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Por que um negro, senhores da mídia?

Gostaria de ser um dos signatários do documento a ser enviado ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para barrar os bandidos que almejam candidatar-se a mandatos eletivos e que têm problemas de ordem moral – que vêm corroendo as finanças do país desde tempos imemoriais da ocupação portuguesa no solo brasileiro – e facilidade para ocupar cargos políticos. Até porque o dinheiro fácil que o poder lhes proporciona os faz galgar postos, não somente nos fóruns de debates, como nos cargos executivos.

Ocorre que as figuras desses larápios engravatados, em sua maioria, são brancos ou assemelhados, conforme suas ascendências vindas dos meios lusitanos que colonizaram o Brasil.

A TV Globo, entretanto, está a exibir a figura de um homem negro, um ator de sobeja competência, na novela A Favorita, que faz política – um riquíssimo deputado para quem o dinheiro e as tentativas de compra de consciências ocorrem com a maior facilidade, sendo um dos piores exemplos de corrupto já mostrado nesse tipo de ficção.

Ações racistas e intolerantes

Imaginem: um negro, e não um branco, a exemplo de um Lauro Maia, o empresário recentemente preso no Rio Grande do Norte pela Polícia Federal, além de outros da mesma estirpe, que continuam a enganar um eleitorado inconsciente ainda da sua cidadania.

Quando do caso dos "anões do orçamento", o presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, à época, fez por onde os tais "anões" não fossem indiciados e julgados. Até hoje tem gente exercendo mandato político, na oposição, danado da vida por não poder meter a mão no dinheiro público.

A Globo está invertendo os valores. Por que será? Seria a ideologia dos psicanalistas dos anos 1930, ou daqueles que foram da polícia política dos tempos do Getúlio Vargas, ou mesmo as ações racistas e intolerantes nos tempos de Agamennon Magalhães quando governador de Pernambuco, para os quais todos os males do país eram causados pelos negros ou assemelhados?

Barrar candidaturas

Creio que se trata de uma inversão proposital, para renascer, talvez, um sentimento de perseguição aos afro-descendentes, especialmente quando o presidente da República vem criando pastas administrativas para cuidar de políticas de inclusão social e de igualdade racial, valorizando, assim, etnias secularmente alijadas de posições de destaque na vida política, jurídica, administrativa e econômica do país.

Pois outra razão não vemos nessa criminosa amostra de um negro, que mesmo sendo um ator, ter que representar muito bem o papel de um prócer da corrupção no Brasil. É necessário que as ONGs que lidam com cidadania atentem para este fato.

Quanto aos políticos corruptos de fato, esperemos que o TSE reveja sua posição, barrando nas fontes, ou seja, nos TREs, as candidaturas de indivíduos notoriamente reconhecidos nas hostes da imoralidade pública.

* José Amaro Santos da Silva é musicólogo, professor do Departamento de Música da UFPE e vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos Dom Helder Câmara.

…mas publicidade é informação?

É democrático estabelecer limites legais para as mensagens de publicidade? Ou será censura?

De tempos em tempos, essas perguntas vêm à tona. Agora, por exemplo. No mês passado, seria votado no Congresso Nacional, em regime de urgência, um projeto de lei, encaminhado pelo governo, que resultaria em restrições à propaganda de cerveja. De repente, por um acordo de parlamentares, a urgência foi retirada do projeto e, até agora, não há mais previsão de data para a votação. A manobra reacendeu as velhas perguntas. Uns invocam a liberdade de expressão e dizem que qualquer restrição é censura. Outros exigem que o Estado imponha limites. Quem tem razão?

Na terça-feira (10/60, o debate ganhou novo fôlego com a realização do Primeiro Fórum Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária na Comunicação Social, em Brasília. Quem controla a publicidade? Quem protege a sociedade e as crianças de eventuais excessos dos comerciais? Organizado pela Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados, o fórum girou em torno da experiência de auto-regulamentação do Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar), que completa 30 anos agora em 2008.

