Há uma tragicomédia em cartaz no teatro da República. Encena-se um drama cujo enredo admite várias leituras, entre plausíveis e risíveis. Seria mesmo engraçado, não fosse o perigo que semeia no futuro do país, a forma como alguns personagens centrais ao drama vão nele encenando seus papéis. Em meio ao drama o cenário deixa exposto, ao espectador atento, o motivo deste artigo.
Para estudiosos das tecnologias da informação e comunicação (TIC) e das transformações que elas promovem, este drama expõe detalhes de como as TIC, suas estruturas e controles, se constituem em instrumentos cada vez mais essenciais ao exercício do poder e da ação política em sociedades contemporâneas. E também, como a mistura desta nova essência com velhos ranços e vícios pode ser explosiva e destruidora, quando dissolvida em virtualização eletrônica de crescente densidade e complexidade.
Esse potencial explosivo surge da virtualização mesma. Para entender como, é necessário refletir honestamente sobre o que é o virtual. Recorro ao filósofo Gilles Deleuze, para quem o virtual não é o irreal, mas a indistinguibilidade entre o real e o irreal. Com a virtualização, mentes se fragilizam. Tornam-se mais facilmente adestráveis, induzidas a crer no que convém. Até a se portar como se cressem, naquilo que lhes pareça ser o que lhes convém crer. Por medo ou violência simbólica, como no enredo do filme Matrix, lá pela escolha da pílula azul.
Começamos por analisar uma narrativa que de azul se urde neste drama. No dia em que comemoramos o 186º ano de independência do país, relativa ao império português, a revista semanal que aqui mais circula relatou:
“A revelação de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) espionou autoridades do governo, senadores da República e ministros do Supremo Tribunal Federal provocou uma vigorosa reação institucional contra o aparato estatal que vem violando de maneira acintosa a privacidade dos cidadãos. Na semana passada, uma reportagem de VEJA mostrou que o descontrole chegou ao extremo de agentes a serviço da Abin terem interceptado ilegalmente uma conversa telefônica entre o ministro Gilmar Mendes, presidente do STF, a mais alta corte de Justiça do país, e o senador Demóstenes Torres, um dos líderes oposicionistas no Congresso. O episódio só não se transformou numa grave crise graças à ação rápida e convincente das autoridades. (…) Por último, sob o comando de Lacerda, um delegado de polícia, servidores da agência foram pilhados ouvindo telefones de ministros de estado, ministros do Supremo, senadores, do presidente do Congresso e até de auxiliares próximos do presidente Lula. Dono de uma teoria muito pessoal sobre o caso, ele propaga que as gravações ilegais foram feitas por pessoas ligadas ao ex-banqueiro Daniel Dantas.”
Drible da vaca
Ex-banqueiro? Um claro e virtual enigma, no que se quer induzir com o "ex". Com que roupa esse personagem do drama vai se apresentar agora? Com as que ele tem encenado, "ex" parece só colar virtualmente. No comando da Brasil Telecom (BrT), por exemplo: quando o seu controle sobre a empresa que abocanhou a telefonia fixa de Brasília era oficial, era através de um arranjo societário em que seu banco detinha apenas 1% das ações; distribuídas com farto dinheiro público para viabilizar o tal arranjo, que, hoje, se alega desfeito. Ou não, já que outros envolvidos não entendem como, pois pedem à Justiça que esclareça. Mas, a qual Justiça?
"Ex-banqueiro" porque ele teria transferido as operações do seu banco (Opportunity) a um tal BNY Mellon, o que antes significa mais pendengas para sua folha corrida. Isso só se justificaria para evitar, nesse momento, um volume importante de saques, como opina o jornalista Paulo Amorim. Os fundos offshore do seu banco são tipicamente "D+30" ou "D+60" (uma ordem de saque é cumprida 30 ou 60 dias depois). Sua primeira prisão no Brasil foi em 8 de julho, portanto, o dia da "transferência" para o Mellon (8 de setembro) era "D+60". Nesse dia é publicada uma reportagem "investigativa", assinada pelo mesmo jornalista que vazou a operação Satiagraha.
A reportagem informa: "Dantas dribla Receita com recursos judiciais – Fisco só conseguirá analisar 670 das 24 mil operações financeiras do disco rígido do Opportunity apreendido pela PF em 2004". O personagem estaria conseguindo, com recursos judiciais e estratagemas na Justiça, livrar 23.330 investidores que aplicaram em seus fundos de forma ilegal. Ilegal porque esses fundos, uma das maquinações do fernandismo, são para "não residentes" e os investidores residem no Brasil. Ou seja, a tal "reportagem" pode ser lida, segundo Paulo Henrique Amorim, assim: "Alô, alô rapaziada, fique tranqüila. Não saque seu dinheiro do Opportunity. O Dantas deu o drible da vaca nos otários do Fisco."
