O governo federal precisa definir de uma vez por todas duas políticas sobre a TV digital que permanecem no limbo de suas ações. Mais de dois anos depois da edição do decreto nº 5.820, que instituiu o Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T), e quase nove meses do início das transmissões digitais em São Paulo, ainda não existe uma decisão sobre como serão implementados e geridos os canais da União, nem como as emissoras já existentes poderão explorar a modalidade de multiprogramação.
Em ambos os casos, os benefícios seriam voltados principalmente para o chamado campo público da comunicação social eletrônica, atingindo comunidades, poderes municipais e estaduais, universidades e parte da sociedade que historicamente é excluída das redes de comunicação de abrangência nacional. Assim como está ocorrendo com a interatividade, a impressão que se tem de fora é que essas demandas podem e devem esperar. Curioso é o fato de que as duas decisões represadas não interessam às redes privadas de televisão. As mesmas que tiveram seu pleito atendido de forma plena quando da escolha do padrão de modulação criado no Japão e da opção pela alta definição.
Transição digital
Vejamos o que diz o decreto. O artigo 13 criou quatro canais a serem explorados pela União. Todos têm destino e uso definido por seus nomes: Poder Executivo, Educação, Cultura e Cidadania:
"I – Canal do Poder Executivo: para transmissão de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos do Poder Executivo;
II – Canal de Educação: para transmissão destinada ao desenvolvimento e aprimoramento, entre outros, do ensino à distância de alunos e capacitação de professores;
III – Canal de Cultura: para transmissão destinada a produções culturais e programas regionais;
IV – Canal de Cidadania: para transmissão de programações das comunidades locais, bem como para divulgação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes públicos federal, estadual e municipal."
No artigo 12, está posto que existirão "pelo menos quatro canais digitais de radiofreqüência com largura de banda de seis megahertz cada para a exploração direta pela União Federal". Apesar de ser ponto pacífico na doutrina jurídica que à União correspondem as atribuições do governo federal, isso não elimina o conceito mais amplo previsto na Constituição Federal de 1988. Em seu artigo primeiro, o texto deixa claro que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel de Estados, Municípios e Distrito Federal.
Interpretando tais dispositivos, agentes do Ministério das Comunicações entendem que os canais pertencem à União (leia-se Poder Executivo Federal) e por ela serão explorados. Estão corretos do ponto de vista legal, porém se equivocam na política. Ainda pela interpretação desses gestores públicos, caberá às comunidades e aos poderes públicos municipais acomodarem-se no amorfo Canal da Cidadania. O que os mesmos esquecem é que a união citada pela Carta Magna é constituída por três poderes, cada um com sua função específica. E uma política pública nacional como a que vem sendo gestada por tanto tempo pelo governo federal deveria levar em conta não apenas esses entes como aqueles situados nos Estados e Municípios.
O silêncio e a indefinição do Executivo federal sobre a regulamentação dos canais da União levou os demais poderes da República a uma verdadeira corrida ao Oeste em busca do ouro de tolo. Cada instituição quer ser "dono" do seu canal, reproduzindo a lógica de redes verticais que impera no setor privado. Assim, a Câmara dos Deputados tem seu projeto isolado e quer lançar canais em mais de 200 municípios e o Senado corre em faixa própria garantindo seus canais nas capitais sem tomar conhecimento (como sempre) que a federação é bem maior que a cúpula côncava do Congresso Nacional.
Projeto semelhante tem a Justiça, com recursos e autonomia que lhe permitem construir uma rede própria. No MEC, o Canal da Educação está em fase de constituição. Enquanto isso, os poderes públicos estaduais e municipais, bem como televisões educativas e universitárias, não sabem como (ou se) farão a onerosa e complexa transição da transmissão analógica para a digital. Pior do que isso, não se sabe qual será a inserção do conteúdo regional nessas estruturas federais. No discurso, a intenção e a vontade de compartilhamento é manifesta. Os encaminhamentos é que não dão sinais disso.
