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A ambição do latifúndio religioso

Em maio do ano passado, escrevi para Ouvidoria da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) reclamando da presença de missas e cultos nas emissoras que compõem a empresa estatal. A TV Brasil exibe o programa Reencontro, produzido por evangélicos, aos sábados; transmite a Santa Missa e Palavras de Vida, da IC, aos domingos. A Rádio Nacional FM de Brasília transmite a missa aos domingos.

Na semana passada, em artigo para este Observatório ("Estado laico vs. proselitismo religioso"), mais uma vez de forma brilhante, o professor Venício Lima tratou da intenção da EBC de expurgar as manifestações proselitistas que contaminam suas emissoras. É uma resposta às indagações minhas e de outros pessoas indignadas com esse abuso da religião.

Como lembra Venício Lima, a Constituição Federal estabelece uma separação entre Estado e religião. Diz o texto:

Artigo 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

178 emissoras de televisão

Ora, se a presença desses programas é inconstitucional, como o Estado poderia sustentar essa ilegalidade?

Ninguém sabe exatamente quantas emissoras de rádio e TV estão nas mãos das igrejas. O Ministério das Comunicações não tem esse número – e talvez nem seja por má-fé. Ocorre que tanto a Igreja Católica (IC) quanto as diversas denominações religiosas evangélicas, nem sempre revelam seu credo quando solicitam concessões. Por exemplo, a emissora A Voz do São Francisco, instalada em Petrolina, sertão pernambucano, às margens do Rio São Francisco é, juridicamente, a Fundação emissora rural a Voz do São Francisco. O nome não diz nada, mas, inaugurada em 28/10/1962, faz parte do latifúndio nacional da IC e integra o imenso esquema de poder político que a IC estende por todo o semi-árido nordestino.

A única forma de se saber a dimensão do latifúndio das igrejas católicas e evangélicas é apelar para estudos e pesquisas, ou para os sites das religiões. Mas isso não resolve.

Verifico por alguns artigos que a Igreja Universal teria (?) 22 emissoras de geradoras TV, sendo 19 em nome da Rede Record. O site da instituição nada fala sobre esse poder. De acordo com a Folha de S.Paulo (16/8/2010), este ano foram distribuídas 28 emissoras de rádio para igrejas evangélicas e católicas.

Quanto à Igreja Católica, um estudo de 2003 do professor Venício Lima ("Existe concentração na mídia brasileira? Sim", dado neste OI)informava que a IC tinha 178 emissoras de televisão. Hoje se sabe que a IC tem pelo menos duas redes de televisão com cobertura nacional: Rede Vida e Canção Nova. Uma nova rede estaria surgindo a partir de Aparecida do Norte, São Paulo.

56 canais de retransmissores doados em um único dia

Quanto às rádios, hoje temos as seguintes redes em poder da IC:

1) Unda Brasil. É parte da Unda internacional, criada em 1968, em Colônia, Alemanha. A Unda Brasil, ou União de Radiodifusão Católica, foi criada em abril de 1976. A entidade, que tem sede em São Paulo, conta hoje com 184 emissoras de rádio associadas.

2) RCR. Criada em 1992, a Rede Católica de Rádio reúne as emissoras católicas para transmissão via satélite digital. Funciona no mesmo prédio da Unda Brasil. A RCR tem 185 emissoras filiadas. "É a maior rede de rádio do Brasil, com transmissão de programas diários em rede".

3) Rede Milícia Sat. Iniciou suas operações em 1995. Esta rede de rádios católicas é constituída por 112 emissoras que transmitem o programa A igreja no rádio, gerado pela Rádio Imaculada Conceição, de Santo André (SP), todos os dias, no horário da meia-noite às 5h00 da manhã.

Como a IC construiu um patrimônio dessa dimensão? O que assombra mais que o volume de recursos investidos é que esse latifúndio é feito de concessões públicas ofertadas gratuitamente pelo Estado. Ocorre que a concessão de emissoras educativas, conforme a legislação vigente, dispensa a passagem dos processos pelo Congresso Nacional – basta uma canetada do ministro e do presidente da República, isto é, ganha quem tiver "amigos no poder". E a IC sempre teve amigos no poder, seja lá qual for a cor do poder. Quantas emissoras a IC ganhou até hoje? Quantas educativas (com canetadas) ela levou no governo FHC e no governo Lula? Ninguém consegue precisar. E isso é muito bom para igreja.

