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O coronelismo eletrônico evangélico

Na Constituinte de 1987-88, ao contrário de todos os outros temas, o capítulo da Comunicação Social só logrou ser "rascunhado" na Comissão de Sistematização e somente ganhou forma definitiva por acordo de plenário. As normas constitucionais finalmente aprovadas sacramentaram bandeiras defendidas por radiodifusores e representantes de igrejas evangélicas, sobretudo no que se refere ao processo de concessão, renovação e cancelamento dos serviços públicos de rádio e televisão.

A ação coordenada dos interesses da "bancada da comunicação" articulada a parlamentares evangélicos está identificada no artigo "Comunicação na Constituinte: a defesa de velhos interesses" [não disponível online], que publiquei no primeiro número do Caderno CEAC/UnB, ainda em agosto de 1987. Àquela época, no entanto, não estava claro que a Constituinte viria a se constituir no ponto de referência para a atuação e o crescimento de representantes das igrejas evangélicas no Congresso Nacional e, sobretudo, para o avanço significativo de diferentes denominações evangélicas como concessionárias de emissoras de rádio e televisão no país.

A participação de igrejas no sistema de comunicações e na política vem, gradativamente, merecendo a atenção de analistas e pesquisadores. A tese de doutorado defendida há pouco no Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) pelo cientista político Valdemar Figueredo Filho, com o título "Os três poderes das redes de comunicação evangélicas: simbólico, econômico e político", é mais uma contribuição ao entendimento de parte importante das relações entre religião e mídia no nosso país.

O argumento principal do trabalho de Figueredo Filho é que "a representação política evangélica é o mesmo que representação das redes de comunicação evangélicas" e "nem mesmo os supostos valores morais comuns ao grupo religioso conseguem o grau de coesão alcançados pelos interesses relacionados à formação, manutenção e expansão de suas redes de comunicação". No contexto legal que regula a concessão, renovação e o cancelamento dos serviços públicos de rádio e televisão no Brasil, isso significa a manutenção de um tipo particular de coronelismo eletrônico, agora o evangélico.

Bases do coronelismo eletrônico evangélico

A representação evangélica no Congresso Nacional (ver Quadro 1) tem aumentado na medida em que também aumenta o percentual de evangélicos no total da população brasileira. Dados apresentados por Figueredo Filho para o ano de 2000 indicam que esse percentual já atingia 15,6% contra apenas 9%, em 1990. Em relação à representação política, no entanto, há uma diferença fundamental. Se até o fim da década de 1980 ela era composta, sobretudo, por usuários do rádio e da televisão (a chamada "igreja eletrônica"), a partir de então ela passou a ser principalmente de concessionários deste serviço público.

QUADRO 1
Representação Evangélica no Congresso Nacional (1983-2011)

Legislatura

Titulares

1983-1987

12

1987-1991 (Constituinte)

32

1991-1995

23

1995-1999

30

1999-2003

52

2003-2007

48

2007-2011

44

O levantamento realizado por Figueredo Filho, apoiado em informações da Anatel e da Abert, até março de 2006 revela que 25,18% das emissoras de rádio FM e 20,55% das AM nas capitais brasileiras são evangélicas (ver Quadros 2 e 3). Há de se notar, no entanto, que as denominações pentecostais são as que controlam o maior número de concessões, destacando-se a Igreja Universal do reino de Deus (IURD) entre as FM (24) e da Igreja Assembléia de Deus (IAD) entre as AM (9).

QUADRO 2
Rádios FM evangélicas nas capitais brasileiras

 

Evangélicos Pentecostais

47

69,11%

Evangélicos de Missão

5

7,35%

Paraeclesiásticas Evangélicas

16

23,52%

Total de FMs evangélicas nas capitais brasileiras

68

100%

 

QUADRO 3
Rádios AM evangélicas nas capitais brasileiras

 

Evangélicos Pentecostais

24

64,86%

Evangélicos de Missão

5

13,51%

Paraeclesiásticas Evangélicas

8

21,62%

Total de AMs evangélicas nas capitais brasileiras

37

100%

Em relação à televisão, além do grande número de programas evangélicos que é transmitido por emissoras de TV abertas, existem também redes cujas entidades concessionários são igrejas. E, sobretudo, existe um grande número de retransmissoras (RTVs) controladas diretamente por igrejas (Quadro 4, com dados anteriores a setembro de 2007).

