O episódio de seqüestro e tortura de uma equipe de reportagem do jornal O Dia por milicianos que controlam uma favela em Realengo, no Rio, deveria servir para desencadear um debate – tão urgente quanto ausente nos meios profissional e acadêmico – sobre os limites e os procedimentos adequados para a atuação dos jornalistas. É um debate difícil, e não só pela própria dificuldade do tema, mas porque a predisposição, nessas ocasiões – como ocorreu quando do assassinato de Tim Lopes – é a reação emocional e intempestiva, empenhada na justa condenação da violência mas também na reiteração de certos mitos que envolvem tanto a atividade jornalística quanto, nesses casos específicos, a natureza dos conflitos nas favelas do Rio. E mitos devem ser desfeitos, para o bem de todos nós.
O estabelecimento de limites é uma questão elementar de ética, mas costuma ser mal visto por quem exerce o jornalismo, provavelmente em razão de uma concepção equivocada sobre o papel que esse profissional desempenha: o jornalista é um mediador entre os fatos e o público, e por isso se credencia a estar onde esse público não pode estar para obter e divulgar as informações de que esse público necessita.
Freqüentemente, porém, o acesso à informação é obstruído, seja por interesses escusos, seja porque, de fato, é preciso resguardar o sigilo: aliás, como José Paulo Cavalcanti Filho demonstrou em artigo publicado neste Observatório [ver "O drama da verdade (ou discurso sobre alguns mitos da informação)"), não há uma relação automática entre democracia e informação (ou "transparência", como está na moda dizer). Pelo contrário – diz ele, com os argumentos que podem ser verificados no texto original –, democracia é, frequentemente, não informar.
"Guerra do Rio"
Raramente os jornalistas entram nessas considerações: diante do acesso negado, acham-se no direito de utilizar outros procedimentos que não os convencionais, sempre aludindo ao argumento de que estão agindo no interesse da sociedade. O que pode ser resumido num comentário de Armando Nogueira, em entrevista à Playboy, ainda nos anos 1980: "O jornalista é o único ser capaz de olhar com altivez por um buraco de fechadura. Quem está ali, bisbilhotando, é a sociedade inteira".
Junte-se a isso a mística de sacerdócio que ainda hoje envolve a profissão – a idéia de "missão", provavelmente decorrente do original compromisso com a "verdade" –, acrescente-se ao quadro a figura-síntese do herói dos quadrinhos, o jornalista como o Super-Homem, e teremos aí, nos mais distintos níveis do imaginário social, uma profissão muito particular, que não poderia ser submetida a qualquer tipo de constrangimento. Na prática, isso significa que ora o jornalista se anuncia como tal – reiterando a conquista de uma legalidade que remonta ao tempo de consolidação do conceito de "quarto poder" –, ora se disfarça em qualquer outra identidade conveniente, afirmando-se assim como um profissional que não pode conhecer limites para atuar.
Esse poder auto-atribuído representa, é claro, a maximização dos riscos inerentes ao trabalho, na medida em que o jornalista se oferece como agente capaz de substituir os representantes das instituições públicas, sobretudo se essas instituições são vistas como inoperantes ou corruptas. É bem o que ocorre na cobertura do que, equivocadamente, se convencionou chamar de "guerra do Rio" – os conflitos entre policiais, traficantes (que se tornaram o símbolo dos transgressores e criminosos em geral) e a população marginalizada.
A falaciosa metáfora da guerra
Fala-se em guerra como metáfora, mas é uma metáfora eloqüente: se pensamos em guerra, pensamos em inimigos e numa forma bélica de combatê-los. É precisamente esta a política adotada pelos sucessivos governos do Rio de Janeiro nas últimas décadas. O saldo de mortos "em confronto com a polícia", que só faz crescer, e a extração social desses mortos demonstram por si o sentido dessa política, reiteradamente denunciada por organizações dedicadas à defesa dos direitos humanos, no Brasil e no exterior. Mas não é disso que devemos tratar aqui, e sim das conseqüências da adoção dessa metáfora pelo discurso jornalístico.
