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Grampo, Dantas, Abin: Tragicomédia no teatro da República I

Há uma tragicomédia em cartaz no teatro da República. Encena-se um drama cujo enredo admite várias leituras, entre plausíveis e risíveis. Seria mesmo engraçado, não fosse o perigo que semeia no futuro do país, a forma como alguns personagens centrais ao drama vão nele encenando seus papéis. Em meio ao drama o cenário deixa exposto, ao espectador atento, o motivo deste artigo.

Para estudiosos das tecnologias da informação e comunicação (TIC) e das transformações que elas promovem, este drama expõe detalhes de como as TIC, suas estruturas e controles, se constituem em instrumentos cada vez mais essenciais ao exercício do poder e da ação política em sociedades contemporâneas. E também, como a mistura desta nova essência com velhos ranços e vícios pode ser explosiva e destruidora, quando dissolvida em virtualização eletrônica de crescente densidade e complexidade.

Esse potencial explosivo surge da virtualização mesma. Para entender como, é necessário refletir honestamente sobre o que é o virtual. Recorro ao filósofo Gilles Deleuze, para quem o virtual não é o irreal, mas a indistinguibilidade entre o real e o irreal. Com a virtualização, mentes se fragilizam. Tornam-se mais facilmente adestráveis, induzidas a crer no que convém. Até a se portar como se cressem, naquilo que lhes pareça ser o que lhes convém crer. Por medo ou violência simbólica, como no enredo do filme Matrix, lá pela escolha da pílula azul.

Começamos por analisar uma narrativa que de azul se urde neste drama. No dia em que comemoramos o 186º ano de independência do país, relativa ao império português, a revista semanal que aqui mais circula relatou:

“A revelação de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) espionou autoridades do governo, senadores da República e ministros do Supremo Tribunal Federal provocou uma vigorosa reação institucional contra o aparato estatal que vem violando de maneira acintosa a privacidade dos cidadãos. Na semana passada, uma reportagem de VEJA mostrou que o descontrole chegou ao extremo de agentes a serviço da Abin terem interceptado ilegalmente uma conversa telefônica entre o ministro Gilmar Mendes, presidente do STF, a mais alta corte de Justiça do país, e o senador Demóstenes Torres, um dos líderes oposicionistas no Congresso. O episódio só não se transformou numa grave crise graças à ação rápida e convincente das autoridades. (…) Por último, sob o comando de Lacerda, um delegado de polícia, servidores da agência foram pilhados ouvindo telefones de ministros de estado, ministros do Supremo, senadores, do presidente do Congresso e até de auxiliares próximos do presidente Lula. Dono de uma teoria muito pessoal sobre o caso, ele propaga que as gravações ilegais foram feitas por pessoas ligadas ao ex-banqueiro Daniel Dantas.”

Drible da vaca

Ex-banqueiro? Um claro e virtual enigma, no que se quer induzir com o "ex". Com que roupa esse personagem do drama vai se apresentar agora? Com as que ele tem encenado, "ex" parece só colar virtualmente. No comando da Brasil Telecom (BrT), por exemplo: quando o seu controle sobre a empresa que abocanhou a telefonia fixa de Brasília era oficial, era através de um arranjo societário em que seu banco detinha apenas 1% das ações; distribuídas com farto dinheiro público para viabilizar o tal arranjo, que, hoje, se alega desfeito. Ou não, já que outros envolvidos não entendem como, pois pedem à Justiça que esclareça. Mas, a qual Justiça?

"Ex-banqueiro" porque ele teria transferido as operações do seu banco (Opportunity) a um tal BNY Mellon, o que antes significa mais pendengas para sua folha corrida. Isso só se justificaria para evitar, nesse momento, um volume importante de saques, como opina o jornalista Paulo Amorim. Os fundos offshore do seu banco são tipicamente "D+30" ou "D+60" (uma ordem de saque é cumprida 30 ou 60 dias depois). Sua primeira prisão no Brasil foi em 8 de julho, portanto, o dia da "transferência" para o Mellon (8 de setembro) era "D+60". Nesse dia é publicada uma reportagem "investigativa", assinada pelo mesmo jornalista que vazou a operação Satiagraha.