Sem dúvida, a prática pioneira do Conar tem muito a ensinar aos comunicadores, mas não se pode esperar que o órgão dê todas as respostas. Sendo uma entidade enraizada no mercado anunciante, representa os interesses desse mercado. É uma parte, portanto. Nesse sentido, quando combate desvios ou abusos de alguns anúncios – e efetivamente os combate –, ele o faz para proteger, mais do que a sociedade em geral, a credibilidade da propaganda, ou, em outras palavras, para proteger o negócio da propaganda contra seus próprios abusos.

Objetivo único

Nada de errado com isso, evidentemente. Trata-se de uma ação altamente educativa e legítima. Com efeito, é legítimo que dirigentes do Conar se insurjam contra qualquer tentativa de restringir a veiculação de anúncios. Defendem o vigor do mercado que representam, e fazem isso de boa-fé. E com bons argumentos. Alegam, por exemplo, que o direito de anunciar é a contrapartida do direito fundamental do consumidor à informação. Segundo advogam, qualquer restrição à propaganda agrediria, indiretamente, o direito fundamental à informação, constituindo uma modalidade de censura.

O argumento merece atenção. De fato, a tradição democrática assegura o direito do cidadão à informação. Esse direito só é uma garantia fundamental porque, desde o advento da democracia moderna, o poder emana do povo e em seu nome é exercido. Por isso, e não por outro motivo, o cidadão tem o direito de estar devidamente informado, pois só assim será capaz de delegar, fiscalizar ou mesmo exercer o poder.

Aí é que entra a liberdade de imprensa: ela é indispensável para que o cidadão tenha acesso a informações independentes sobre o poder. Independentes: para estar à altura do direito à informação a imprensa não se pode deixar capturar pelos tentáculos do governo, dos partidos ou do poder econômico. É por isso que se diz que a imprensa só é imprensa quando é livre.

A publicidade preenche esses requisitos? A resposta só pode ser não. Para começar, ela é um discurso interessado. É parcial. É unilateral. Enquanto o jornalismo leva notícias ao cidadão para que este forme livremente sua própria vontade – os melhores cânones do jornalismo recomendam sempre que ele não se arvore a direcionar a formação da vontade do cidadão –, a publicidade tem o único objetivo de convencer o público a comprar mercadorias ou serviços. A imprensa se realiza quando a sociedade a conduz. A propaganda, quando a sociedade lhe obedece. São totalmente distintas.

Uma e outra

É verdade que, não raro, o jornalismo se deixa seduzir pelo proselitismo – e, aí, afasta-se de seus ideais. Ainda assim, no entanto, mesmo se rebaixa nesse desvio, ele não se iguala à propaganda. O jornalismo, bom ou mau, aflora dos debates naturais do espaço público – refletindo versões, opiniões, doutrinas e narrativas diversas – e a ele retorna. Nasce da opinião pública e para ela se dirige. De outro lado, a propaganda se organiza como operação de venda, seus fins são comerciais, ela se dirige ao consumidor, não ao cidadão. O seu discurso é a fala do vendedor. Tanto que as mensagens publicitárias são difundidas em espaços e horários pagos: os anunciantes compram fragmentos do olhar e da atenção do público para oferecer a ele suas mercadorias. É óbvio que, se prestasse atendimento a algum direito do leitor ou do telespectador, a publicidade não teria de comprar minutos do seu olhar.

Em suma, por melhor que seja, a publicidade não se subordina ao direito fundamental à informação. Ela serve, sem nenhum demérito, aos objetivos de venda do anunciante. Isso não significa que a propaganda não deva ter assegurada a sua liberdade – ela a tem, indiscutivelmente, assim como os vendedores a têm. Significa apenas que a sociedade, assim como tem o direito de limitar, por lei, a circulação de certas mercadorias, também tem o direito de limitar, legal e democraticamente, segundo critérios transparentes, a propaganda de certas mercadorias – pois a propaganda é parte da operação de venda dessas mercadorias. Isso não configura censura à imprensa nem fere o direito à informação. Limites à publicidade, desde que democraticamente adotados, não reduzem o grau de liberdade de um país. Muitas vezes, a ausência de limites é que produz distorções.

Sem publicidade, disso todos sabemos, não há imprensa livre. Por isso mesmo, é bom que uma não se queira passar pela outra. A separação clara de papéis sempre foi, é e será vital para ambas.