E como seria esse drible da vaca? Em câmera lenta, pode-se acompanhar o lance a partir daquela apreensão, durante a operação Chacal. Tal operação investigava a massiva espionagem praticada por agentes da Kroll, multinacional de arapongagem pilhada em 2004 com e-mails privados de autoridades do governo. Nela o dono do Opportunity, e controlador da BrT, surgiu como mandante. Porém, sob o argumento de que Daniel Dantas talvez não fosse Daniel Dantas, a mais suprema ministra bloqueou, por mais de quatro anos, a coleta de provas nos discos apreendidos. Inclusive provas de crimes fiscais, que prescrevem em cinco anos. Um exemplo didático de virtualidade deleuziana.
Teoria e prática
As cenas com esse personagem dão vertigem, pois propagam virtualidades. No palco da CPI dos grampos, por exemplo, onde ele confirmou que responde a ação judicial pela contratação da Kroll, alegou que não foi ele o responsável: "Não contratei a Kroll, a Brasil Telecom contratou". Então, tá. Sem mais perguntas dos deputados. E se mais perguntas houvessem, outro habeas corpus havia para ali ele calar-se. Como já se calou alhures a justiça Britânica, e aqui desde sempre a mídia corportativa, sobre condenações por atos que incluem o de fraudar processo em que era réu, nas ilhas Caymann, com virtualizações que cá ele chama de "encruar". Lá, condenado em última instância, caso encerrado.
Aqui, caso aberto com a fonte de seus infames habeas corpus, frutos até de processo virtual (mas não eletrônico). A suprema fonte teria sido espionada e grampeada pela Abin! Tal é a teoria que se quer revelar, por acusação que é fruto duma fonte virtual (no sentido de oculta). Ninguém ouviu, viu, ou dá conta da realidade ou da origem do tal grampo. Nenhuma prova ou indício da gravação, de um diálogo que teve testemunhas. De cuja publicação mais se fartam os próprios "grampeados", pelo uso que depois fazem dela, para exorbitâncias e desatinos com fulcro em acusação tão açodada quanto vazia. Enquanto agentes da mídia se esgoelam para tentar colar o ônus da prova na acusada.
Dessa teoria – e prática – sobre o caso, as conseqüências pedem escrutínio. Começando pela autoria. O dono dessa teoria muito pessoal sobre o caso é um veterano parteiro de teorias muito pessoais obre casos semelhantes, também virtuais. Tal prática pode estar associada, nele e seus patrões, à síndrome da mosca azul, neles manifesta por confusões mentais. Confundem lucratividade com credibilidade, tiragem com coragem, etc. A narrativa acima mostrou que o descontrole chegou ao extremo desses agentes, a serviço de seus papéis no drama, terem confundido ilogicamente fato com boato, objetivo com subjetivo, acusação com prova, raciocínio com espasmo iracundo. A segunda tentativa de parir a teoria serviu de senha para um coro de leviandades, doutros atores. Mas os grampeados, esses não querem ir ao palco da CPI.
A verborragia só não se transformou numa grave crise intestinal, naqueles com mais de dois neurônios ativos, graças à ação freudiana do inconsciente nessas sumidades midiáticas: elas acharam útil adjetivar a reação de certas autoridades, como o fizeram. Num surto de fraqueza psicológica, traíram sua autoconfiança. Duvidaram que uma tiragem maior que milhão bastasse para ali firmar verdades. E disseram, então, que a vigorosa reação institucional de autoridades, a qual evitou grave crise, foi rápida e "convincente". Para quem? Se a performance dos atores no palco foi mesmo convincente para a platéia, não precisava dizer. Bastava ao leitor vê-la. Veja! Cadê o áudio? E se foi autogrampo?
Delação patriotada
Alguns talvez nunca vejam o final desse drama. Apenas a ele sucumbam, atônitos. Se essa teoria muito pessoal, erguida sobre fonte virtual em montanhas de tiragens reais, for mesmo só isso e não a verdade buscada, a trama midiática dos agentes decrépitos desse enredo seguirá pelo surreal, alimentada pela pílula azul de Matrix. Os "fartos documentos" que comprovariam a teoria nunca virão à tona, só mais forjas. Como nas outras teorias semelhantes, sobre contas de Lula em fundos offshore,sobre dólares de Fidel Castro para sua campanha, etc. Ou, como na pretensa "comprovação" da origem do suposto grampo, centro das atenções em vários momentos desse drama, provável armação do mesmo araponga privado (Jairo) que muitas vezes já trouxe o mesmo repórter e a mesma revista para "dentro do assunto".
Aquele na capa da edição 2027 da revista IstoÉ (Ambrósio), acusado de ser o agente da Abin que comandou a grampeagem de autoridades, não pertence aos quadros da Abin e nada comandou. Ex-servidor da Aeronáutica, esteve no SNI, do qual se aposentou em 1998, portanto antes da criação da Abin, em 1999. Desde que se aposentou, não participou de qualquer atividade da Abin, informa a sua Assessoria de Comunicação Social. Mas poderia ter perambulado por lá, ou pela delegacia de Protógenes Queiroz, insinua a "denúncia", enquanto sua participação na operação Satiagraha limitou-se à de classificar planilhas. Como se o Art. 4º do Código de Processo Penal não permitisse ao delegado, ou demandasse se boicotado, recrutar quem ele quisesse para lhe auxiliar nas investigações. Como se a lei 9.883/99 que criou a Abin, e instituiu o Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência) em 2002, não permitisse operações conjuntas com Abin, PF e outras forças.