QUADRO 4
RTVs controladas por entidades evangélicas

 

ENTIDADES
EVANGÉLICAS

NÚMERO DE RTVs

GRUPO

Fundação Evangélica Boas Novas

19

IAD

Rádio e Televisão Record S.A

196

IURD

Rede Mulher de Televisão Ltda(desde 9/2007 Record News)

61

IURD

Rede Família de Comunicações S/C Ltda

10

IURD

A criação de uma Frente Parlamentar Evangélica (FPE), em 2003, formaliza a articulação dos interesses evangélicos no Congresso Nacional. Estes são defendidos através da participação de seus membros nas comissões de Comunicação tanto na Câmara quanto no Senado e nas votações das proposições legislativas em plenário.

Fundada por iniciativa do deputado Adelor Vieira (PMDB-SC), membro da IAD, a FPE é atualmente presidia pelo deputado pastor Manoel Ferreira (PTB-RJ), principal líder da IAD da Convenção Madureira. O Quadro 5, organizado por Figueredo Filho, mostra a composição atual da FPE.

QUADRO 5
Frente Parlamentar Evangélica (2007-2011)

 

NOME

TÍTULO ECLESIÁSTICO

PARTIDO

UF

IGREJA

01

Antonio Cruz

Presbítero

PP

MS

IAD

02

João Campos

Pastor

PSDB

GO

IAD

03

Silas Câmara

Membro

PTB

AM

IAD

04

Takayama

Pastor

PMDB

PR

IAD

05

Zequinha Marinho

Membro

PSC

PA

IAD

06

Dr. Nechar

Membro

PV

SP

IAD

07

João Oliveira de Souza

Membro

PFL

TO

IAD

08

Jurandir Loureiro

Pastor

PAN

ES

IAD

09

Sabino Castelo Branco

Membro

PTB

AM

IAD

10

Manoel Ferreira

Pastor

PTB

RJ

IAD Madureira

11

Filipe Pereira

Diácono

PSC

RJ

IAD Madureira

12

Cleber Verde

Membro

PAN

MA

IAD Madureira

13

Antonio Bulhões

Bispo

PMDB

SP

IURD

14

Flávio Bezerra

Bispo

PMDB

CE

IURD

15

George Hilton

Pastor

PP

MG

IURD

16

Léo Vivas

Bispo

PRB

RJ

IURD

17

Paulo Roberto

Bispo

PTB

RS

IURD

18

Eduardo Lopes

Bispo

PSB

RJ

IURD

19

Vinicius Carvalho

Pastor

PT do B

RJ

IURD

20

Mario de Oliveira

Pastor

PSC

MG

IEQ

21

Jorge Tadeu Mudalen

Membro

PFL

SP

IIGD

22

Dr. Adilson Soares

Pastor

PRB

RJ

IIGD

23

Eduardo Cunha

Membro

PMDB

RJ

CESNT [Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra]

24

Robson Rodovalho

Bispo

PFL

DF

CESNT

25

Francisco Rossi

Membro

PMDB

SP

Comunidade de Carisma

26

Marcos Antônio

Membro

PSC

PE

Metodista Wesleyana

27

Carlos Manato

Membro

PDT

ES

Cristã Maranata

28

Carlos Willian

Membro

PTC

MG

Cristã Maranata

29

Íris de Araújo

Membro

PMDB

GO

IARC [Igreja Apostólica Renascer em Cristo]

30

Geraldo Tenuta

Bispo

PFL

SP

IARC

31

Henrique Afonso

Pastor

PT

AC

Presbiteriana

32

Leonardo Quintão

Membro

PMDB

MG

Presbiteriana

33

Onyx Lorenzoni

Membro

PFL

RS

Luterana

34

Luis Carlos Heinze

Membro

PP

RS

Luterana

35

Arolde de Oliveira

Membro

PFL

RJ

Batista

36

Gilmar Machado

Membro

PT

MG

Batista

37

Natan Donadon

Membro

PMDB

RO

Batista

38

Neucimar Fraga

Membro

PL

ES

Batista

39

Walter Pinheiro

Membro

PT

BA

Batista

40

Andréia Zito

Membro

PSDB

RJ

Batista

41

Jusmari Oliveira

Membro

PFL

BA

Batista

42

Lincoln Portela

Pastor

PL

MG

Batista Renovada (Pentecostal)

43

Marcelo Crivella

Bispo

PRB

RJ

IURD

44

Magno Malta

Pastor

PL

ES

Batista

Serviço público ou proselitismo religioso?