Um modelo possível
A alta administração federal faz essa escolha formalista justamente no momento em que teria a chance de ir além. Seria importante resistir ao primeiro impulso e pensar numa arquitetura um pouco mais democrática e moderna. Em um modelo discutido desde abril no Rio Grande do Sul, está sendo pensada uma forma em que todos os quatro canais previstos no decreto, mais aquele consignado para a atual TV educativa estadual, seriam usados a fim de se criar um Sistema Estadual de Comunicação Pública. Contando com cinco canais de 6 MHz, seria possível colocar até dez programações em alta definição no ar (usando compressão no formato MPEG-4), o que incluiria os entes federais, estaduais e municipais, além de emissoras universitárias e comunitárias.
Dentro desta configuração, nenhum seria prejudicado na veiculação da íntegra de sua programação. Haveria espaço para acomodar o canal do Executivo federal com os municipais (um canal de 6 Mhz com duas programações em HDTV), o canal de Educação com o MEC, universidades e secretarias de educação, o canal de Cultura com o MinC, secretarias da cultura e produtores independentes, e o canal da Cidadania com canais comunitários e demais entidades do Terceiro Setor.
Por fim, o canal das TVs educativas estaduais seriam compartilhado com assembléias legislativas nas capitais ou câmaras municipais, no interior. Caso fossem incorporados os canais da Câmara dos Deputados e do Senado, um arranjo ainda mais inclusivo poderia ser pensado. Haveria espaço também para o transporte de aplicações de governo eletrônico e de ensino a distância – como querem as universidades e o próprio governo federal.
Como está posto, pode-se interpretar o decreto de forma que os canais da União, em uma República Federativa, sejam compartilhados por todos os entes públicos que a formam e não "pertençam" às instâncias federais. Dessa forma, haveria uma alteração importante no paradigma que sempre prevaleceu nas cadeias privado-comerciais. Ao invés de uma cabeça-de-rede centralizada no eixo Rio-São Paulo ou em Brasília, abrindo pequenas janelas regionais em horários pouco atraentes, a rede se constituiria de baixo para cima, da periferia para o centro. É possível pensar em uma rede nacional de TVs públicas descentralizada e horizontal, com a maior parte da programação gerada nas localidades e com determinados horários reservados à transmissão em rede. Como se sabe, o que acontece atualmente no campo privado é justamente o contrário.
Outra diferença para o modelo que está sendo pensado pelo governo federal é que as concessões seriam outorgadas a este pool de instituições locais (aglutinadas em uma terceira entidade pública de direito privado), e não a um único ente federal. Tudo gerido por um conselho com representantes dos associados. Diluição de poder e também de despesas. Os gastos para o orçamento federal poderiam cair muito e as responsabilidades na manutenção de todo o sistema, também.
Em vez de mais de 500 milhões de reais multiplicados por dois ou três (se pensarmos em ter o canal do Executivo em 200 cidades, bem como a rede legislativa e a TV Senado separadamente) e bancados por uma ou duas fontes apenas, a despesa poderia ser pulverizada entre os interessados. De outra maneira, num momento ou noutro, todos os atores alijados do processo gastariam outros tantos milhões de reais constituindo redes paralelas para colocar sua programação em sinal aberto. Desperdício de recursos e de esforços.
Tiro no pé
Ignorar essa arquitetura futura pode ser um erro não apenas no sentido econômico. Politicamente, será muito difícil para os poderes federais tentarem se impor Brasil afora utilizando as instituições locais apenas como ponte. Isso poderá ocorrer nos estados mais carentes de recursos para implantarem a digitalização. Não se sabe até onde será possível convencer estados onde já existe uma produção regional mais forte. Esta é a dificuldade, por exemplo, que a TV Brasil está enfrentando para compor a sua rede.