A reportagem informa: "Dantas dribla Receita com recursos judiciais – Fisco só conseguirá analisar 670 das 24 mil operações financeiras do disco rígido do Opportunity apreendido pela PF em 2004". O personagem estaria conseguindo, com recursos judiciais e estratagemas na Justiça, livrar 23.330 investidores que aplicaram em seus fundos de forma ilegal. Ilegal porque esses fundos, uma das maquinações do fernandismo, são para "não residentes" e os investidores residem no Brasil. Ou seja, a tal "reportagem" pode ser lida, segundo Paulo Henrique Amorim, assim: "Alô, alô rapaziada, fique tranqüila. Não saque seu dinheiro do Opportunity. O Dantas deu o drible da vaca nos otários do Fisco."

E como seria esse drible da vaca? Em câmera lenta, pode-se acompanhar o lance a partir daquela apreensão, durante a operação Chacal. Tal operação investigava a massiva espionagem praticada por agentes da Kroll, multinacional de arapongagem pilhada em 2004 com e-mails privados de autoridades do governo. Nela o dono do Opportunity, e controlador da BrT, surgiu como mandante. Porém, sob o argumento de que Daniel Dantas talvez não fosse Daniel Dantas, a mais suprema ministra bloqueou, por mais de quatro anos, a coleta de provas nos discos apreendidos. Inclusive provas de crimes fiscais, que prescrevem em cinco anos. Um exemplo didático de virtualidade deleuziana.

Teoria e prática

As cenas com esse personagem dão vertigem, pois propagam virtualidades. No palco da CPI dos grampos, por exemplo, onde ele confirmou que responde a ação judicial pela contratação da Kroll, alegou que não foi ele o responsável: "Não contratei a Kroll, a Brasil Telecom contratou". Então, tá. Sem mais perguntas dos deputados. E se mais perguntas houvessem, outro habeas corpus havia para ali ele calar-se. Como já se calou alhures a justiça Britânica, e aqui desde sempre a mídia corportativa, sobre condenações por atos que incluem o de fraudar processo em que era réu, nas ilhas Caymann, com virtualizações que cá ele chama de "encruar". Lá, condenado em última instância, caso encerrado.

Aqui, caso aberto com a fonte de seus infames habeas corpus, frutos até de processo virtual (mas não eletrônico). A suprema fonte teria sido espionada e grampeada pela Abin! Tal é a teoria que se quer revelar, por acusação que é fruto duma fonte virtual (no sentido de oculta). Ninguém ouviu, viu, ou dá conta da realidade ou da origem do tal grampo. Nenhuma prova ou indício da gravação, de um diálogo que teve testemunhas. De cuja publicação mais se fartam os próprios "grampeados", pelo uso que depois fazem dela, para exorbitâncias e desatinos com fulcro em acusação tão açodada quanto vazia. Enquanto agentes da mídia se esgoelam para tentar colar o ônus da prova na acusada.

Dessa teoria – e prática – sobre o caso, as conseqüências pedem escrutínio. Começando pela autoria. O dono dessa teoria muito pessoal sobre o caso é um veterano parteiro de teorias muito pessoais obre casos semelhantes, também virtuais. Tal prática pode estar associada, nele e seus patrões, à síndrome da mosca azul, neles manifesta por confusões mentais. Confundem lucratividade com credibilidade, tiragem com coragem, etc. A narrativa acima mostrou que o descontrole chegou ao extremo desses agentes, a serviço de seus papéis no drama, terem confundido ilogicamente fato com boato, objetivo com subjetivo, acusação com prova, raciocínio com espasmo iracundo. A segunda tentativa de parir a teoria serviu de senha para um coro de leviandades, doutros atores. Mas os grampeados, esses não querem ir ao palco da CPI.

A verborragia só não se transformou numa grave crise intestinal, naqueles com mais de dois neurônios ativos, graças à ação freudiana do inconsciente nessas sumidades midiáticas: elas acharam útil adjetivar a reação de certas autoridades, como o fizeram. Num surto de fraqueza psicológica, traíram sua autoconfiança. Duvidaram que uma tiragem maior que milhão bastasse para ali firmar verdades. E disseram, então, que a vigorosa reação institucional de autoridades, a qual evitou grave crise, foi rápida e "convincente". Para quem? Se a performance dos atores no palco foi mesmo convincente para a platéia, não precisava dizer. Bastava ao leitor vê-la. Veja! Cadê o áudio? E se foi autogrampo?