A tese de Figueredo Filho demonstra que, a exemplo do ocorre também em relação às outorgas de rádios comunitárias [ver, neste Observatório, "Rádio comunitárias – Coronelismo eletrônico de novo tipo"], número expressivo das concessionárias das emissoras de rádio e televisão (aberta) e RTVs está vinculado a entidades religiosas. E mais ainda: seus representantes são atores políticos que atuam de forma articulada no Congresso Nacional nas questões referentes às políticas públicas de comunicação e na formação, manutenção e ampliação da suas redes de rádio e televisão.

Obviamente os evangélicos não são o único grupo religioso concessionário do serviço público de radiodifusão. E a utilização de concessões públicas não é a única forma de atuação de grupos religiosos na mídia.

A questão que precisa ser discutida, no entanto, é se um serviço público que, por sua própria natureza, deve estar "a serviço" de toda a população pode continuar a atender interesses particulares de qualquer natureza – inclusive ou, sobretudo, religiosos.

* Venício A. de Lima é é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007).

TVs públicas e transmissões religiosas

TVs públicas que recebem dinheiro de um Estado laico têm em suas programações regularmente a exibição de cultos religiosos. O caso mais paradoxal é o da TV Cultura, que vem transmitindo há 21 anos o seu "programa" Missa de Aparecida todos os domingos às 8 horas.

Isso é inaceitável e inconstitucional. O Brasil é uma democracia laica, e não uma teocracia cristã/católica. E as outras seitas? E os ateus? Não podem ter os seus próprios programas no canal? Não. Mas serve para exemplificar que, além de ferir o secularismo do Brasil, o que já seria suficiente para eliminação dessa irregularidade, é uma evidente distorção à falta de igualdade. Privilegiam uma determinada denominação religiosa e as outras não têm o mesmo espaço na programação regular. Isso vem ocorrendo há décadas.

Enquanto em outros canais as seitas "lutam" por um espaço com suas melhores armas – o dinheiro –, na TV Cultura, uma TV pública, a Igreja católica tem garantido, e com exclusividade, o seu "programa", o que já é uma vantagem competitiva para o seu proselitismo na disputa acirrada por fiéis/dízimo ou dízimo/fiéis, a TV privada segue a regra do mercado – "quem paga mais leva, é mais justo".

A isenção de uma TV pública é o alicerce fundamental que a deveria manter, isonomia política (imagine se um partido tivesse o seu próprio programa em detrimento de outros), absoluta independência na sua linha editorial e a isenção religiosa também, fazem parte de suas cláusulas pétreas, a famosa separação Igreja-Estado. Essa preferência duradoura por uma seita, faz pairar dúvidas sobre a independência da TV Cultura.

O marketing divino

Assim como seria difícil abrir espaço para todos os partidos políticos com programas regulares, porque são muitos e essa aproximação é perigosa, por isso devem e são submetidas a uma regulamentação prevista na lei. A um número interminável de religiões e outras mais surgindo (sem pagar imposto) que poderiam reivindicar o seu espaço, e mesmo que houvesse lugar para todas e o canal se tornasse mais uma concessão para "Deus", seria outra aproximação perigosa.

A missa dominical na TV Cultura é uma tradição que vem sendo mantida por todos os diretores/conselheiros da Fundação Padre Anchieta – será que se fosse Fundação Pastor Anchieta teríamos nas manhãs de domingo um culto evangélico? Ou Fundação Pai de Santo Anchieta, com uma transmissão da cerimônia do Candomblé Ao Vivo de um terreiro? A mais nova seguidora dessa doutrina é a TV Brasil (a BBC tupiniquim), que está mantendo a obediência à Santa Igreja.