Em 27/1/2004, o jornalista Daniel Castro, colunista da Folha de S.Paulo (Folha Online), relatou que "na semana em que foi demitido pelo presidente Lula, o ex-ministro das Comunicações, Miro Teixeira, deu em um único dia, 20 de janeiro, 56 canais de retransmissores à Fundação Nazaré, da Arquidiocese de Belém, onde tem uma geradora educativa". O site da Fundação Nazaré não diz exatamente isso, mas dá a entender que, graças às boas relações com o governo (FHC ou Lula, dá no mesmo para a IC). Trata-se de uma rede educativa. Isto é, as emissoras foram concedidas à base da canetada. Gratuitamente…

As melhores terras de Brasília

A TV Nazaré foi se espalhando por toda a Amazônia Legal. As primeiras concessões foram feitas pelo ex-ministro Juarez Quadros e, a maioria até então, outorgadas durante o ano de 2003, pelo ex-ministro Miro Teixeira. Hoje, a Rede Nazaré de Comunicação é formada por sua geradora – Canal 30E UHF, de Belém – e 78 (setenta e oito) canais primários e secundários já outorgados e em processo de instalação (ver aqui).

A ganância da Igreja Católica pelo controle dos meios de comunicação é quase insaciável. A igreja hoje abocanha TVs em sinal aberto ou por assinatura; rádios AM e FM; rádios e TVs comerciais e educativas e até rádios comunitárias. A Associação Nacional Católica de Rádios Comunitárias (Ancarc) anunciou que possui mais de 200 rádios devidamente autorizadas. Mas se de acordo com a lei 9.612/98, artigos 3º e 11º, isso é proibido, como o Estado deu essas concessões? É preciso alertar que, embora o processo burocrático se dê de forma secreta, nas entranhas do poder, depois que as emissoras são contempladas com concessão os endereços são sabidos por todos. Por exemplo, a Igreja Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro, tem uma concessão de rádio comunitária; o mesmo acontece em São Gonçalo, no interior do Rio de Janeiro; e a Igreja Casa da Benção, que é evangélica, em Taguatinga (DF), também tem concessão de comunitária.

O patrimônio da IC na área da comunicação é uma parcela reduzida do poder dessa imensa empresa transnacional. A Igreja é dona de terras, creches, editoras, colégios e universidades, que nem sempre cobram "valores cristãos". E para onde vai o que é arrecadado? Certamente não é para restaurar as suas igrejas e catedrais – isso é função do Estado brasileiro, conforme acordo aprovado com o Vaticano no Congresso Nacional, sancionado por Lula no ano passado. Somente para a recuperação da catedral de Brasília foram investidos 1 milhão de reais. Dinheiro dos fiéis, dos seguidores do papa? Não. Dinheiro de estatal (Petrobras), dinheiro público. Uma igreja foi totalmente queimada em Pirenópolis. Foi reconstruída. Quem pagou? O Banco do Vaticano? Os católicos? Não. O Estado. Ilegal, claro. Vide, mais uma vez, o art. 19 da Constituição.

É importante frisar que, historicamente, a Igreja Católica sempre se deu bem com o Estado. Praticamente em todas as cidades do Brasil, da capital ou do interior, a Igreja se apossou de largas extensões de terra e das melhores áreas urbanas. Ganhou de presente. Essa prática não é coisa do passado. A Igreja pegou as melhores terras de Brasília. Na Esplanada dos Ministérios, botou uma catedral. Ao lado da catedral, começa o setor de Embaixadas. Qual a primeira embaixada? A do Vaticano. Ao lado, vem a Nunciatura Católica e a sede da (esquerdista?) CNBB. Quando foi construir a Universidade de Brasília, Darcy Ribeiro teve que negociar o terreno da UnB com o papa porque na Brasília ainda em construção as melhores terras já tinham dono (in Confissões, livro autobiográfico de Darcy Ribeiro).

Uma história de mil anos

Em toda a América não foi diferente. A Igreja Católica foi uma tragédia para os povos andinos e do Caribe. A América espanhola se fez às custas de tortura, assalto, pilhagem, matança dos povos indígenas. Mas a IC é uma instituição tão sagaz, tão esperta, que, apesar da parceria na matança cometida, ainda é venerada pelos povos da região. Nem satanás (uma invenção da Igreja), seria capaz de tamanho feito: o antigo matador agora é venerado pelos sobreviventes. O fato é que estamos diante de profissionais. O livro mais conhecido do florentino Machiavel, O príncipe, nasceu para fazer frente ao poder fraticida e desagregador da Igreja na época.