Delação patriotada

Alguns talvez nunca vejam o final desse drama. Apenas a ele sucumbam, atônitos. Se essa teoria muito pessoal, erguida sobre fonte virtual em montanhas de tiragens reais, for mesmo só isso e não a verdade buscada, a trama midiática dos agentes decrépitos desse enredo seguirá pelo surreal, alimentada pela pílula azul de Matrix. Os "fartos documentos" que comprovariam a teoria nunca virão à tona, só mais forjas. Como nas outras teorias semelhantes, sobre contas de Lula em fundos offshore,sobre dólares de Fidel Castro para sua campanha, etc. Ou, como na pretensa "comprovação" da origem do suposto grampo, centro das atenções em vários momentos desse drama, provável armação do mesmo araponga privado (Jairo) que muitas vezes já trouxe o mesmo repórter e a mesma revista para "dentro do assunto".

Aquele na capa da edição 2027 da revista IstoÉ (Ambrósio), acusado de ser o agente da Abin que comandou a grampeagem de autoridades, não pertence aos quadros da Abin e nada comandou. Ex-servidor da Aeronáutica, esteve no SNI, do qual se aposentou em 1998, portanto antes da criação da Abin, em 1999. Desde que se aposentou, não participou de qualquer atividade da Abin, informa a sua Assessoria de Comunicação Social. Mas poderia ter perambulado por lá, ou pela delegacia de Protógenes Queiroz, insinua a "denúncia", enquanto sua participação na operação Satiagraha limitou-se à de classificar planilhas. Como se o Art. 4º do Código de Processo Penal não permitisse ao delegado, ou demandasse se boicotado, recrutar quem ele quisesse para lhe auxiliar nas investigações. Como se a lei 9.883/99 que criou a Abin, e instituiu o Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência) em 2002, não permitisse operações conjuntas com Abin, PF e outras forças.

Quanto a esse tipo de delação, ela poderia dar cadeira elétrica por traição, no país que seus autores nos vendem como modelo, se põe em risco a segurança do Estado. Aqui, talvez só grampo ou algema em banqueiro corruptor daria, se tal decrepitude correr solta, ao pôr em risco a blindagem paralegal do sottogoverno. Se alguém comandou ou não uma operação que teria produzido grampos, gravações que ninguém ouviu, viu ou delas dá conta, grampos cujo vazamento só beneficia a grampeados, e se para isso ele agiu usando ou não dependências da Abin ou da PF, a questão que cabe ao real (verdadeiro) jornalismo é: a serviço de quem, e por que, essa coisas se cogitam.

Agir de forma a que a ação pareça ter outra razão ou origem, até opostas, é tática bem manjada na espionagem e na política. Eficaz se executada na espuma das ondas de intrigas, efeito alcançável em massa com a pílula azul. Cabe então voltar ao enredo para mais detalhes. Alguns revelam como seus autores e atores presumem a imbecilidade do espectador que tome a cena ao pé da letra, ou como os agentes decrépitos envolvidos oferecem sua hipocrisia, àqueles na platéia que prefiram se embebedar com ela. Um exemplo: o prejuízo ao erário com o bloqueio dos discos rígidos, para a Rede Globo não é notícia; já o custo de 52 auxiliares para investigar esse e outros prejuízos, sim [Jornal Nacional, 10/9/2008].

Agentes decrépitos

Nos outros exemplos, essa presunçosa decrepitude pode ter chegado ao fundo do poço com a trama da maleta. Quem não está no pau-de-arara [14] quer saber se o dono da trama mentiu. Quando, em reunião na qual seu ex-funcionário chamou às falas o chefe de governo, o atual ministro da Defesa afirmou que a Abin possuía aparelhos para grampear celulares, mostrando nota fiscal do aparelho e acenando com a possibilidade de uma crise institucional, para que fosse afastado o diretor da Abin. Afirmação depois desmentida até pelo fabricante da exposta maleta, retrucado com intrigas de que o equipamento pode ser usado para grampo se acoplado a uma "extensão" própria a isso.

Assim foi descartado quem viabilizou, com cooperação institucional de praxe, a operação Satiagraha, para em seu lugar ser instalado um ex-funcionário do principal investigado. Este, banqueiro corruptor e "ex-"controlador da telefonia fixa de Brasília, e aquele, subordinado na BrT a quem foi flagrado na investigação tentando subornar a PF. Possíveis razões para aspas em "ex" serão adiante ventiladas, mas antes aquelas para o tal descarte. A nota fiscal e a intriga foram brandidas quando o supremo ministro de trânsito ferrado, em atropelosa audiência marcada por desrespeitosa intimidação pública, chamou o presidente da República às falas. Depois do descarte, a assombração da maleta foi lançada sobre a mídia, que a soçobrou sobre a platéia da pílula azul. Finalmente acordada, aos berros, para o fim da privacidade.