"Guerra" é uma coisa um pouco diferente e ligeiramente mais grave do que os conflitos que grandes cidades como o Rio de Janeiro enfrentam, em decorrência de tantos fatores que seria excessivo nomear – desigualdade social, apelos consumistas, desemprego, excessos demográficos e tantos outros. Porém, se aceitássemos assumir que estamos em guerra, como a maioria das reportagens e alguns articulistas reiteram agora, deveríamos considerar os cuidados que os jornalistas destacados para essa cobertura precisariam tomar. A começar pela identificação: pois, numa situação de guerra – como ocorreu no passado recente no Iraque –, o jornalista que não tem credencial assina sua sentença de morte.
Em contrapartida, e com referência ao mesmo contexto, é só por estarem claramente identificados que os jornalistas podem protestar quando são atacados. Assim foi também na capital do Iraque, quando um tanque americano repentinamente voltou seu canhão e disparou contra o hotel em que se concentravam jornalistas do mundo inteiro, matando dois repórteres e ferindo outros. Da mesma forma, em tempo de guerra, a punição para um espião, de acordo com o Código Penal Militar, pode chegar à pena de morte.
Os riscos da infiltração
Então, ao entrarem incógnitos "em território inimigo" – como afirma uma das reportagens de O Dia na edição que denunciou o episódio, em 1º de junho – ou se infiltrarem no "reino dos bandidos" – como definiu uma prestigiada comentarista de economia, naturalmente esquecendo que a bandidagem não se restringe às favelas –, os jornalistas não podem ignorar o risco que correm. Sobretudo, não podem – nem eles, nem as entidades que os representam – denunciar a violência que sofreram como um atentado à liberdade de imprensa. Porque não há sentido em fazer essa cobrança a quem não tem, nem poderia ter, o menor compromisso com esses valores. Seria um contra-senso pedir a um traficante ou a um "miliciano" que respeitasse a lei.
A propósito, o jornalista Fritz Utzeri, uma das raras vozes críticas à época do caso Tim Lopes, escreveu no Jornal do Brasil (5/6/2002) um artigo intitulado justamente "Os limites do jornalismo" num momento em que, pelo menos em tese, ainda se cultivava a esperança de que o repórter não tivesse sido assassinado. Dizia o seguinte:
"Morrem anualmente dezenas de coleguinhas em guerras, revoluções e acidentes. Faz parte do risco da profissão, mas daí a transformar cada um de nós numa cópia de 007 vai uma distância enorme. Nós somos testemunhas, não temos licença para matar e nossa atividade só pode ser exercida dentro da ética e da legalidade. Essa noção de que jornalista é jornalista é a única proteção que temos ao entrar em zonas de conflito para sairmos vivos e contar a nossa história. Se nos confundirmos com espiões ou policiais com eles seremos confundidos, e nesse caso é melhor mudar logo de profissão. O debate está aberto."
O debate, entretanto, jamais foi realizado a sério. E agora estamos diante de uma situação em tudo e por tudo semelhante, que por sorte não teve desfecho idêntico. Então repetimos os mesmos protestos de antes e nos espantamos diante da violência contra a imprensa. O secretário-geral do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro chega a indagar: se esse pessoal da milícia é capaz de seqüestrar e espancar repórteres de um jornal de grande circulação, o que não haverá de fazer com moradores anônimos?
Pergunta ociosa, porque o que "esse pessoal" faz é bem sabido e já foi sobejamente documentado pela nossa imprensa em passado recente. Bastaria, por exemplo, lembrar a série que O Globo publicou em agosto de 2007 sobre "os brasileiros que ainda vivem na ditadura". Sem entrar em considerações sobre o enfoque adotado – e haveria várias críticas a fazer, a começar pela comparação superficial e enganosa do significado da repressão generalizada naquele tempo e a situação em que vivem os marginalizados ao longo de nossa história, em tempos de ditadura ou democracia –, a série explicita o terrível cotidiano de quem mora em áreas submetidas a uma lei particular e não escrita.