Num país onde o dinheiro tem uma mensagem do "criador", símbolos religiosos em quase todos os prédios públicos (inclusive no STF) e as TVs públicas exibem cultos dominicais, vivo cercado de propaganda estatal e empresarial por todos os lados e em muitos outros meios e modos operantes do marketing divino. Por enquanto sou um ateu convicto, mas se não fosse continuaria tendo fé em um Estado laico, o que inclui a TV pública.

* Daniel Pacheco de Almeida é estudante de Capela do Alto Alegre (BA).

Sobre o controle na internet

No rastro de matéria publicada neste Observatório ("O controle da internet é necessário? "), resolvi acrescentar as reflexões seguintes.

É certo que estamos numa época assinalada pelo "tempo das mutações". Como tal, torna-se inevitável que se promovam abalos em conceitos e preceitos consolidados por uma tradição cultural e jurídica. Contudo, existem princípios que, dada a sua amplitude ética, não deveriam sofrer regressão por conta de situações novas, menos ainda se essas forem de natureza tecnológica. O que, efetivamente, pretendo expor para a presente questão? É simples: o direito à privacidade como fonte geradora da mais eficiente apuração.

Bem sei que o tema, além de ser polêmico, exige certa coragem para o necessário enfrentamento de problemas que, na origem, são conflitantes. Com o intuito de acelerarmos a reflexão, proponho a seguinte situação: será lícito, em nome do "bem público", a residência de um cidadão ser invadida e vasculhada por suspeita de algum ato delituoso? Se, quanto ao espaço real, a resposta for afirmativa, então, no tocante ao espaço virtual igual deverá ser.

Todavia, se, em relação ao espaço real, a resposta for negativa, que fundamento ético justificará a invasão no espaço virtual?

Situação estranha

De início, há de se pensar que as novas tecnologias da comunicação criaram um embaraço entre o que é real e o que é virtual. No mundo anterior às tecnologias da informação, o real era o espaço no qual transitávamos e o virtual dizia respeito ao que imaginávamos. No mundo atual, porém, é tão real o que "virtualizamos", mediante as "ferramentas" tecnológicas, quanto o que vivenciamos na cena do cotidiano físico. Se não levarmos em conta essa mutação, colocaremos em sério risco todas as árduas conquistas para as quais dedicamos séculos de luta. O princípio é claro: a privacidade no espaço real é tão indevassável quanto aquela a ser preservada no espaço virtual. Para tanto, analisemos.

No espaço real, um cidadão qualquer tem a intenção de praticar um ato delituoso. Cabe à polícia, com seus mecanismos de inteligência, antecipar-se ou apresentar-se à cena do delito em tempo hábil, seja para impedir, seja para, adiante, prender o criminoso. Ora, no espaço virtual, o princípio há de ser o mesmo. O Orkut, por exemplo, é um amplo portal para qualquer rastreamento de qualquer policial que deseje encontrar "páginas indevidas" (ou suspeitas). Então, que faça suas investigações pessoais. Não é preciso, para esse fim, quebrar a inviolabilidade do provedor.

Se qualquer cidadão pode ter acesso a páginas suspeitas sem a menor obstrução, por que a polícia não faz o mesmo sem ter de recorrer a delações impostas a provedores? Assim como a polícia faz ronda nas ruas, faça-a também na internet. Muito antes de a questão ocupar matérias na mídia, usuários do Orkut já haviam identificado páginas de pedofilia, mensagens pró-nazismo e outras aberrações. Como, portanto, entidades responsáveis pela segurança pública não rastrearam e, por conta própria, não iniciaram investigações? No mínimo, a situação é estranha. Aliás, segundo minha avaliação, é mais fácil a polícia, sem restrição na rede, identificar pessoas inclinadas a práticas criminosas do que a mesma polícia sair pelas ruas, a esmo, para tentar encontrar marginais.