Cabe indagar, então, quem, além do banqueiro corruptor, ganha com essa trama da maleta. A Abin é o órgão de inteligência de um Estado cuja importância no mundo alcança novos patamares com a atual crise global. É o órgão de governo ao qual compete, num mundo sob o risco de colapso financeiro, energético, de recursos alimentares e outros naturais, missão essencial para a defesa dos interesses do nosso Estado. Na defesa do agronegócio, da Amazônia, do pré-sal, do urânio e outros recursos, num jogo que a História mostra como é sujo, traiçoeiro e cruel. Então, defende o quê um ministro da Defesa ao assim tratá-la? Faria sentido político se fosse a captura do seu comando, mas para quê?

Se a Abin é assim tratada por quem possa almejar seu comando, se um tal comando não hesita em esculhambá-la, acuá-la e acusá-la até em público, ao invés de protegê-la de traições e danosas exposições quando corruptos apaniguados se alvoroçam, assustados com um braço ainda sadio da Lei, se tão açodado escracho significa manietá-la em seu dever de espionar onde lhe caiba, de cooperar em investigações locais quando a ameaça percorre ramificações externas, se com ele a Abin desfaria sua missão primeira, antes lançada à lama do sottogoverno para defender-se como Kafka em tribunais virtuais, então, cabe indagar o quê, exatamente, tal personagem defende como ministro da Defesa.

* Pedro Antônio Dourado de Rezende é professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília, membro do Conselho do Instituto Brasileiro de Política e Direito de Informática, ex-membro do Conselho da Fundação Software Livre América Latina e do Comitê Gestor da Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-BR), entre junho de 2003 e fevereiro de 2006, como representante da Sociedade Civil. Para conhecer sua página pessoal, clique aqui

A ilusão de controle na internet

A imprensa tradicional é um instrumento de organização e mobilização de redes sociais. Mas funciona praticamente em mão única, mesmo quando utiliza as novas tecnologias de comunicação do século 21. Para alguns analistas, a imprensa inventada por Gutenberg parece deslocada na época contemporânea porque tenta se apropriar da amplitude potencial da internet sem abrir mão dos controles possibilitados pela mídia impressa e pela televisão não-interativa, que não se abrem para a intervenção do público. Aliás, a própria idéia de "público" só faz sentido no teatro, no cinema e nas mídias não-interativas, uma vez que quando o sistema se abre para a co-autoria, os papéis acabam se misturando em algum ponto do processo. O leitor se torna co-editor.

Mesmo que determinado movimento seja iniciado em um blog, de autoria definida, quando a interatividade se expande a mensagem inicial passa por um processo de mutações constantes, submetendo-se ao arbítrio de todos que tenham acesso a ela. A imprensa tradicional não parece preparada para essa democracia toda. Afinal, parte do seu negócio se baseia na promessa de influenciar a fatia mais opinativa da população, aquela que supostamente é mais bem informada e mais articulada, e isso implica assegurar certo controle sobre a agenda desse "público".

Os blogs de jornais e revistas e os portais de emissoras de televisão tentam conter a interatividade em determinado círculo. Quanto mais próximo do núcleo de opinião se situar o limite desse círculo, mais restrita será a participação do "público" e mais distante estará essa mídia das potencialidades das novas tecnologias.

Idéias inovadoras

Acontece que a sociedade está mudando. Segundo a Technorati, que monitora conteúdos postados em blogs de vários idiomas, o explosivo crescimento do número de blogs em todo o mundo está sendo acompanhado por um grande amadurecimento no uso dessa ferramenta, o que leva ao surgimento de mídias alternativas de grande reputação, algumas das quais comparáveis a grandes jornais.

A característica principal desses veículos é que eles nasceram como pontos de informação e debate, passando por um período de funcionamento caótico, e acabam se consolidando como fontes de informação confiável e de qualidade para quem aprende a selecionar.

