Provisória nº 398, de 10 de outubro de 2007, que trata dos princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública explorados pelo Poder Executivo, autorizando-o a constituir a Empresa Brasil de Comunicação – EBC, promovendo a extinção da Radiobrás com a incorporação de seu respectivo patrimônio.

Um dos primeiros aspectos a ser analisado consiste na existência dos pressupostos constitucionais que autorizam a edição de uma medida provisória sobre a referida matéria. A Constituição exige a presença da relevância e da urgência do assunto de interesse público enquanto fatores ensejadores da expedição da medida provisória.

Sem dúvida alguma, a organização do serviço de radiodifusão "pública" é relevante, razão pela qual atende ao primeiro requisito constitucional. Contudo, não é possível afirmar que a matéria seja urgente a ponto de justificar a expedição do referido ato normativo. Pelo contrário, a organização do serviço de radiodifusão "público" pode perfeitamente aguardar sua disciplina normativa, mediante a discussão e aprovação na forma de projeto de lei.

Portanto, é inconstitucional a MP nº 398 por não preencher o requisito da urgência estabelecido no caput do art. 62 da Constituição do Brasil. Cuida destacar que o STF mudou seu entendimento tradicional e passou a verificar com mais rigor o atendimento dos requisitos para a expedição de medidas provisórias. Daí a plena possibilidade de decretação da inconstitucionalidade do aludido ato normativo por um vício formal.

Ferramentas inadequadas

Por outro lado, um outro aspecto a ser analisado está no próprio objeto da MP que consiste na denominada organização dos serviços de radiodifusão "pública".

Entendo que não se trata propriamente de serviços de radiodifusão "pública", mas, sim, de serviços de radiodifusão estatal. É que a Constituição adota o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal. Penso que o setor de radiodifusão estatal, cujos serviços decorrem tanto do dever de comunicação institucional, que incumbe ao Estado, quanto do direito à informação dos cidadãos brasileiros, não se confunde com o setor público não-estatal.

Com efeito, o setor público não-estatal, ou sistema público de televisão (que não se confunde com a idéia convencional de televisão pública), identifica-se com a esfera da sociedade civil, para a qual deve ser reservada parcela do uso do espectro eletromagnético para fins de oferecimento do serviço de televisão por radiodifusão.

Trata-se de um corolário do princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal, estabelecido no art. 223, caput, da CF, ou seja, um setor reservado pela Constituição à garantia da expressão, informação e comunicação social aos cidadãos brasileiros que são, freqüentemente, submetidos ao silêncio no debate público. Vale dizer, consiste em uma garantia de acesso da cidadania aos meios de radiodifusão. Todavia, o modelo legal de radiodifusão ainda em vigor (Lei no 4.117/62) não apresenta as ferramentas institucionais adequadas para a formatação de um sistema público de comunicação social no campo da radiodifusão.

Comunicação institucional

O sistema de radiodifusão público requer a plena participação da sociedade civil na organização da programação da TV Pública. Ou seja, uma emissora de televisão cujo controle pertença de direito e de fato à sociedade civil, e não ao governo, nem às emissoras privadas. A verdadeira TV pública é aquela independente do poder econômico (não visa ao lucro) e do poder político (não beneficia nem prejudica o governo, candidatos ou partidos políticos). É a modalidade de televisão voltada para a realização das legítimas expectativas sociais em torno da concretização de uma comunicação democrática. Conseqüentemente, as emissoras de televisão públicas têm uma significação muito especial (a fim de não serem confundidas com o entendimento tradicional atribuído à TV Pública que a identifica à figura do Estado), qual seja, não são nem entidades estatais, nem entidades privadas com o objetivo de lucro, mas são, isto sim, organizações da sociedade civil sem fins lucrativos.

Apesar dessas considerações, defendo a plena possibilidade de ser organizado um sistema de radiodifusão estatal, isto é, o Estado Federativo do Brasil (União, Estados e Municípios e os Poderes Executivos, Legislativo e Judiciário), no exercício de suas competências constitucionais, organizar e prestar serviços de televisão na modalidade radiodifusão.

A televisão estatal por radiodifusão constitui uma modalidade de serviço público privativo do Estado, sendo que uma de suas finalidades é assegurar a comunicação social de caráter institucional, nos termos do art. 37, §1º da CF, a respeito dos atos e (ou) fatos relacionados ao Poder Executivo, ao Poder Legislativo e ao Poder Judiciário.

TVs comunitárias

Ademais, o poder público tem deveres a cumprir no que tange à educação e à cultura. Em razão disso, a televisão estatal não se reduz à realização da comunicação institucional. Nesse sentido, é possível que um canal de televisão integrante do sistema estatal veicule tanto conteúdos relacionados à informação institucional quanto à educação e à cultura.

Por outro lado, a conceituação da televisão estatal deve estar vinculada à titularidade exclusiva e ao controle do Estado sobre a programação. Com efeito, o núcleo de sua definição corresponde às idéias de competência estatal quanto à organização e prestação do serviço de televisão por radiodifusão. Daí a incompatibilidade entre a livre iniciativa e o sistema estatal. É verdade que isso não impede a participação social no controle da gestão e da programação dos canais estatais de televisão.

Enfim, apóio a idéia de organização do sistema de radiodifusão estatal, desde que, mediante a forma jurídica correta, qual seja, o encaminhamento por intermédio de projeto de lei, e desde que ele seja totalmente desvinculado do sistema de radiodifusão público, desenvolvendo-se igualmente uma verdadeira TV Pública de qualidade, independente do governo, inclusive com a reserva no espaço eletromagnético para a existência de emissoras de televisão comunitárias no campo da radiodifusão.