Centralizada, a expansão se dá de uma forma muito mais lenta porque depende de decisões e orçamentos concentrados em Brasília. Sem falar que pode ser facilmente descontinuada com a troca de governo. Coletivamente, seria muito mais funcional instalar toda essa estrutura usando o interesse local e retirando essas instituições do papel de coadjuvantes ao se compartilhar responsabilidades e benefícios. A facilidade em arregimentar adeptos foi sentida agora, ao ser fechado muito rapidamente um pleito suprapartidário ao orçamento federal de 3 milhões de reais para as aquisições do sistema compartilhado de transmissão digital da TVE-RS.
Portanto, não se trata aqui de apenas pensar um operador de rede, com torre compartilhada, nos moldes europeu ou japonês. A provocação é alterar a cultura que hegemoniza a área das comunicações no Brasil. Do contrário, o Estado e o campo público estarão apenas emulando o modelo de negócios da mídia privada. Neste, os afiliados aderem sem questionar porque participam da receita da rede, sem falar de outros ganhos como poder e credibilidade. A lógica não funciona da mesma forma para o campo público porque geralmente não existem contrapartidas financeiras. Por isso, até hoje não foi possível manter uma rede nacional de TV com esse caráter. Ou seja, o apelo precisa ser alterado.
Para os inimigos, a multiprogramação
No caso da multiprogramação, o descaso do governo vem adicionado de um sofisma perverso. O Ministério das Comunicações não expede a norma e agora diz na imprensa que punirá aqueles concessionários que explorarem a modalidade de multiprogramação, coisa que declaradamente só interessa às emissoras educativas e universitárias. A TV Cultura de São Paulo foi uma das primeiras a manifestar esta intenção.
Voltemos ao decreto. Em nenhum de seus 15 artigos está expresso que a multiprogramação dependerá de norma posterior para ser implementada. O texto inclusive já prevê a transmissão em definição padrão, o que viabiliza a multiprogramação. Logo, as emissoras que "praticarem" multiprogramação não podem ser punidas por algo que não possui previsão legal e, inclusive, é incentivado pelo decreto. Num cenário kafkiano, se praticarem a definição padrão sem multiprogramação poderão ser acusadas de estarem subutilizando o espectro.
O argumento do governo é que as emissoras poderão usar o espaço proporcionado pela compressão para sublocar a outros exploradores. Se estivesse preocupado com a legalidade neste tipo de negociação, o Ministério das Comunicações deveria colocar sob suspeita também todas as emissoras comerciais que veiculam publicidade além dos limites legais ou que funcionam em conglomerados acima dos limites de propriedade. Ou simplesmente não assinar os contratos de consignação dos canais digitais com emissoras irregulares.
Como acontece com a política pública para as rádios comunitárias, parece claro que a democracia deve esperar enquanto o mercado tem copa franca. Serviços de datacasting e outros já ofertados não careceriam igualmente de regulamentação, uma vez que abrem margem para diversas formas de exploração comercial não previstas pelo marco legal? Atualmente, as emissoras transmitem para dispositivos celulares usando a modalidade de 1-SEG. Há previsão legal para o mesmo? Sobre isso, silêncio, enquanto as abóboras se acomodam.
Ninguém é ingênuo em achar que o modelo proposto no Rio Grande do Sul é de fácil implementação ou manutenção. Seu sucesso vai sempre depender do consenso e da vontade política das instituições que participarem do pool. Mas se órgãos regionais e locais sempre confiaram na União para administrar determinados interesses, por que desta vez não poderia se dar o contrário?
Por uma questão de coerência com seu histórico de lutas pela democratização da comunicação, o partido que está governo precisa ter em mente que seus formuladores de políticas públicas nem sempre agem de forma pública. Neste caso, a protelação da decisão parece ter beneficiário certo. Por uma questão de accountability, seria importante abrir uma consulta pública para que os demais entes da União possam dizer o que esperam da regulamentação desses canais. E, mais do que tudo, por uma questão de estabilidade jurídica é preciso parar de ameaçar a democracia com a mão pesada do Estado acionada apenas para um lado da balança.
* James Görgen é jornalista, vice-presidente do Conselho Deliberativo da Fundação Cultural Piratini – Rádio e Televisão, mantenedora da TVE-RS e da rádio FM Cultura.