Esse fenômeno está alterando o modo como as pessoas se informam e partilham suas convicções e suas demandas. Alguns blogs criados por empresas como ferramentas de relacionamento com clientes evoluíram para plataformas de captação de opiniões sobre produtos e serviços, seleção de futuros colaboradores e fonte de idéias inovadoras. Mas essa evolução exige que a empresa esteja aberta a certos riscos, como a amplificação de queixas, que de outra forma ficariam localizadas, e o questionamento de seus processos de comunicação com o mercado.

Oportunidade perdida

Difícil imaginar que uma empresa tradicional de comunicação se arrisque a abrir completamente seus conteúdos para comentários e contribuições de leitores, sem interferência de qualquer ordem. Isso poderia subverter a hierarquia que determina os processos de captação e edição de notícias, fazendo com que parte do material jornalístico acabe adquirindo formas e significados diferentes daqueles que orientaram a pauta. No entanto, isso já está acontecendo de certa forma, quando as redes de relacionamento se apropriam de notícias de jornais, revistas e da TV e as reproduzem com novas abordagens.

Dito de outra forma, o que se pode constatar é que, por mais que resistam à avalancha de mudanças, os meios tradicionais acabam perdendo o controle sobre o destino do conteúdo que produzem, quando eles caem no ambiente caótico das redes. Se tivessem uma estratégia de engajamento real nas novas tendências, abandonando a ilusão do controle, seriam a vanguarda da comunicação no século 21, agregando à reputação construída no século passado a confiança de uma relação mais aberta com a sociedade.

* Luciano Martins Costa é jornalista.

A TV que faz o que quer e bem entende

Quem fiscaliza a TV? Por que uma novela de 21h, cujo horário tem uma classificação específica, volta a ser repetida à tarde, quando boa parte das crianças e adolescentes de todas as idades está em frente à TV?

Prova de que não existe mesmo limite nessa questão de classificação de horário. O exemplo, hoje, é a volta da novela de Manoel Carlos Mulheres Apaixonadas, da TV Globo, dirigida por Ricardo Waddington e veiculada pela primeira vem em 2003.

Escrito para um público adulto, o folhetim traz um enredo complexo, narrações reflexivas, temáticas violentas, com ataques físicos e morais entre marido e mulher, ciúmes além dos limites, traições entre casais e, o que não poderia faltar, cenas de sexo quase explícitas entre os personagens Luciana (Camila Pitanga), estudante de medicina, e o médico César (José Mayer).

Mais uma vez, a sociedade se curva diante do poder da Vênus Prateada e nada reclama ou questiona. Afinal, se considerarmos que a novela é para os brasileiros a mesma representação que o cinema tem para os americanos, entenderemos que esta obra (aberta) é um canal indutor de conceitos, formas e modo de ser de uma sociedade.

“Nada demais”

Se não questionamos, concordamos com isso. Quando deixamos nossas crianças e adolescentes assistirem este tipo de novela, permitimos que elas vivenciem determinadas situações que podem ser postergadas do universo infanto-juvenil.

Temáticas que podem ser vistas em outro momento de maturidade, absorção e reflexão sobre questões que fazem parte integrante de uma estrutura societária, mas que para as elas são desnecessárias neste primeiro momento.

Ao se veicular o folhetim no horário das 21 horas, pai e mãe têm a opção de recomendar a seus filhos menores de 12 anos que não assistam a tais programações. Contudo, na medida em que esta programação é apresentada às 15 horas, deixa de ser "algo demais" para ser "algo comum" e, conseqüentemente, aceita como "natural", "nada demais" para crianças e adolescentes assistirem. Afinal, é uma programação liberada para ser veiculada às três horas da tarde!

Pais pedem socorro

Hoje, estamos consolidando mais uma vez a morte de uma nova sociedade que vai emergir a partir dessas crianças que apreendem conceitos, regras, normas e forma de ver a vida a partir da maior janela de comunicação: a televisão.

Dentro dela, a construção de novelas que em sua maioria emburrecem, engessam e transformam pessoas em meros espectadores de uma vida sem sentido, ilusória e imaginária. Algo que no cotidiano de muitas pessoas singulares está totalmente fora do contexto.

Repugnantes, também, são as atitudes dos que deixam que isso passe desapercebidamente. Muitos pais estão pedindo socorro e a sociedade de amanhã vai agradecer por isso.