A dimensão do poder da igreja sobre os meios de comunicação não é muito clara em toda a América Latina. Por razões políticas. Quem ousaria revelar a dimensão desse latifúndio? Na Argentina, por exemplo, o Poder Público favorece esse ocultamento. Segundo o professor e pesquisador Jorge Zaffore, cuja tese de doutoramento se intitula "Mass media, derecho y poder. Ideología o conocimiento" (Editorial NovaTesis, Rosario, 2007), a autoridade pública argentina esconde os dados sobre a Igreja católica. Zaffore revela que existe uma discriminação do Estado argentino, que toma frequências dos evangélicos e as dá a los obispos católicos. Ele ainda informa que a IC tem cerca de 130 rádios FM em todo país, várias AM e vários canais de TV em VHF e UHF.

Tem algo de muito errado nas relações da Igreja com o Estado brasileiro. Seria o caso de um deputado ou senador propor uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), ou do Ministério Público intervir, para investigar como a Igreja Católica construiu esse patrimônio e, finalmente, desvendar como ela mantém essa influência sobre o Estado.

A história da igreja Católica revela que a instituição não tem nada de santa e que as atitudes mais atuais (ocupar a antiga Radiobrás ou conseguir concessões de emissoras educativas, por exemplo) é uma continuidade dessa sua ambição pelo poder. É uma história que se inicia há mil anos, quando ela dominava os Estados e ampliava seus territórios, trucidando os adversários; expandiu seu poder com as cruzadas; criou a inquisição para torturar e matar seus inimigos, em especial as mulheres; quase dizima os índios de toda a América; apoiou Mussolini e Hitler e assim conseguiu dinheiro e as terras onde hoje se assenta o Estado do Vaticano; apoiou os ex-nazistas após a Segunda Guerra mundial; protegeu os padres pedófilos da Igreja; faz campanha contra o uso da camisinha; faz campanha contra a descriminalização do aborto; discrimina os homossexuais…

Uma debandada dos fiéis

E tem a doutrina católica, baseada na dor e no sofrimento, na culpa e no remorso. Não por acaso o maior símbolo da Igreja – a cruz – é um homem sendo torturado e morto. Não tem nada a ver com a vida. O crucifixo mostra o filho (Jesus) que o pai (um deus) deixou morrer pela "salvação" dos homens. Para conhecer os crimes desse deus, o melhor é ler o seu dossiê em forma de romance no último livro escrito por José Saramago, Caim.

Como uma instituição com esse perfil conquista as pessoas? A fé não se explica, paciência. É de cada um. Mas quando ela se transforma em poder, ou é usada para conquistar patrimônios públicos, deixa de ser uma questão de foro íntimo para se tornar um problema de interesse de toda sociedade. Até se entende como, no passado, os governantes deste país se submeteram à Igreja Católica. Hoje, porém, não tem cabimento permitir que esse latifúndio se expanda mais ainda e, o que é pior, às custas do Estado e contrariando à Constituição.

A questão é que à Igreja Católica, ambiciosa, não basta ser dona de latifúndios (terras, escolas, editoras, emissoras de rádio e TV, etc.); quer mais. Se há um espaço na TV pública, ela reivindica, ela exige. É uma atitude indecente, e até anti-cristã – porque o próprio catolicismo condena a usura –, mas ela não parece se envergonhar disso.

Parece, no entanto, que a sanha gananciosa da Igreja Católica pelos espaços públicos terá fim. Pelo menos na EBC. Finalmente, o Conselho curador adotou um posicionamento para acabar com essa imoralidade. Ainda de forma tímida: colocar em "consulta pública" esse abuso é um sinal dessa timidez. O correto seria eliminar imediatamente esses programas porque assim referendaríamos a laicidade do Estado e o respeito ao cidadão, conforme prevê a lei.

