Após o fim do regime tirânico de Pisístrato e de seus dois filhos, Hiparco e Hípias, por volta de 550 a.C., os regimes aristocrático, monárquico e oligárquico em Atenas estavam enfraquecidos. O povo, então, deu poderes ao novo líder, Clístenes, para a elaboração de uma nova Constituição que, por sua vez, instituiu algo inédito: a democracia, um regime governado diretamente pelo povo.
O termo democracia vem do grego demos, povo, e kratein, governo. O governo do povo ateniense evoluiu da assembléia (eclésia), realizada em praça pública (ágora) com a presença dos cidadãos, à moderna democracia representativa, onde a população elege representantes para decidirem os rumos do governo em seu nome. Esta mudança se deve principalmente pelo desenvolvimento das polis e crescimento do número de eleitores, impulsionado pelo sufrágio universal.
Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a Assembléia Constituinte se declara, ainda no preâmbulo, representante do povo brasileiro com o objetivo de instituir, através daquela Constituição, um Estado Democrático. O parágrafo único do art. 1º afirma que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou de forma direta.
Proposições de diferentes espécies
Dito isso, não resta dúvida que no Brasil adotamos a República através da democracia representativa e nossos representantes, escolhidos através de processo eleitoral, têm por função exercer o poder originado no próprio cidadão.
Nos últimos um ano e meio, a Câmara dos Deputados brasileira discute um projeto de lei, o PL-29/2007. Este projeto dispõe, basicamente, sobre a comunicação audiovisual de acesso condicionado, mais comumente chamado de TV por assinatura; reúne em apenas uma lei todas as formas de TV por assinatura (cabo, MMDS, TVA, satélite e DTH) e cria regras para a produção, programação, empacotamento e distribuição do conteúdo no setor.
O deputado Paulo Bornhausen (PFL-SC) apresentou o projeto em plenário no dia 5 de fevereiro de 2007. Até o dia 9 de julho de 2008, o PL já passou por quatro substitutivos, um do deputado Jorge Bittar (PT-RJ) e três do deputado Wellington Fagundes (PR-MT); 177 emendas sobre os substitutivos pela CCTCI (Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática) e CDEIC (Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio); 37 emendas feitas pelas CCTCI e CDEIC; e 11 requerimentos (redistribuição, apensação, audiência, recurso).
De 4 a 11 de setembro de 2007, a Câmara dos Deputados discutiu o pedido do deputado dr. Ubiali de tramitar o PL 29/2007 juntamente ao PL 1631/2007. O pedido foi negado "pois as proposições são de diferentes espécies" (o PL 1631 fala sobre o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, FNDCT, de natureza puramente contábil e com objetivo de financiar a pesquisa e inovação – realmente, bastante importante, mas não combina com uma discussão sobre regulação de transmissão televisiva).
A lógica capitalista
Mais recentemente, o deputado Cezar Silvestri (PPS-PR) solicitou que o projeto fosse apreciado também pela Comissão de Defesa do Consumidor. Sendo que este pedido já havia sido feito e retirado em abril de 2008.
Toda solicitação, seja pedido de redistribuição ou análise, leva tempo para ser julgada; por isso, qualquer pedido tem que ser avaliado antes de solicitado oficialmente. Infelizmente, o processo burocrático usado para transparecer o método democrático de tramitação de um projeto de lei na Câmara é usado como instrumento protelatório pelos grupos contrários.
E que grupos são esses? Visivelmente, os radiodifusores e as empresas de TV por assinatura (Abert e ABTA). A pressão com que atuam sobre os deputados é extremamente forte e eficaz. Seus motivos também são claros: defendem um modelo de negócios há muito tempo lucrativo e livre de regulamentação. Qualquer insinuação de criação de leis que limitem sua liberdade é combatida ferozmente através de pressões políticas e da influência sobre as massas, através de propagandas incompletas sobre o que está acontecendo no governo (aquele comercial da ABTA foi ridículo).
No entanto, não podemos crucificar os empresários. Seus motivos contrários à aprovação do projeto de lei estão de acordo com a lógica capitalista com que sempre dirigiram seus negócios. A defesa do mercado já conquistado é uma reação normal e previsível. Apesar de a transmissão televisiva ser uma concessão pública, as emissoras são privadas e, como qualquer empresa, visam ao lucro.
Divulgação independente
Esta resistência à criação de novos paradigmas que envolvam os radiodifusores não é exclusividade da PL -29. Toda a discussão sobre a implantação da transmissão digital de televisão no Brasil foi guiada por interesses comerciais das emissoras de TV aberta (além das empresas de eletrônicos), que fizeram de tudo para manter o antigo modelo econômico ao mesmo tempo em que divulgaram para a população uma revolução no modo de assistir televisão. No fim, a televisão digital brasileira não passa de analógica com enfeites.
Mesmo assim, os radiodifusores não podem ser excluídos da discussão. Entretanto, não podem ser os únicos ouvidos. O conceito de democracia possui princípios como igualdade, participação e liberdade. Todos têm o direito de participar: empresários, agentes sociais, cidadãos, teóricos, especialistas… E a opinião de todos deve ser aceita e igualmente valorizada. A interpretação dos radiodifusores é voltada para interesses próprios, e não da população, então por que seguir estritamente o que dizem? Ideal é valorizar também a visão não-mercadológica, dar espaço para a sociedade civil se manifestar e atribuir o real valor à sua análise (não adianta nada pedir um relatório e ignorá-lo).
Chega a ser ridícula a situação quando, para dar prosseguimento ao processo, os deputados usam como trunfo o apoio de grandes radiodifusores e sua esfera de influência midiática. A comunicação é parte de um Estado democrático e o acesso à informação, antes de ser constitucional, é garantia mundial e explicitamente definida na Declaração Universal dos Direitos dos Homens, de 1948. A divulgação do projeto deve ser feita independente da aceitação da mídia. Obviamente, estou sendo inocente neste momento em considerar que isso poderia acontecer…
Os interesses da maioria
Globo, Band, SBT e companhia comparecem em peso às comissões e fazem de tudo para convencer os deputados sobre seus interesses. E, pior, conseguem! A força política dos radiodifusores já é conhecida e não surpreende. O que espanta é a total falta de respeito com o cidadão. Um projeto de lei deve ser avaliado sobre os benefícios que trará à população. A visão empresarial será analisada, mas o principal é montar um projeto que represente os reais interesses do cidadão. Não estou avaliando aqui o conteúdo da PL, se está correto ou não (particularmente, acho que possui pontos positivos e negativos – o que falta é conseguir balanceá-los).
Se o assunto precisa ser discutido exaustivamente, então que os parlamentares façam direito. Coloquem em consulta pública; peçam relatórios para os atores direta e indiretamente envolvidos (radiodifusores, representantes governamentais, sociedade civil); e, mais importante, façam com que tudo seja divulgado na mídia. A consulta pública deve ser divulgada, tanto quanto seu processo e sua conclusão; as análises devem ser distribuídas a todos os interessados e devem se encontrar disponíveis para consulta; o processo de discussão da PL precisa ser coberto pela imprensa de forma objetiva (sei que é uma utopia imaginar esta posição da mídia, mas não custa nada tentar).
Eu não quero que o radiodifusor decida o que é melhor para o país. Eu não moro no Projac e não votei na Globo para me representar. Quero que meu deputado tenha personalidade, inteligência, ética e saiba que ele está lá para mim, para a sociedade; ele está lá para representar os interesses da maioria.
Afinal, esta é a definição de democracia.
* Gustavo Audi é formado em Rádio e TV pela UFRJ e especialista em Mídias Digitais pela Unesa