* Teresa Leonel Rocha Leonel é socióloga e jornalista, especialista no Ensino da Comunicação Social, professora do curso de Jornalismo em Multimeios da Universidade do Estado da Bahia e Faculdade São Francisco de Juazeiro (BA)

PL-29: Conteúdo nacional e mais diversidade

O  substitutivo do deputado Jorge Bittar (PT-RJ) ao projeto de lei nº 29/07, que estabelece novas regras para a TV por assinatura e avança no processo de convergência tecnológica, ao abrir a possibilidade de ingresso das operadoras de telefonia fixa e móvel no negócio do audiovisual pago domiciliar segue causando grande polêmica e provocando discussões entre os agentes do setor, arrastando sua tramitação no Congresso.

O ponto mais polêmico da iniciativa é o que aumenta para 25% o número de canais nacionais na grade de programação da televisão paga, através de um sistema de cotas. A proposta amplia a produção de conteúdo nacional, fomentando as produtoras do país e abrindo espaço para novos agentes culturais, gerando maior diversidade e pluralidade na programação, o que deve suscitar diversas conseqüências positivas para o consumidor.

Maior oferta

Hoje, a TV paga é assistida por cerca de 8% da população brasileira, enquanto nos Estados Unidos, por exemplo, é vista por mais de 80% dos lares. O motivo do pouco acesso é o preço elevado e a escassez de conteúdos nacionais, num quadro de falta de estrutura e investimento no setor, pois no Brasil se paga até próximo de R$ 7,00 reais ao mês por cada canal, enquanto na Argentina o custo é de R$ 1,00. Existe uma enorme concentração na área, onde a pluralidade é comprometida, de forma que cabe às Organizações Globo e seus canais Globosat o preenchimento da grade com conteúdo nacional.

Outra grande reclamação dos consumidores da televisão paga é o excesso de repetição de programas, o que, por si só, já representa falta de diversidade na programação. Um pequeno exemplo de reprise é o seriado Friends, que ainda está no ar, com três exibições diárias, mesmo a atração tendo acabado em 2004. O projeto de lei abre possibilidade para outros agentes, juntamente com produtoras, realizarem audiovisual, aumentando o conteúdo nacional. A Net e a Sky, respectivamente operadoras de TV a cabo e por satélite, têm atualmente na sua programação poucos canais com material nacional.

No entanto, a Associação Brasileira da TV por Assinatura (ABTA) é contra a medida, alegando que as cotas (referindo-se aos 25% de canais nacionais) não irão fomentar a produção local, representando, sim, proteção e reserva de mercado, o que iria aumentar o valor mensal da assinatura. Logicamente, a ABTA luta por seus interesses, defendendo as programadoras e operadoras. Na realidade, a lei poderia acarretar maior oferta e isso, logicamente, ocasionaria uma diminuição no preço da assinatura.

Uma exclusão programada

Outra argumentação da ABTA é com relação à qualidade da programação, salientando que, com os 25% de canais nacionais, seria difícil manter o padrão atual dos produtos exibidos. Contudo, a qualidade já está comprometida, com fatores como as intermináveis repetições de seriados e filmes. A ABTA afirma que apóia a produção de conteúdo local, mas é contra o sistema de cotas e tem manifestado sua opinião através de spots, nas emissoras da televisão aberta, e por meio do sítio Liberdade na TV.

O projeto de lei incomoda a ABTA porque abre espaço para novos agentes culturais, podendo diminuir o preço da assinatura e aumentar a oferta de bens simbólicos. Novamente o interesse privado, de concentração de recursos humanos e culturais, tenta conduzir o debate em um setor de enorme repercussão pública. Caso não forem mudadas algumas regras que permanecem estáticas no tempo, no plano comunicacional, não será alcançado o patamar de 50% de telespectadores da TV paga, permanecendo mais uma exclusão programada.

* Valério Cruz Brittos é doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas e professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
* Ary Nelson da Silva Júnior é graduando em Comunicação Social – Jornalismo na Unisinos.

Grafite na universidade: A Ufrgs e a superficialidade da cobertura

A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) tem se caracterizado, por sua história, como um espaço de debates e de permanente indagação relacionados aos rumos da sociedade contemporânea. Foi assim com a criação do Campus do Vale, próximo à cidade de Viamão, quando os militares que dirigiam o país – conforme contam alguns professores – destinaram para esta localidade de distância extremada naquele momento alguns dos cursos que mais argüiam contra a ditadura. Está sendo assim, nestes últimos anos, no que concerne às eleições para o Diretório Central dos Estudantes, às ações afirmativas, ao Reuni etc.