É provável que neste momento a Igreja Católica esteja se movimentando em defesa da manutenção dos programas na EBC. Ela deve estar: 1) mobilizando seus fiéis cordeirinhos para que "votem" nessa consulta pública; 2) atuando dentro do governo, ligando para os "igrejeiros" do PT; 3) acionando os aliados da "igreja progressista" para que se manifestem; 4) conversando com os poderosos de sempre (a elite econômica e política que comanda este país e está com ela desde 1500); 5) unindo forças com os evangélicos que usam o espaço da EBC.

Se esse movimento acontece, tudo pode ficar como dantes e o Brasil permanecer sob o comando da Igreja Católica por mais 500 anos. Ou, talvez, nem tanto. Corrija-se. Afinal, a Igreja Católica está em franca decadência. Embora se "modernizando" com os pulinhos do padre Marcelo Rossi, seu discurso permanece fúnebre e funesto e as denúncias de pedofilia (coisa antiga que só agora vem à tona) estão provocando uma debandada dos fiéis. Mais um pouco e da Igreja Católica só restará o crucifixo pregado no alto da torre do templo e nos espaços públicos mais renitentes, como uma lembrança do quanto ela mandou no país e no mundo.

* Dioclécio Luz é jornalista, mestrando em Comunicação na Universidade de Brasília, autor de A arte de pensar e fazer rádios comunitárias.

Autorregulamentação, mais do mesmo

Na quinta-feira (19/8), a Associação Nacional de Jornais (ANJ) veio à boca do palco para anunciar a criação de um conselho de autorregulamentação como forma de reiterar o compromisso da entidade com a liberdade de expressão e com a responsabilidade editorial. De acordo com a presidente da ANJ, Judith Brito, reeleita no dia 20, a entidade organizará até o final do ano um conselho autônomo, destinado a examinar queixas contra periódicos afiliados e impor eventuais sanções. E nunca escrevi um texto de abertura que demandasse tantas explicações, tanta necessidade de se colocar o assunto às claras como este.

O que passou a serem favas contadas e tratadas como instância deliberativa "mais que oportuna" pela quase totalidade dos grandes blocos empresariais de comunicação no Brasil, os mesmos que dão suporte físico e algum tipo de substância à sua entidade porta-voz, longe de acenar com algo útil, trouxe ao debate, uma vez mais, a desconcertante existência do monopólio da comunicação no Brasil que avança no século 21, sem perceber a força de enxurrada arrancando ideias arcaicas como a que sustentava a indústria da seca, e outras não menos letais que teimavam em rotular brasileiros em duas classes apenas – os do Sul-Sudeste, ricos e opulentos e os do Norte-Nordeste-Centro-Oeste, prisioneiros de crônica falta de meios elementares para sua subsistência física.

No entanto, ficou patente que é muito mais fácil mudar o curso do Rio São Francisco e também muito mais factível o Brasil constatar o mais vigoroso processo de mobilidade social que se tem notícia nos últimos séculos que o país democratizar o acesso aos meios de comunicação e transformar o direito de expressão em conquista não de um punhado empresas de comunicação, mas sim uma conquista de sociedade como um todo.

Três interrogações

Nada soa mais extemporâneo no momento por que passa o país que a criação de um Conselho de Autorregulamentação. Extemporâneo por quê?

Oras, alguém já teve a feliz e oportuna idéia de criar um Conselho de Autorregulamentação para os presidiários do país? Um conselho com força para evitar rebeliões, motins, assegurar a segurança da população carcerária, dos agentes públicos etc?

Alguma entidade de classe das operadoras de telefonia celular já teve a brilhante iniciativa de propor a criação de um Conselho de Autorregulamentação como algo viável para coibir os milhares de abusos cometidos por suas afiliadas, desde aquela comezinha falha de cobrar taxas e impostos do tipo "se colar, colou" até a de não prover com rapidez e eficiência o direito do usuário à sua portabilidade?

Não chama a atenção o fato de que, até o momento, nenhuma entidade representativa dos proprietários de transporte público (ônibus, vans etc.) tenha criado o seu Conselho de Autorregulamentação com a missão de punir os motoristas que mostram descaso com seus usuários, dirigem em alta velocidade, não param nos pontos designados, freiam bruscamente, arrancam antes mesmo de o passageiro estar completamente dentro do veículo?

A presidente Judith Brito promete que será um conselho autônomo, destinado a examinar queixas contra periódicos afiliados e impor eventuais sanções. Autônomo? Como assim? O cordão umbilical do conselho em gestação não derivaria, em absoluto, de sua entidade-mater, a ANJ?