Basta recordar a segunda matéria da série, em 20/8/2007, na qual o jornal anuncia, na primeira página, "Tráfico, milícia e polícia do Rio torturam nas favelas", para logo a seguir entrar nos detalhes sórdidos: "Suplícios como espancamento, empalação, choques elétricos e queimaduras severas por plástico derretido são utilizados por traficantes, milicianos e policiais para impor suas leis a 1,5 milhão de pessoas que vivem nessas comunidades". Na reportagem de 22/8/2007, o título da chamada de capa é "Pena de morte sem lei – favelas têm 7 vezes mais assassinatos".
Do ponto de vista da denúncia da violência a que está submetida essa parcela da população, foi uma série muito esclarecedora, e ninguém precisou se infiltrar nas "comunidades": pelo que informa o jornal, a apuração se deu da maneira tradicional, por meio de "mais de 200 entrevistas".
O apelo ao risco
Portanto, se "a idéia da reportagem era mostrar como vivem as pessoas em um local onde um grupo clandestino tem lucro fantástico com a venda do gás de cozinha, do sinal pirata de TV a cabo e da segurança forçada, além do curral eleitoral", a equipe de O Dia não revelaria muita coisa: a realidade era conhecida, mudariam apenas os nomes – ou, no caso, as iniciais, ou os codinomes – dos "personagens". A novidade, ou o chamariz, seria o método: os repórteres infiltrados que correm risco para mostrar a história "por dentro".
Mas nem isso seria novidade, pois a prática de se disfarçar para penetrar em ambientes fechados, proibidos ou que oferecem, legitimamente ou não, alguma restrição de acesso, é bem antiga: remonta pelo menos às últimas décadas do século 19, quando se estabeleceu a imprensa de massa e com ela a amplificação do apelo a relatos capazes de causar sensação a partir da "experiência vivida" do repórter que "aparece" – e faz seu jornal aparecer – como guardião dos fracos e oprimidos. Quanto mais riscos, maior o valor do "testemunho".
A fórmula faz sucesso e costuma render prêmios. Os exemplos se sucedem. Recentemente a Folha de S.Paulo ofereceu três deles: um repórter se inscreveu e foi aprovado num concurso para policial para contar "por dentro" como funciona a polícia carioca, "a polícia que mais mata" – isso depois da publicação do Elite da tropa, livro que serviu de base ao famoso filme com o título invertido, escrito com a colaboração um ex-integrante da corporação, justamente alguém que viveu aquela realidade; outro repórter se disfarçou de catador de papelão para mostrar como é essa vida; outro, ainda, chegou a viajar à Bolívia para passar por boliviano (!!!) e entrar no submundo da exploração de trabalhadores de confecções de porão na capital paulista – não bastassem as várias reportagens, algumas publicadas pela própria Folha, sobre a situação dramática de quem não tem muitas alternativas para ganhar a vida.
Isso sem contar os inúmeros casos em que os repórteres se sujeitam a viver nas ruas, a internar-se em manicômios, presídios e clínicas para tratamento de dependentes de drogas, para mostrar "como é" a vida nesses lugares, ignorando ou substituindo o trabalho de pesquisadores que, eventualmente utilizando os mesmos procedimentos – mas com objetivos e prazos completamente distintos –, realizam observações de campo metódicas para estudar essas mesmas realidades.
A rejeição à produção acadêmica, porém, é tradicional entre jornalistas, que gostam de achar que a própria experiência lhes basta e costumam desprezar a reflexão teórica, bem à maneira da lógica binária dos filmes policiais americanos que opõem o tira "operativo" das ruas ao chefe pseudo-intelectual de gabinete: Stallone-Cobra versus os "teóricos" branquelos, de terno e óculos de aro, que não sujam as mãos.
Sem a disposição para o debate, não sairemos dessa dicotomia que separa – falaciosamente – os mundos do "pensamento" e da "ação". E a discussão em torno dos limites para o exercício profissional poderá contribuir para esclarecer que, afinal, o jornalista não é o herói dos quadrinhos, mas um mediador que desempenha sua tarefa da melhor maneira na medida do possível.
* Sylvia Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)