Pois é nesse contexto que uma parede (sim, uma parede) toma conta das polêmicas que circundam, de tempos em tempos, nossa universidade. Ao entrar no Campus do Vale, aquele mesmo, próximo a Viamão, no qual estão alocados diversos departamentos de ensino e pesquisa, damos de cara com o prédio que abriga as salas de aula do curso de Letras. A parede frontal do edifício das Letras (recinto que outrora era dividido com o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) encontrava-se pichada, com algumas citações, descascada, além de servir de mural para cartazes, políticos ou não. De fato, não se tratava de uma visão esteticamente bonita. Não era, todavia, desagradável para os olhos alheios; tratava-se apenas de uma parede.

Atentado à autonomia

Há cerca de três ou quatro meses, um grupo de alunos ligado ao Diretório Central dos Estudantes tomou uma iniciativa própria, sem autorização prévia da direção universitária, e reformulou a mencionada parede que dá acesso ao Campus do Vale. No lugar da tinta descascada, das frases soltas e perdidas, dos cartazes e do fundo "branco", os estudantes pintaram um grande painel, no estilo graffiti, ostentando os seguintes dizeres: “Para que(m) serve o teu conhecimento?”. Estaria por vir a mais nova polêmica.

Outro grupo de estudantes tratou de acionar a Secretaria de Assuntos Estudantis (SAE) para reclamar o fato de a pintura não ter sido autorizada e, portanto, constituir crime de depredação do patrimônio público. De imediato, a SAE arquivou o processo, justificando que aquele espaço estava historicamente ligado às reivindicações e proposições filosóficas dos graduandos, o que de certa forma representa a realidade.

Olhando de fora, sem muita profundidade, parece que estamos diante de um crime e de uma falta de respeito às autoridades, um atentado à autonomia da universidade pública. Sob os aspectos legais, sem dúvida, trata-se de uma atitude pouco aconselhável, na medida em que poderia gerar (e acabou gerando) represálias por parte de quem se sentisse agredido (?) pelo acontecimento. Mas a história não é tão simples assim, tampouco somente de aspectos legais pulsa a vida acadêmica na Ufrgs, muito pelo contrário.

Discussões e interpretações distintas

O papel do conhecimento científico está na berlinda, digamos assim, há bastante tempo. Inúmeros pensadores fixaram suas atenções naquilo que poderíamos chamar de "conhecimento do conhecimento", ou epistemologia. A professora Eva Machado Barbosa, do Departamento de Sociologia da UFRGS, conta um pouco dessa trajetória:

“A questão do conhecimento de segunda ordem, ou do conhecimento do conhecimento, na expressão de Morin (1987), se fez presente no ocidente, de maneira explícita, pelo menos a partir da lógica aristotélica […]. Com o surgimento da ciência na Idade Moderna, ou melhor, com a diferenciação do conhecimento científico a partir da matriz filosófica original, a questão do conhecimento de segunda ordem, como lógica, gnoseologia, teoria do conhecimento, filosofia da ciência, epistemologia – ou que outro nome ainda se queira dar a esse domínio – tornou-se cada vez mais central, alcançando momentos de auge em obras de pensadores como Descartes, Locke, Hume, Kant e Hegel” [BARBOSA, Eva Machado. "Conhecendo o conhecimento: questões lógicas e teóricas na crítica da ciência e da razão". In: Cadernos de Sociologia, Porto Alegre, vol. 10 (Teoria Social: Desafios de uma Nova Era), p. 11].

Podemos observar, nesse sentido, que não é de hoje que os sujeitos humanos se debruçam sobre as questões que envolvem o conhecimento. Desde Karl Popper e os critérios de refutação e/ou testabilidade; passando por Gaston Bachelard e sua tentativa de psicanalisar o conhecimento; até chegar em Pierre Bourdieu e a necessidade da chamada vigilância epistemológica, perdura um caminho tortuoso, de rupturas e continuidades, de muitas discussões e interpretações distintas.

“Legalismo patriótico"

No episódio que polariza a universidade, o que está por trás de toda a discussão acerca da pintura da parede são diferentes posições ideológicas, posturas políticas frente ao papel do conhecimento científico construído nas suas entranhas. Para que ou para quem ele deve servir? Para nada, para alguns, para todos, para ninguém? Devemos nos questionar sobre isso?