Sei não, depois que o monobloco da comunicação no Brasil decidiu tutelar o conceito de liberdade de expressão parece que tudo é possível. A começar por iniciativa como esta que já nasce fadada ao descrédito: como tratar de julgar com objetividade matéria de natureza eminentemente subjetiva?

É sintomático recolher do editorial da Folha de S.Paulo de segunda-feira (23/8) estas pérolas:

"Setores autoritários do bloco hoje dominante na política brasileira, o de Lula e Dilma, acenam com um controle `social´ sobre a mídia. Mas como formar um conselho representativo? Como evitar que esse conselho seja dominado pela militância em nome da `sociedade´? Como assegurar que suas decisões sejam `certas´?"

E não seriam estas mesmíssimas três interrogações que inviabilizam logo de saída o anunciado Conselho de Autorregulamentação a ser indicado pela ANJ? Como formar um conselho representativo se quem o cria representa tão somente um espectro – majoritário, sem dúvida – das empresas de comunicação do Brasil?

Fim do ano

Apenas a título de exemplo, como imaginar que revistas como CartaCapital e Caros Amigos "se sintam representadas" em tal conselho?

E o jornalismo da internet, uma realidade que assoma os olhos por sua pujança e vigor nos últimos anos, como estariam representadas se não são subsidiários de portais mantidos por empresas como as Organizações Globo, a Editora Abril, os jornais Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo?

E os blogues, por alguns chamados logo de início como "sujos"? Quem representaria os "sujos" no conselho de autorregulamentação? Ou então este seria apenas um conselho dos "cheirosinhos"

Como evitar que esse conselho proposto pela ANJ seja dominado exatamente por aqueles que mais se dizem porta-vozes da sociedade, muito embora não tenham recebido qualquer procuração da população para tal, seja por meio de eleições livres e universais, seja através de consultas plebiscitárias? A não se encontrar resposta plausível a esta pergunta, penso que a nova instância nada acrescentaria ao status quo de nossas comunicações no Brasil. Ao contrário, visaria tão somente legitimar a prepotência dos que muito podem sobre os que nunca podem, dos que têm direito a falar e a ser ouvidos sobre os que têm, quando muito, apenas o direito de falar, mas nunca o de ser ouvidos.

E, missão impossível mesmo seria a busca de meios que pudessem assegurar que as decisões do novo rebento da ANJ sejam "certas". Sim, porque é de todo impensável, em pleno século 21, acreditar que é justo… decidir em causa própria.

Ora, nem vamos muito longe com o andor porque os santos continuam sendo de barro: não é da praxe jurídica que a isenção por parte de quem julga é essencial para se obter julgamento justo?

E não é por isso que juízes devem se "declarar impedidos" quando têm interesses próprios em julgamento e, se não o fizerem, a parte prejudicada poderá requerer simplesmente a nulidade do mesmo?

Vamos ver se até o dia 31 de dezembro de 2010 seremos brindados com respostas a tais questões. Até lá, esperemos mais, cada vez mais, do mesmo.

* Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo.

Fantástico: O desserviço praticado contra a mulher

A reportagem do Fantástico intitulada "Uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez aborto no Brasil", veiculada dia 1º de agosto, foi um desserviço à sociedade brasileira. Foca-se no já sabido. O impacto causado à saúde pública pela prática de aborto em clínicas clandestinas. Cadê a novidade? Talvez novos personagens. Recepcionistas, médicos, vendedores de Citotec, policiais fardados fazendo bico etc.

Repórteres e apresentadores tentaram dar um tom de jornalismo investigativo sério à reportagem que, em resumo, é sensacionalismo puro. Caso a emissora realmente tivesse o interesse de informar, investigaria as razões para a realidade encontrada nas clínicas. Em nenhum momento, a reportagem focou nas mulheres e investigou seus motivos para abortar. Idade? Saúde? Profissão? Problemas emocionais? Condição social? Situações conjugais?

Imagine a reação de mulheres brasileiras – que são forçadas a procurar serviços clandestinos – sendo informadas sobre a experiência de mulheres em países, como a Inglaterra, por exemplo. O governo dá assistência médica e psicológica gratuita à mulher, respeitando seu direito de escolha. Nem mesmo o parceiro pode interferir.