A reforma da mídia começa comigo

De 6 a 8 de junho, mais de 3.500 jornalistas, ativistas da mídia, acadêmicos e cidadãos preocupados com a estado da mídianos reunimos em Minneapolis, no estado de Minnesota, para a 4ª Conferência Nacional pela Reforma da Mídia. O evento foi promovido pela maior organização de reforma de mídia dos Estados Unidos – a Free Press –, fundada pelo acadêmico Robert McChesney e que hoje conta com meio milhão de ativistas lutando por uma mídia que reflita os anseios da sociedade, e não os interesses dos governos e das grandes corporações.

Ainda tento assimilar a quantidade de informações de alguns dos 75 painéis, workshops e filmes à disposição no Centro de Convenções de Minneapolis, onde o evento foi realizado com o tema "Media Reform Begins With Me".

Em workshops como "Mídia e Eleições", "Futuro da Internet", "Mídia e Democracia", "Reforma da Mídia e Mudança Social" e "Analisando e Desconstruindo a Mídia" foram levantadas questões importantes sobre a necessidade e confirmação de que uma outra mídia é possível – um sistema de mídia baseado nos valores de justiça e democracia. Para isso, todos concordam, a mídia deve ser livre e diversificada, em oposição ao que vem sendo apresentado pela imprensa corporativa norte-americana, principalmente na cobertura vergonhosa da invasão do Iraque.

A luta é de cada um

Num dos painéis de discussão mais disputados não só pelo tema – "Mídia e a Guerra" –, mas pela garra de um dos jornalistas mais progressistas do país, Naomi Klein (The Guardian, The Nation e autora do livro The Shock Doctrine) criticou a cobertura de guerra feita pela imprensa norte-americana dizendo que a invasão do Iraque simplesmente sumiu dos noticiários por conta do interesse em jogo na campanha pelas eleições presidenciais.

Amy Goodman, âncora do programa de TV Democracy Now, onde quer que vá sempre emociona o público quando analisa o estado da mídia com seu tom de voz afiado e seguro. "Se, por uma semana, as imagens das atrocidades de guerra, como crianças mutiladas, fossem exibidas na televisão, essa guerra já teria terminado porque o povo norte-americano tem compaixão."

Mas foi o lendário jornalista Bill Moyers (Bill Moyers Journal, da PBS) que eletrizou uma audiência ávida por mudanças na maneira como a mídia representa a sociedade norte-americana. Disse que a reforma da mídia é o movimento mais importante da história do país depois do movimento pelos direitos civis. Criticou ferozmente a consolidação dos meios de comunicação e não deixou de mencionar o Iraque: "Nós tínhamos que ter sabido a verdade sobre o Iraque para evitar a destruição daquele país, a morte de milhares de civis e ter salvado bilhões de dólares para investimentos na economia norte-americana". Moyers encerrou enfatizando que a luta pela democracia e por uma mídia mais justa é de cada um de nós, cidadãos do mundo.

As decisões do dia-a-dia

Apesar de todo o entusiasmo e das mensagens inspiradoras dos palestrantes, faltou um debate mais aprofundado sobre a necessidade de integração do movimento de reforma da mídia com outros países. A jornalista Naomi Klein citou rapidamente a América Latina como exemplo de luta contra o neoliberalismo e mencionou uma agenda de integração.

Fica o recado para quem já voltou para casa: a luta é nossa e não podemos esperar pelos governos e pelas corporações. Como diz Amy Goodman, "todos os dias nós acordamos e temos uma série de decisões a serem tomadas. Temos que ter consciência que as nossas decisões podem influenciar o mundo".

* Simone Delgado é jornalista.

Cobertura política: Entre a imparcialidade e o comprometimento

Resultados de pesquisas realizadas por diferentes instituições ao longo da campanha eleitoral de 2006 revelaram que a cobertura que os principais jornais e revistas ofereceram dos candidatos a presidente da República foi desequilibrada, isto é, favoreceu a um deles. Não foi a primeira vez, certamente, que isso ocorreu, mas nas eleições de 2006 o fato pôde ser fartamente comprovado e a cobertura jornalística acabou por transformar-se, no segundo turno, em tema de debate da própria campanha [cf. V.A. de Lima (org.), A Mídia nas Eleições de 2006, Editora Fundação Perseu Abramo, 2007).