Quanto a esse tipo de delação, ela poderia dar cadeira elétrica por traição, no país que seus autores nos vendem como modelo, se põe em risco a segurança do Estado. Aqui, talvez só grampo ou algema em banqueiro corruptor daria, se tal decrepitude correr solta, ao pôr em risco a blindagem paralegal do sottogoverno. Se alguém comandou ou não uma operação que teria produzido grampos, gravações que ninguém ouviu, viu ou delas dá conta, grampos cujo vazamento só beneficia a grampeados, e se para isso ele agiu usando ou não dependências da Abin ou da PF, a questão que cabe ao real (verdadeiro) jornalismo é: a serviço de quem, e por que, essa coisas se cogitam.
Agir de forma a que a ação pareça ter outra razão ou origem, até opostas, é tática bem manjada na espionagem e na política. Eficaz se executada na espuma das ondas de intrigas, efeito alcançável em massa com a pílula azul. Cabe então voltar ao enredo para mais detalhes. Alguns revelam como seus autores e atores presumem a imbecilidade do espectador que tome a cena ao pé da letra, ou como os agentes decrépitos envolvidos oferecem sua hipocrisia, àqueles na platéia que prefiram se embebedar com ela. Um exemplo: o prejuízo ao erário com o bloqueio dos discos rígidos, para a Rede Globo não é notícia; já o custo de 52 auxiliares para investigar esse e outros prejuízos, sim [Jornal Nacional, 10/9/2008].
Agentes decrépitos
Nos outros exemplos, essa presunçosa decrepitude pode ter chegado ao fundo do poço com a trama da maleta. Quem não está no pau-de-arara [14] quer saber se o dono da trama mentiu. Quando, em reunião na qual seu ex-funcionário chamou às falas o chefe de governo, o atual ministro da Defesa afirmou que a Abin possuía aparelhos para grampear celulares, mostrando nota fiscal do aparelho e acenando com a possibilidade de uma crise institucional, para que fosse afastado o diretor da Abin. Afirmação depois desmentida até pelo fabricante da exposta maleta, retrucado com intrigas de que o equipamento pode ser usado para grampo se acoplado a uma "extensão" própria a isso.
Assim foi descartado quem viabilizou, com cooperação institucional de praxe, a operação Satiagraha, para em seu lugar ser instalado um ex-funcionário do principal investigado. Este, banqueiro corruptor e "ex-"controlador da telefonia fixa de Brasília, e aquele, subordinado na BrT a quem foi flagrado na investigação tentando subornar a PF. Possíveis razões para aspas em "ex" serão adiante ventiladas, mas antes aquelas para o tal descarte. A nota fiscal e a intriga foram brandidas quando o supremo ministro de trânsito ferrado, em atropelosa audiência marcada por desrespeitosa intimidação pública, chamou o presidente da República às falas. Depois do descarte, a assombração da maleta foi lançada sobre a mídia, que a soçobrou sobre a platéia da pílula azul. Finalmente acordada, aos berros, para o fim da privacidade.
Cabe indagar, então, quem, além do banqueiro corruptor, ganha com essa trama da maleta. A Abin é o órgão de inteligência de um Estado cuja importância no mundo alcança novos patamares com a atual crise global. É o órgão de governo ao qual compete, num mundo sob o risco de colapso financeiro, energético, de recursos alimentares e outros naturais, missão essencial para a defesa dos interesses do nosso Estado. Na defesa do agronegócio, da Amazônia, do pré-sal, do urânio e outros recursos, num jogo que a História mostra como é sujo, traiçoeiro e cruel. Então, defende o quê um ministro da Defesa ao assim tratá-la? Faria sentido político se fosse a captura do seu comando, mas para quê?
Se a Abin é assim tratada por quem possa almejar seu comando, se um tal comando não hesita em esculhambá-la, acuá-la e acusá-la até em público, ao invés de protegê-la de traições e danosas exposições quando corruptos apaniguados se alvoroçam, assustados com um braço ainda sadio da Lei, se tão açodado escracho significa manietá-la em seu dever de espionar onde lhe caiba, de cooperar em investigações locais quando a ameaça percorre ramificações externas, se com ele a Abin desfaria sua missão primeira, antes lançada à lama do sottogoverno para defender-se como Kafka em tribunais virtuais, então, cabe indagar o quê, exatamente, tal personagem defende como ministro da Defesa.
* Pedro Antônio Dourado de Rezende é professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília, membro do Conselho do Instituto Brasileiro de Política e Direito de Informática, ex-membro do Conselho da Fundação Software Livre América Latina e do Comitê Gestor da Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-BR), entre junho de 2003 e fevereiro de 2006, como representante da Sociedade Civil. Para conhecer sua página pessoal, clique aqui