Claro que a Globo não se deu ao trabalho de citar exemplos de países onde o aborto é legal informando os motivos para tal posicionamento e como isso repercute socialmente. A emissora esqueceu-se de dizer que o aborto é um procedimento médico 100% seguro dependendo do tempo de gestação.

"A Globo ataca novamente"

As centenas de clínicas de luxo que atendem classes média e alta foram ignoradas. Talvez porque as mulheres tratadas nelas não engrossam as estatísticas do SUS de pacientes atendidas com complicações pós-aborto. Estes casos são segredos divididos com melhores amigos ou parentes próximos.

Infelizmente, só se conhece um lado da moeda. É difícil saber a porcentagem de mulheres aos 40 anos que conseguiram completar os estudos ou seguir carreira profissional depois da oportunidade de interromper uma gravidez com assistência médica adequada. Seria interessante saber também quantas clínicas de assistência à mulher que necessita aborto poderiam ser construídas e mantidas com o dinheiro usado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para socorrer pacientes com complicações pós-aborto.

Vale a pena questionar. Por que o aborto é proibido no Brasil? Seria porque o Código Penal de 1940 criminaliza o procedimento médico e, 70 anos depois, os artigos que legislam aborto ainda não foram revisitados efetivamente? Ou, talvez, poque a proibição esteja ligada a questões religiosas?

Enquanto a emissora veicula desserviço e os projetos de leis a favor da legalização do aborto tramitam de comissão em comissão no Senado e na Câmara, a sociedade brasileira continua com opiniões infundadas sobre o assunto. A abertura de inquéritos para investigação das clínicas e a possível punição dos envolvidos não vão anular o problema. Uma imensa campanha deve ser iniciada no Brasil para informar sobre aborto e reforçar o uso de métodos contraceptivos. Não podemos ter pessoas pensando em aborto como remédio para gripe, caso o tratamento seja legalizado futuramente.

Lamentavelmente, os telespectadores da Globo daquela noite dificilmente terão acesso ao artigo da jornalista Teresinha Vicente, da Ciranda da Informação Independente, em resposta à reportagem do Fantástico. Intitulado "A Globo ataca novamente", o texto foi publicado no site da Caros Amigos e da própria Ciranda. Ele protesta contra o pobre jornalismo praticado pela emissora e enfatiza a urgência do respeito à liberdade de escolha da mulher.

* Fabiana Reis é jornalista.

Estado laico vs. proselitismo religioso

Apesar de estar escrito no Preâmbulo da Constituição de 1988 que ela foi promulgada "sob a proteção de Deus", o inciso I do artigo 19 é claro:

Artigo 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

Somos, portanto, um Estado laico. Na sua origem latina a palavra significa leigo, secular, neutro, por oposição a eclesiástico, religioso. Exatamente por isso a alínea b, do inciso VI do artigo 150, proíbe a tributação sobre "templos de qualquer culto" para não "embaraçar-lhes o funcionamento" do ponto de vista financeiro.

É de conhecimento público, todavia, o grande número de programas religiosos que é transmitido por emissoras de TV abertas e também as várias redes, tanto de rádio como de televisão, cujas entidades concessionárias são igrejas. Ademais, existe um grande número de retransmissoras (RTVs) que são controladas diretamente por igrejas.

Uma concessão pública que, por definição, deve estar "a serviço" de toda a população pode continuar a atender interesses particulares de qualquer natureza – inclusive ou, sobretudo, religiosos? Ou, de forma mais direta: se a radiodifusão é um serviço público cuja exploração é concedida pelo Estado (laico), pode esse serviço ser utilizado para proselitismo religioso?

Lembre-se que o § 1º do artigo 4º da Lei 9.612/1998 proíbe o proselitismo de qualquer natureza nas rádios comunitárias. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2566 de 14 de novembro de 2001 contra esta proibição aguarda julgamento há quase nove anos no Supremo Tribunal Federal.

A norma que vale para as outorgas de rádios comunitárias não deveria valer também para as emissoras de rádio e de televisão pagas e/ou abertas?

Consulta Pública

Obedecendo a decisão de seu Conselho Curador, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) abriu no último dia 6 de agosto uma consulta pública para recolher, no prazo de 60 dias, contribuições de entidades e pessoas físicas sobre a política de produção e distribuição de conteúdos de cunho religioso através de seus veículos.