Coibir, não, e sim, agir

Confesso que a defesa pelo controle (censura) de páginas ou publicações na rede, para mim, soa como algo revestido de dubiedade. Se eu fosse agente de segurança pública, preferiria a defesa pela total liberdade de expressão no espaço virtual. A certeza dessa preservação, na condição de policial, dar-me-ia amplo espectro de uma parcela populacional, disposta à promoção de atos ilegais, o que me propiciaria a decisão de providências inibidoras dos delitos. O que, portanto, me causa espanto é o silêncio da mídia quanto a essa questão. A quem, verdadeiramente, interessa obstruir em lugar de liberar?

Por outra: o que será mais difícil? Identificar, nos milhares de cidades das centenas de milhares de ruas, um potencial indivíduo, pronto para uma ação criminosa, ou, numa página do Orkut (ou site), encontrar uma rede de "deformados", sedentos por tráfico de coisas horripilantes? Volto a enfatizar: eu, como agente da segurança pública, adoraria a máxima e livre exposição de tudo. Da liberdade de expressão, eu colheria itinerários, com informações seguras, que me levariam à identificação rápida de todos aqueles que estivessem predispostos a ações criminosas.

Sinceramente, não consigo compreender as razões logísticas (ou estratégicas) daqueles que erguem "bandeiras" contra a liberdade propiciada pelas novas tecnologias da informação. Ou será, perversamente pensando, que as autoridades públicas não desejam, exatamente, a exposição dos delitos a fim de não serem cobradas pela sua inoperância? Não sei. É apenas uma tentativa de refletir sobre algo que abriga um conteúdo um tanto nebuloso. Espero que leitores atentos colaborem com o propósito da elucidação.

Em defesa da plena liberação, recordo que redes de criminosos foram interceptadas por conta da ausência de restrição. Quantas mais poderão ser identificadas ante as restrições que as conduzem, agora, à clandestinidade? Quem puder esclarecer que se apresente. Prometo ter a melhor acolhida a quaisquer réplicas bem fundamentadas. De resto, cabe compreender que a ação adequada não deve ser aquela que coíbe o potencial da nova "ferramenta tecnológica", e sim, a atuação devida dos setores de inteligência contra indivíduos ou grupos de infratores.

* Ivo Lucchesi é ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ).

Liberdade de expressão: Notícias de uma greve particular

Em audiência de conciliação no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da capital, realizada no dia 13 de agosto, um acordo entre as entidades representativas da polícia civil do estado de São Paulo e o governo suspendeu a greve da categoria até quarta-feira, dia 20, quando a administração deverá apresentar propostas de solução para o impasse.

A paralisação, que durou somente sete horas (das 8h às 15h do mesmo dia 13), seria resultado da ausência de diálogo do governo sobre diversas demandas da categoria, como reajustes salariais, eleição direta para a cargo de delegado-geral e transferência de postos de trabalho somente pela vontade do policial ou promoção, e não por determinação de superiores.

A mediação do conflito pelo Poder Judiciário tem benefícios evidentes, como sistematizar e tornar mais precisas as propostas de ambos os lados, orientar para o acordo, além de estimular o diálogo, antes inexistente. No entanto, mesmo que “judicializar” o conflito o torne “oficialmente público”, seu confinamento a uma sala do TRT inevitavelmente afasta – ainda mais –do debate a sociedade civil interessada.

Violação de direitos

Dizemos “ainda mais” porque não só na quinta-feira (14/08) – quando a delegada Bárbara Travassos, plantonista do 1º Distrito Policial de Diadema, foi impedida pelo delegado seccional da cidade, Ivaney Cayres de Souza, de estampar em sua roupa adesivos “pró-greve” –, mas especialmente no dia 2 de agosto, um “vídeo-protesto” das entidades representativas da polícia civil sobre a paralisação teve sua veiculação em TV proibida por decisão judicial, sob o fundamento de que causaria pânico na população.

De fato, a liberdade de expressão (como todos os direitos) não é uma garantia absoluta. As hipóteses de seu abuso estão contidas no art. 16, I da Lei de Imprensa (causar “alarma social”) e no parágrafo 4º do art. 13 do Pacto de San José da Costa Rica (colocar em risco a “segurança nacional” ou a “ordem pública”). E, no caso de greve, o uso da liberdade de expressão para “persuadir ou aliciar os trabalhadores a aderirem à greve” está condicionado ao “emprego de meios pacíficos” e a não “violar ou constranger os direitos e garantias fundamentais de outrem' (art. 6º da Lei 7.783/89).