Em 2006, apenas a CartaCapital tomou posição editorial a favor de um dos candidatos. Todas as outras principais revistas e jornais deixaram de manifestar publicamente sua posição. De qualquer maneira, a grande mídia sempre insistiu que sua cobertura é realizada dentro das normas da imparcialidade e da objetividade jornalística, isto é, sem a intenção de favorecer a este ou aquele candidato.

Qualquer estudante de jornalismo sabe (ou deveria saber), no entanto, que imparcialidade e objetividade são princípios irrealizáveis na prática concreta da apuração e da redação de notícias, sejam elas de política ou de outra editoria. O que se busca no jornalismo sério e responsável é minimizar a contaminação da cobertura pelas preferências pessoais do(a) repórter e pelos interesses dos donos dos jornais, expressos nos editoriais e nas colunas de opinião dos respectivos veículos.

Na verdade, uma série de fatores tem tornado a imparcialidade e a objetividade cada vez mais difíceis na prática jornalística. Um desses fatores é a transformação das empresas de mídia em grande conglomerados com interesses amplos e diversificados em vários setores da economia e, portanto, na formulação de inúmeras políticas públicas.

Uma das alternativas sempre lembradas para a ausência da imparcialidade que se manifesta, sobretudo, nas coberturas das campanhas eleitorais seria que os jornais declarassem publicamente sua posição política e assumissem a "contaminação" de sua cobertura jornalística pela posição assumida. O leitor saberia que o jornal X tem tal posição política e apóia tal candidato e o jornal Y tem outra posição e apóia outro candidato.

O editorial da Folha

O editorial publicado pela Folha de S. Paulo na sexta-feira (13/6), em defesa da publicação de entrevistas com candidatos a cargos eletivos antes da data permitida pela Justiça Eleitoral, coloca dois elementos interessantes na discussão sobre a cobertura política dos jornais em períodos eleitorais.

Primeiro, faz uma diferença entre propaganda e material jornalístico. Para a Folha, o "material jornalístico" – inclusive, entrevistas – é imparcial e apenas cumpre o dever de informar aos leitores sobre os candidatos a cargos eletivos. Já a propaganda, presumivelmente identificada como tal, é "mensagem em geral paga que tem o intuito de convencer, persuadir" o leitor.

Ora, é sabido que o grande poder da mídia é exatamente tornar as coisas públicas. Qualquer político precisa de visibilidade (que só a mídia oferece), mas não basta ter visibilidade, é preciso que ela seja favorável. Uma matéria jornalística poderá sempre favorecer ou prejudicar um determinado candidato dependendo do tipo de visibilidade que ela ofereça: positiva ou negativa. Desta forma, embora matéria jornalística e propaganda sejam, sim, diferentes, ambas podem, no entanto, funcionar como fator de "convencimento" direto e/ou indireto do leitor/eleitor.

Segundo, a Folha argumenta que as limitações da Lei Eleitoral e das resoluções do TSE se aplicam ao rádio e à televisão – que são concessões públicas – mas não se aplicam aos jornais. Na verdade, diz o editorial, "se o jornal desejasse apoiar e promover um postulante a cargo eletivo, teria pleno direito de fazê-lo".

As emissoras de rádio e de televisão, por serem concessões de um serviço público, isto é, de todos nós, não podem promover um determinado candidato porque estaria configurada a quebra do princípio da "impessoalidade" que rege a prestação de qualquer serviço público. Mas os jornais não estão sujeitos a essa limitação. Lembra o editorial corretamente que os jornais "surgiram vinculados a grupos e partidos políticos".

É verdade. Os jornais chamados "independentes" aparecem com a necessidade de captar recursos publicitários entre anunciantes de diferentes posições políticas e partidárias. O jornal não é uma concessão pública. É uma empresa que sobrevive no mercado da forma que julgar mais conveniente. Em outras palavras, o jornal não tem compromisso com o interesse público, o interesse de todos, como o rádio e a televisão. Pode, eventualmente, expressar a posição de uma parte, de um partido.