Mesmo que alguns teóricos pós-modernos tenham decretado o fim das ideologias, do trabalho e da verdade enquanto conceito, na prática a disputa política e ideológica está presente na rotina diária, visível ou disfarçada, mas presente. Os autores do painel que originou a polêmica defendem sem ruídos um projeto de ensino superior mais popular, voltado para a aproximação com a comunidade e que não apenas privilegie o mercado e o empreendedorismo, mas também procure democratizar o acesso ao saber e à crítica social, fatos ainda muito distantes no que tange à nossa instituição.

Por outro lado, seria bastante ingenuidade, amigos leitores, pensarmos que a motivação da pessoa que moveu o processo para a retirada do graffiti em voga esteja vinculada apenas a uma espécie de "legalismo patriótico", ainda mais se atentarmos para o fato de que tal indivíduo é membro de um movimento específico de atuação contrária às cotas raciais, via de exemplo. Não esqueçamos, porém, que nada impede que optemos pela ingenuidade, desde que possamos identificá-la…

Os movimentos políticos

Tudo o que foi relatado até agora ganhou destaque no maior veículo de comunicação impresso do Rio Grande do Sul. Façamos uma pergunta clara: qual seria o papel deste jornal, para que pudesse cumprir uma função informativa de qualidade?

Independente da possível resposta, Zero Hora trabalhou sua cobertura até o momento em que escrevemos (sábado, 30/8) enfatizando a questão legal dos acontecimentos. Para nosso juízo, é imperativo que tal cobertura abordasse esse viés, na medida em que não devemos esquecer, num piscar de olhos, a existência das legislações vigentes. Neste primeiro comentário, ponto para Zero Hora e seus jornalistas.

No entanto, com o intuito de situar seus consumidores de maneira mais inteligente, Zero Hora investigaria profundamente o pano de fundo citado acima, isto é, o debate ideológico que a própria inscrição polêmica levanta. Ao contrário disso, até agora o impresso mantém uma postura "legalista", sem explicar o teor dos movimentos políticos que disputam a supremacia nesse conflito, seus projetos e perspectivas.

“Aparelhos privados de hegemonia”

Ao saber da pintura, o estudante de Ciências Contábeis Anderson Gonçalves, 35 anos, integrante do Movimento Estudantil Liberdade (MEL), abriu processo administrativo junto à universidade para saber se a parede havia sido cedida aos alunos. No documento, ele classificou o ato como vandalismo, identificou um dos responsáveis e pediu a punição do grupo [Zero Hora, 26 de agosto de 2008, p. 44].

Nesse caso, para que a mídia pudesse ser minimamente isenta, comprometida com a sociedade, Zero Hora arcaria com sua responsabilidade e esboçaria uma tentativa (pelo menos) de contextualizar a “questão quente” movimentada por detrás de uma pendência estéril. Para fugir dos grilhões de um assunto vago, qual seja, a legalidade ou não da pintura, a retomada sintética das concepções políticas daqueles que pintaram o painel e daqueles que se opuseram a ele, mas também os respectivos significados que ambos os grupos atribuem ao conhecimento científico e suas “utilidades” promoveriam um nível de qualidade superior ao tradicional periódico.

Numa época em que o jornalismo consiste, ao fim e ao cabo, em um tipo de indústria que fabrica a desinformação, a busca pela profundidade poderia ajudar a salvá-lo do pior. Entretanto, talvez seja mais fácil vender informações superficiais, ao passo em que a profundidade aqui requisitada poderia desestabilizar alguns pilares edificantes na atualidade daquilo que Gramsci [Cf. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Volume 2, 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004] alcunhou “aparelhos privados de hegemonia”.

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Eis os endereços para visitar as matérias de Zero Hora realizadas até o dia 30/08/08 (disponíveis durante 30 dias na internet):
** 26 de agosto de 2008, "Parede pintada gera processo na Ufrgs "
** 27 de agosto de 2008, "Diretor critica decisão da Ufrgs que liberou grafite "
** 27 de agosto de 2008, "’Fui muito ingênua’, diz autora "
** 28 de agosto de 2008, "Mais tinta na parede da controvérsia "

* Bernardo Caprara é jornalista diplomado pela PUC-RS, graduando em Licenciatura no curso de Ciências Sociais, pela Ufrgs e pesquisador-bolsista do Departamento de Ciência Política da Ufrgs.