Porém, no conflito entre o aventado abuso da liberdade de expressão pela possível provocação de “perturbação da ordem pública ou alarma social” e o direito fundamental da entidade de comunicar sua insatisfação em relação à ausência de diálogo com o governo do Estado (art. 13 do Pacto de San José da Costa Rica; art. 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos; art. 5º, incisos IX e XIV da Constituição Federal de 1988), deve prevalecer este último, visto que os danos ao debate democrático e à livre circulação de idéias na esfera pública, causados pela proibição da expressão e do fomento de um debate público sobre temas de suma importância à sociedade, são claramente maior violação de direitos fundamentais do que aquele gerado pela (deveras improvável) possibilidade da ocorrência de um alarma social.

Espaço aberto e gratuito

Em contrário, a veiculação do vídeo (ver aqui), que contém três informações claras e importantes – como dificuldade ou ausência de diálogo das entidades de classe com o governo do Estado, baixos salários da polícia civil e possibilidade de greve –, mais provavelmente geraria um aumento do debate e da conscientização da opinião pública a respeito desses problemas do que uma perturbação da ordem ou alarma social.

Enfim, o que esse caso revela são duas importantes questões a serem enfrentadas pelos defensores da liberdade de expressão, dos direitos da comunicação e do aumento da participação e da qualidade do debate público no Brasil: primeiramente, o fenômeno da “judicialização da política” não pode operar por uma supressão do debate, proibindo sua veiculação na grande mídia e tornando-o assunto somente de experts do Judiciário e de representantes legais das partes diretamente envolvidas. Isso configura claramente uma violação de direitos de comunicação da sociedade civil interessada.

Em segundo lugar, a específica proibição do vídeo revela a necessidade (e urgência) da existência de um espaço aberto, publicamente regulamentado e gratuito na televisão brasileira para a livre manifestação de cidadãos e entidades de classe que queiram fomentar debates públicos a respeito de questões relevantes à sociedade (sujeitos, obviamente, aos limites da liberdade de expressão e dos direitos de comunicação).

Enfraquecimento do debate público

Isso, possivelmente, levará a um gradativo uso comedido e ponderado da liberdade de expressão dos interessados, que não precisarão pagar grandes quantias para fomentar um debate na mídia (noticiou-se que as entidades representativas da polícia civil teriam gasto R$ 300 mil para veicular o vídeo em horários comerciais da Record, Bandeirantes e Globo), ou criar vídeos ou imagens com o apelo visual do referido, ainda que não se tenha configurado um excesso da liberdade de expressão.

Esses relatos e considerações sobre o caso da paralisação da polícia civil demonstram como o Estado e a mídia televisiva ainda parecem trabalhar numa lógica de enfraquecimento do debate público sobre questões relevantes à sociedade, o que é suficiente para podermos afirmar: estamos diante de “notícias de uma greve particular”.

* Vitor Souza Lima Blotta é advogado, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP e mestrando em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP

Imprensa em MG: O empastelamento do Novo Jornal

O dia 14 de agosto de 2008, véspera do feriado religioso dedicado à padroeira de Minas Gerais, bem que poderia entrar para a história como o marco inicial da censura oficial à internet no Estado. Às três da tarde, acessei o site do Novo Jornal, única publicação diária mineira que publica notícias contrárias ao governo Aécio Neves. Em vez da página habitual, lia-se ali, em letras garrafais sobre o desenho de uma lente daquele tipo usado por Sherlock Holmes, o seguinte:

“Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Esta página foi suspensa por medida cautelar judicial e o conteúdo do site é objeto de apuração por indícios de prática de crimes. Promotoria Estadual de Combate aos Crimes Cibernéticos.”