A posição política e seus riscos

Os pontos levantados pelo editorial da Folha de S.Paulo podem indicar uma saída para a maior transparência das coberturas jornalísticas nas campanhas eleitorais. Os jornais assumiriam publicamente sua posição política, o apoio a determinado candidato e teriam sua credibilidade junto aos leitores alicerçada nessa posição – e não mais numa suposta imparcialidade da cobertura política.

Melhor assim do que ter posição política, apoiar um candidato e "fazer de conta" que a cobertura foi feita com imparcialidade e objetividade, contrariando as evidências das pesquisas e do senso comum.

* Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)

Caso O Dia: O jornalismo na medida do possível

O episódio de seqüestro e tortura de uma equipe de reportagem do jornal O Dia por milicianos que controlam uma favela em Realengo, no Rio, deveria servir para desencadear um debate – tão urgente quanto ausente nos meios profissional e acadêmico – sobre os limites e os procedimentos adequados para a atuação dos jornalistas. É um debate difícil, e não só pela própria dificuldade do tema, mas porque a predisposição, nessas ocasiões – como ocorreu quando do assassinato de Tim Lopes – é a reação emocional e intempestiva, empenhada na justa condenação da violência mas também na reiteração de certos mitos que envolvem tanto a atividade jornalística quanto, nesses casos específicos, a natureza dos conflitos nas favelas do Rio. E mitos devem ser desfeitos, para o bem de todos nós.

O estabelecimento de limites é uma questão elementar de ética, mas costuma ser mal visto por quem exerce o jornalismo, provavelmente em razão de uma concepção equivocada sobre o papel que esse profissional desempenha: o jornalista é um mediador entre os fatos e o público, e por isso se credencia a estar onde esse público não pode estar para obter e divulgar as informações de que esse público necessita.

Freqüentemente, porém, o acesso à informação é obstruído, seja por interesses escusos, seja porque, de fato, é preciso resguardar o sigilo: aliás, como José Paulo Cavalcanti Filho demonstrou em artigo publicado neste Observatório [ver "O drama da verdade (ou discurso sobre alguns mitos da informação)"), não há uma relação automática entre democracia e informação (ou "transparência", como está na moda dizer). Pelo contrário – diz ele, com os argumentos que podem ser verificados no texto original –, democracia é, frequentemente, não informar.

"Guerra do Rio"

Raramente os jornalistas entram nessas considerações: diante do acesso negado, acham-se no direito de utilizar outros procedimentos que não os convencionais, sempre aludindo ao argumento de que estão agindo no interesse da sociedade. O que pode ser resumido num comentário de Armando Nogueira, em entrevista à Playboy, ainda nos anos 1980: "O jornalista é o único ser capaz de olhar com altivez por um buraco de fechadura. Quem está ali, bisbilhotando, é a sociedade inteira".

Junte-se a isso a mística de sacerdócio que ainda hoje envolve a profissão – a idéia de "missão", provavelmente decorrente do original compromisso com a "verdade" –, acrescente-se ao quadro a figura-síntese do herói dos quadrinhos, o jornalista como o Super-Homem, e teremos aí, nos mais distintos níveis do imaginário social, uma profissão muito particular, que não poderia ser submetida a qualquer tipo de constrangimento. Na prática, isso significa que ora o jornalista se anuncia como tal – reiterando a conquista de uma legalidade que remonta ao tempo de consolidação do conceito de "quarto poder" –, ora se disfarça em qualquer outra identidade conveniente, afirmando-se assim como um profissional que não pode conhecer limites para atuar.

Esse poder auto-atribuído representa, é claro, a maximização dos riscos inerentes ao trabalho, na medida em que o jornalista se oferece como agente capaz de substituir os representantes das instituições públicas, sobretudo se essas instituições são vistas como inoperantes ou corruptas. É bem o que ocorre na cobertura do que, equivocadamente, se convencionou chamar de "guerra do Rio" – os conflitos entre policiais, traficantes (que se tornaram o símbolo dos transgressores e criminosos em geral) e a população marginalizada.

A falaciosa metáfora da guerra

Fala-se em guerra como metáfora, mas é uma metáfora eloqüente: se pensamos em guerra, pensamos em inimigos e numa forma bélica de combatê-los. É precisamente esta a política adotada pelos sucessivos governos do Rio de Janeiro nas últimas décadas. O saldo de mortos "em confronto com a polícia", que só faz crescer, e a extração social desses mortos demonstram por si o sentido dessa política, reiteradamente denunciada por organizações dedicadas à defesa dos direitos humanos, no Brasil e no exterior. Mas não é disso que devemos tratar aqui, e sim das conseqüências da adoção dessa metáfora pelo discurso jornalístico.