Hoje, a TV Brasil exibe o programa Reencontro, produzido por igreja de orientação evangélica, aos sábados; e os programas A Santa Missa e Palavras de Vida, de orientação católica, aos domingos. Já a Rádio Nacional de Brasília transmite aos domingos celebração de missa de orientação católica. Segundo a EBC, tais programas são originários das emissoras que foram por ela absorvidas após a sua criação e a regulamentação do Sistema Público de Comunicação (Lei nº 11.652/2008).

Reclamação de telespectadores enviada à Ouvidoria da EBC provocou um parecer da Câmara de Educação, Cultura, Ciência e Meio Ambiente do Conselho Curador que afirma: "parece-nos impróprio que os veículos públicos de difusão concedam espaços para o proselitismo de religiões particulares, como acontece atualmente com os programas que vão ao ar na TV Brasil aos sábados e domingos, dedicados à difusão de rituais ou de proselitismo que favorecem a religião católica e a segmentos de outras religiões cristãs. Tendo-se em vista o caráter plural do "mapa religioso" brasileiro (…) trata-se de um injustificado tratamento a religiões particulares, por mais importantes que sejam, por maior respeito que mereçam. Em tese, tais tratamentos, atualmente vigentes, só seriam corrigíveis, e atenuados, se todos os cultos e religiões recebessem espaços equivalentes o que seria, obviamente, inviável."

Diante disso, a Câmara sugere a substituição dos atuais programas por outros sobre o fenômeno da religiosidade no Brasil, "de um ponto de vista plural, assegurada a participação a todas as confissões religiosas".

EBC sai na frente

Abrir uma Consulta Pública com o objetivo de formular sua "política de produção e distribuição de conteúdos de cunho religioso" é o exemplo de decisão que se espera do Conselho Curador e da diretoria da EBC.

Sendo uma empresa pública de comunicação, a EBC deve se transformar não só em referência de qualidade, mas também de cumprimento dos preceitos constitucionais para os outros sistemas de "radiodifusão sonora e de sons e imagens" – privado e estatal – previstos na Constituição.

***
O Edital da Consulta Pública e o Parecer da Câmara de Educação, Cultura, Ciência e Meio Ambiente podem ser acessados aqui.

* Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 201.


 

Palhaçada não é jornalismo

Uma pequena nota na editoria de política do Estado de S.Paulo e um texto no Globo (sexta, 13/8) recolocam em debate uma recomendação do Tribunal Superior Eleitoral que tem sido apontada pela imprensa como restrição à liberdade de informação.

Trata-se da proibição aos programas humorísticos do rádio e da televisão de ridicularizar ou degradar candidatos durante o período eleitoral.

Integrantes de programas humorísticos como Casseta e Planeta, CQC e Pânico na TV argumentam que a restrição afeta a liberdade de imprensa. Confundem mídia com imprensa.

A comunicação do TSE, divulgada em nota e reproduzida na sexta-feira por alguns jornais, lembra que a determinação está explicitada na legislação eleitoral desde 1997, quando as regras foram aprovadas pelo Congresso e sancionadas pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso.

Considerando que as emissoras de rádio e TV são concessões públicas, o texto impõe restrições à programação, não apenas de noticiários, mas também de programas de entretenimento, como novelas e humorísticos.

Sem graça

O artigo 45 da Lei 9.504 veda o uso de trucagem, montagem e outros recursos de áudio ou vídeo que alterem, degradando ou ridicularizando, a imagem pública de candidatos, partidos ou coligações, prevendo multas para as emissoras em caso de desobediência.

A questão é bastante clara, como é claro também que as emissoras usam programas humorísticos para influenciar a opinião dos eleitores e favorecer determinados candidatos.

Esse tipo de manobra fica claro em seções de programas humorísticos travestidos de jornalismo, nas quais o comediante entrevista um político e depois, na edição, aplica-se um nariz de palhaço sobre o rosto do entrevistado. As pautas desse tipo de programa são claramente escolhidas para ridicularizar uns e poupar outros, conforme as preferências da emissora.

Humoristas prometem fazer uma passeata – evidentemente no Rio – no dia 22, para protestar contra a restrição. Pode até ser engraçado, e certamente a imprensa vai cobrir com toda atenção. Mas não muda a verdade segundo a qual um jornalista fazendo humor é humorista.

E quando o humor é usado para favorecimentos, não tem graça nenhuma.