Dei a notícia, logo em seguida, em páginas de comentários dos sites Observatório da Imprensa e Comunique-se e nos blogs Tamos com Raiva, Fernando Massote e Luis Nassif, para ver qual seria a reação. Não foi bem uma surpresa, quando verifiquei, até o momento em que escrevo este artigo, que foi nenhuma. Se fosse uma censura à internet na China…

Luis Nassif vem-se destacando, nos últimos meses, pela análise destrutiva ao jornalismo tipo "assassinato de reputação" praticado pela revista Veja. Qual teria sido a reação a um empastelamento da principal revista da Editora Abril, por causa de notícias tidas como ofensivas, injuriosas ou caluniosas? Para o empastelamento virtual do Novo Jornal, as justificativas, destacadas pelo jornal O Tempo de sexta-feira (15/8, pág. 8) foram: “Acusado de calúnia, site 'Novo Jornal' sai da Internet. De acordo com Ministério Público, site difama autoridades estaduais e federais.”

Esse jornal pertence ao empresário e ex-deputado federal tucano (por 16 anos) Vitório Medioli, um italiano naturalizado brasileiro que chegou a Minas atraído pelos empreendimentos da Fiat no estado, e que hoje transporta os carros zero produzidos pela Fiat Automóveis para concessionárias do Brasil todo e de alguns países latino-americanos. É um aliado fiel do governador Aécio Neves e seu jornal foi o único a dar a notícia (pelo menos entre aqueles que pesquisei na internet).

Por coincidência, em julho passado, o Novo Jornal publicou denúncia envolvendo uma empresa do grupo Fiat e uma empresa do governo mineiro, a Codemig. Na véspera do empastelamento, ele voltou ao assunto, informando que o Ministério Público Estadual estaria apurando a denúncia. Ou seja, atirou no que viu, acertou no que não viu.

As exceções

O Tempo parece ter se limitado a ouvir o Ministério Público Estadual (embora afirme que procurou o dono do Novo Jornal, mas este não quis falar; eu procurei e não o achei), não buscando o contraditório em outras fontes, conforme as práticas do bom jornalismo. Talvez o presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais, Aloísio Moraes Martins, que foi um dos donos de um jornal alternativo na época da ditadura, o De Fato, tivesse o que falar. Mas o sindicato parece que só soube do ocorrido à noite, quando pôs em seu site uma informação apressada, para não passar por omisso. Informou apenas, em grandes letras:

“A Promotoria Estadual de Combate aos Crimes Cibernéticos do Ministério Público Estadual tirou do ar hoje, dia 14 de agosto, o site www.novojornal.com.br. Justificativa do MPE: 'Esta página foi suspensa por medida cautelar judicial e o conteúdo do site é objeto de apuração por indício de prática de crimes'.”

Mais sucinto, impossível.

O Tempo, em reportagem assinada por Renata Freitas, diz que o a exibição do site do Novo Jornal foi suspensa na tarde de quinta-feira (14)) pela "Operação Anonymus", organizada em conjunto entre a Promotoria Estadual de Combate aos Crimes Cibernéticos e a Polícia Militar. “A equipe cumpriu mandados de busca e apreensão no escritório do site que está sendo investigado por indícios de práticas de crimes, dentre eles, o de não ter identificação pelo responsável pelas notícias veiculadas. O processo corre sob sigilo judiciário.” (Meio ridículo o nome da operação, mas isso é o de menos.)

Diz ainda a reportagem que a promotoria recebeu representação criminal reclamando que desde 2007 o site “publicava matérias atentatórias à honra de autoridades públicas federais e estaduais. As matérias publicadas incluíam ataques ao procurador geral de Justiça, Jarbas Soares Junior, e principalmente ao governador Aécio Neves (PSDB)”.

Como se lembram, em novembro de 2007, o ex-vice-governador mineiro Walfrido dos Mares Guia se viu apanhado em denúncias de envolvimento com Marcos Valério, o operador do mensalão, e acabou pedindo demissão do Ministério das Relações Institucionais. O Novo Jornal, na imprensa mineira, à exceção do Tamos com Raiva e do blog do Fernando Massote, foi o único que destacou esse envolvimento. E não arrefeceu depois disso.

Canal de denúncia

Voltando a O Tempo. De acordo com o Ministério Público, diz o jornal, "instaurado o Procedimento Investigatório Criminal, constatou-se que não há identificação do responsável pelo site – que se intitula jornal, fato que fere frontalmente a Constituição Federal que prevê que é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato, além da Lei de Imprensa, que se aplica à internet".