"Guerra" é uma coisa um pouco diferente e ligeiramente mais grave do que os conflitos que grandes cidades como o Rio de Janeiro enfrentam, em decorrência de tantos fatores que seria excessivo nomear – desigualdade social, apelos consumistas, desemprego, excessos demográficos e tantos outros. Porém, se aceitássemos assumir que estamos em guerra, como a maioria das reportagens e alguns articulistas reiteram agora, deveríamos considerar os cuidados que os jornalistas destacados para essa cobertura precisariam tomar. A começar pela identificação: pois, numa situação de guerra – como ocorreu no passado recente no Iraque –, o jornalista que não tem credencial assina sua sentença de morte.

Em contrapartida, e com referência ao mesmo contexto, é só por estarem claramente identificados que os jornalistas podem protestar quando são atacados. Assim foi também na capital do Iraque, quando um tanque americano repentinamente voltou seu canhão e disparou contra o hotel em que se concentravam jornalistas do mundo inteiro, matando dois repórteres e ferindo outros. Da mesma forma, em tempo de guerra, a punição para um espião, de acordo com o Código Penal Militar, pode chegar à pena de morte.

Os riscos da infiltração

Então, ao entrarem incógnitos "em território inimigo" – como afirma uma das reportagens de O Dia na edição que denunciou o episódio, em 1º de junho – ou se infiltrarem no "reino dos bandidos" – como definiu uma prestigiada comentarista de economia, naturalmente esquecendo que a bandidagem não se restringe às favelas –, os jornalistas não podem ignorar o risco que correm. Sobretudo, não podem – nem eles, nem as entidades que os representam – denunciar a violência que sofreram como um atentado à liberdade de imprensa. Porque não há sentido em fazer essa cobrança a quem não tem, nem poderia ter, o menor compromisso com esses valores. Seria um contra-senso pedir a um traficante ou a um "miliciano" que respeitasse a lei.

A propósito, o jornalista Fritz Utzeri, uma das raras vozes críticas à época do caso Tim Lopes, escreveu no Jornal do Brasil (5/6/2002) um artigo intitulado justamente "Os limites do jornalismo" num momento em que, pelo menos em tese, ainda se cultivava a esperança de que o repórter não tivesse sido assassinado. Dizia o seguinte:

"Morrem anualmente dezenas de coleguinhas em guerras, revoluções e acidentes. Faz parte do risco da profissão, mas daí a transformar cada um de nós numa cópia de 007 vai uma distância enorme. Nós somos testemunhas, não temos licença para matar e nossa atividade só pode ser exercida dentro da ética e da legalidade. Essa noção de que jornalista é jornalista é a única proteção que temos ao entrar em zonas de conflito para sairmos vivos e contar a nossa história. Se nos confundirmos com espiões ou policiais com eles seremos confundidos, e nesse caso é melhor mudar logo de profissão. O debate está aberto."

O debate, entretanto, jamais foi realizado a sério. E agora estamos diante de uma situação em tudo e por tudo semelhante, que por sorte não teve desfecho idêntico. Então repetimos os mesmos protestos de antes e nos espantamos diante da violência contra a imprensa. O secretário-geral do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro chega a indagar: se esse pessoal da milícia é capaz de seqüestrar e espancar repórteres de um jornal de grande circulação, o que não haverá de fazer com moradores anônimos?

Pergunta ociosa, porque o que "esse pessoal" faz é bem sabido e já foi sobejamente documentado pela nossa imprensa em passado recente. Bastaria, por exemplo, lembrar a série que O Globo publicou em agosto de 2007 sobre "os brasileiros que ainda vivem na ditadura". Sem entrar em considerações sobre o enfoque adotado – e haveria várias críticas a fazer, a começar pela comparação superficial e enganosa do significado da repressão generalizada naquele tempo e a situação em que vivem os marginalizados ao longo de nossa história, em tempos de ditadura ou democracia –, a série explicita o terrível cotidiano de quem mora em áreas submetidas a uma lei particular e não escrita.