Eu já havia criticado isso, em comentário no Observatório da Imprensa, em fevereiro de 2007. Preocupava-me não a falta do nome de um responsável, pois era fácil descobri-lo (tanto que o dono, Marco Aurélio Flores Carone, responde a alguns processos por causa do Novo Jornal), e isso não é impeditivo, em qualquer democracia verdadeira, para a existência de um jornal. “Ele teria mais credibilidade se quem escreve ali mostrasse a cara”, eu disse, comentando uma informação de Ivan Moraes.

Na época, o Novo Jornal dizia que o Conselho de Administração da Cemig havia decidido que a estatal participaria da RME Minas Energia Participações S/A, que teria assumido o pagamento da dívida do Grupo Globo. Não acho, eu acrescentei no meu comentário, "que o diretor do Novo Jornal precise se esconder, se estiver escrevendo com base em documentos e fatos e em opiniões bem fundamentadas, pois a Constituição lhe garante o direito de opinar. Não precisamos ainda mudar para Londres como fez o primeiro jornalista brasileiro, lá nos primórdios do século XIX, quando combatia sei lá o quê".

Pois é, pelo andar da carruagem, vamos ter que mudar para Pasárgada, como queria fazer Manuel Bandeira, pois lá somos amigos do rei…

Mas como se deu o empastelamento do Novo Jornal? Revela O Tempo:

“A promotoria ingressou com medida cautelar para impedir o funcionamento da página da internet enquanto ela estiver sob apuração, e obteve o domínio e exibição de página-aviso do Ministério Público Estadual (PME). Também houve a busca e apreensão de computadores.”

E não quer parar por aí. Quem quiser denunciar este artigo, tem como, ainda de acordo com o jornal de Medioli:

“A promotoria disse, ainda, que abriu um canal de denúncia, através do e-mail crimedigital@mp.mg.gov.br.”

Espero que não façam, pois eu não teria recursos financeiros para me defender. A justiça é cara e demorada.

Pernas para o ar…

O governo de Minas parece que tinha muita pressa para resolver essa questão com o Novo Jornal. Segundo O Tempo, “a Promotoria Estadual de Combate aos Crimes Cibernéticos foi criada em Belo Horizonte em 16 de julho deste ano. Com o crescente número de crimes praticados por usuários da rede, o MPE decidiu pela sua implantação. A promotoria atua como um órgão de suporte aos promotores de Justiça que atuam na área criminal e agiliza o atendimento às vítimas”.

E acrescenta, citando uma fonte identificada como Vanessa Fusco: “A estratégia é agir proativamente no enfrentamento desse tipo de crime, que vem crescendo principalmente com a chegada da banda larga às cidades do interior". E conclui: "Um projeto de autoria do senador Eduardo Azeredo (PSDB) prevê a tipificação da conduta dos crimes praticados na internet.”

Ah, Eduardo Azeredo! Aquele que era governador quando Walfrido dos Mares Guia era vice. Aquele do "mensalão mineiro". Faz sentido.

Mas por que não esperar que o presidente Lula, amigo e aliado de Aécio Neves na campanha para eleger o próximo prefeito de Belo Horizonte, sancione a lei de Azeredo, antes de fechar o Novo Jornal, com base numa lei da ditadura? Por que a pressa? Será que Lula não vai entrar nessa? É isso? Oh, dúvida!

Mas de uma coisa tenho certeza. A data escolhida para o massacre de São Bartolomeu… ops, do Novo Jornal, não poderia ser melhor. Véspera de um feriadão, pernas para o ar que ninguém é de ferro. E na segunda-feira, quando o pessoal voltar ao batente, é assunto velho, estará tudo esquecido. Eu mesmo, para redigir este artigo, telefonei para muita gente, inclusive o presidente do Sindicato de Jornalistas, e não consegui falar com ninguém. Deve ter acontecido a mesma coisa, na quinta (14), com a esforçada repórter de O Tempo.

* José de Souza Castro é jornalista de Belo Horizonte.