Basta recordar a segunda matéria da série, em 20/8/2007, na qual o jornal anuncia, na primeira página, "Tráfico, milícia e polícia do Rio torturam nas favelas", para logo a seguir entrar nos detalhes sórdidos: "Suplícios como espancamento, empalação, choques elétricos e queimaduras severas por plástico derretido são utilizados por traficantes, milicianos e policiais para impor suas leis a 1,5 milhão de pessoas que vivem nessas comunidades". Na reportagem de 22/8/2007, o título da chamada de capa é "Pena de morte sem lei – favelas têm 7 vezes mais assassinatos".

Do ponto de vista da denúncia da violência a que está submetida essa parcela da população, foi uma série muito esclarecedora, e ninguém precisou se infiltrar nas "comunidades": pelo que informa o jornal, a apuração se deu da maneira tradicional, por meio de "mais de 200 entrevistas".

O apelo ao risco

Portanto, se "a idéia da reportagem era mostrar como vivem as pessoas em um local onde um grupo clandestino tem lucro fantástico com a venda do gás de cozinha, do sinal pirata de TV a cabo e da segurança forçada, além do curral eleitoral", a equipe de O Dia não revelaria muita coisa: a realidade era conhecida, mudariam apenas os nomes – ou, no caso, as iniciais, ou os codinomes – dos "personagens". A novidade, ou o chamariz, seria o método: os repórteres infiltrados que correm risco para mostrar a história "por dentro".

Mas nem isso seria novidade, pois a prática de se disfarçar para penetrar em ambientes fechados, proibidos ou que oferecem, legitimamente ou não, alguma restrição de acesso, é bem antiga: remonta pelo menos às últimas décadas do século 19, quando se estabeleceu a imprensa de massa e com ela a amplificação do apelo a relatos capazes de causar sensação a partir da "experiência vivida" do repórter que "aparece" – e faz seu jornal aparecer – como guardião dos fracos e oprimidos. Quanto mais riscos, maior o valor do "testemunho".

A fórmula faz sucesso e costuma render prêmios. Os exemplos se sucedem. Recentemente a Folha de S.Paulo ofereceu três deles: um repórter se inscreveu e foi aprovado num concurso para policial para contar "por dentro" como funciona a polícia carioca, "a polícia que mais mata" – isso depois da publicação do Elite da tropa, livro que serviu de base ao famoso filme com o título invertido, escrito com a colaboração um ex-integrante da corporação, justamente alguém que viveu aquela realidade; outro repórter se disfarçou de catador de papelão para mostrar como é essa vida; outro, ainda, chegou a viajar à Bolívia para passar por boliviano (!!!) e entrar no submundo da exploração de trabalhadores de confecções de porão na capital paulista – não bastassem as várias reportagens, algumas publicadas pela própria Folha, sobre a situação dramática de quem não tem muitas alternativas para ganhar a vida.

Isso sem contar os inúmeros casos em que os repórteres se sujeitam a viver nas ruas, a internar-se em manicômios, presídios e clínicas para tratamento de dependentes de drogas, para mostrar "como é" a vida nesses lugares, ignorando ou substituindo o trabalho de pesquisadores que, eventualmente utilizando os mesmos procedimentos – mas com objetivos e prazos completamente distintos –, realizam observações de campo metódicas para estudar essas mesmas realidades.

A rejeição à produção acadêmica, porém, é tradicional entre jornalistas, que gostam de achar que a própria experiência lhes basta e costumam desprezar a reflexão teórica, bem à maneira da lógica binária dos filmes policiais americanos que opõem o tira "operativo" das ruas ao chefe pseudo-intelectual de gabinete: Stallone-Cobra versus os "teóricos" branquelos, de terno e óculos de aro, que não sujam as mãos.

Sem a disposição para o debate, não sairemos dessa dicotomia que separa – falaciosamente – os mundos do "pensamento" e da "ação". E a discussão em torno dos limites para o exercício profissional poderá contribuir para esclarecer que, afinal, o jornalista não é o herói dos quadrinhos, mas um mediador que desempenha sua tarefa da melhor maneira na medida do possível.

* Sylvia Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)