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Omissão da mídia sobre o acordo com o Vaticano

É grave e clamoroso o silêncio da imprensa em relação à assinatura do acordo entre o Executivo brasileiro e a Santa Sé. Como é grave a atitude de, ao dar a matéria, meramente divulgar informações oficiais do governo brasileiro ou do Vaticano, que obviamente tentam minimizar a ameaça à laicidade do Estado, que está presente. Não fosse por outro motivo, seria de se esperar atenção da imprensa, pelo vigor renovado das reações de tantos setores, a cada nova ameaça ao Estado laico.

É bom lembrar que há exatos dois anos tornou-se público que a Santa Sé pressionava o presidente Lula para assinar um acordo bilateral (tratado ou concordata), ameaçando o princípio da laicidade, o que ocasionou reações fortes e justificadas de amplos setores. Em continuidade a movimento que remonta aos primórdios da República, são pessoas de muitas e diversas origens que têm se dedicado a demonstrar e reafirmar como o princípio da laicidade do Estado é indissolúvel da democracia, como consagrado na Constituição brasileira.

Mera reprodução

Ora, a opinião pública merece respeito e à imprensa cabe cumprir seu papel de informar, em particular quando o gesto que é político – como reconhecido, em busca de seu próprio benefício, pela Santa Sé – ameaça a liberdade de consciência e de crença dos pertencentes a outros grupos ideológicos e religiosos. O silêncio da imprensa há de ser tomado como presumidamente auto-imposto, já que não se pode imaginar que tipo de pressão as partes contratantes do acordo poderiam fazer, estando, como estamos, em uma democracia.

Vale mencionar, primeiramente, que o porta-voz da Presidência da República, Marcelo Baumbach, fez anúncio da viagem do presidente a Roma, "a caminho de Washington". Era 6 de novembro, uma semana antes da data agendada para a assinatura, ou seja, com tempo apertado, porém suficiente, para explorar o anunciado. Assim, seria de se esperar o debate pela imprensa, em particular por toda a polêmica em ocasiões anteriores em que o tema veio à tona, fosse diretamente, ou por riscos a que se viu exposto o Estado laico, como no caso da pesquisa com células-tronco.

Mas houve até veículos que simplesmente suprimiram o anúncio da assinatura do acordo, mencionando apenas que, "durante o encontro, Lula e Bento 16 podem discutir temas como combate à fome, direitos humanos e solidariedade entre os povos". Outros, como o UOL, ofereceram, sem destaque, o anúncio completo: "Na reunião reservada com o papa, Lula deve assinar um tratado com o Vaticano sobre a atuação da Igreja Católica no Brasil" (ver aqui ); recortaram em particular a fala do porta-voz da Presidência: "O importante é que o acordo preserve o preceito constitucional de liberdade religiosa. Não será discutido credo, mas os direitos e deveres da entidade religiosa." Ponto final, sem críticas, "outros lados", ou quaisquer análises, mera reprodução da Agência Brasil.

Falha imperdoável

Pode-se até entender a posição do porta-voz de, no anúncio, tentar neutralizar a polêmica, buscando garantir que estariam assegurados os direitos de todos, o que ganhava relevância em face de ser a primeira vez que clara e oficialmente era assumida pelo governo a existência de negociações antigas, como dado no UOL: "Segundo Baumbach, o Brasil e o Vaticano negociam há alguns anos a redação de um documento sobre a relação entre os dois países".

É sabido que diferentes ministérios do governo federal foram chamados a se manifestar sobre a proposta do Vaticano em diferentes rodadas ao longo desses anos; ou seja, não foi gesto isolado do presidente, que bem poderia ter tido e ouvido algum de seus colaboradores a aconselhar a abertura do debate, que só teria a ganhar vindo à luz, protegendo a autoridade republicana da pressão indevida. Mas não foi assim, não sendo possível compreender como a imprensa não rastreou o processo. Sabe-se ainda que são fortes as pressões da Santa Sé reivindicando sigilo nas negociações, como chegou a ser anunciado em 2007, quando da visita do papa ao Brasil.

Por isso, não surpreende que o presidente Lula tenha sido "convidado" a assinar esse documento longe dos olhos do Brasil. Já com o presidente de Portugal havia sido usado esse artifício em 2004, para assinar, no Vaticano, em sigilo, uma concordata, lá noticiada apenas a posteriori. Essa estratégia é da Igreja Católica que, como qualquer instituição humana, procura fazer valer seus interesses; aceitá-la, é problema do governo, atitude questionável, mas do mundo da política; calar e não investigar é falha imperdoável da imprensa.

Sem ouvir nem informar

Ou seja, paradoxalmente, mesmo sob pressão, quem até tentou avisar foi o presidente – de forma limitada, no último momento, mas avisou. Por isso é impossível compreender por que a imprensa se furtou ao debate, quando houvera o anúncio por parte do Palácio do Planalto daquela agenda, ainda que de última hora. Seria o tempo para informar a opinião pública, oferecer debates, dados técnicos sobre o que são acordos bilaterais, peculiaridades da Santa Sé como Estado, a diferença entre a questão política e as questões de crença, o que poderia significar frente à ordem constitucional brasileira, em que afetaria ou não afetaria a vida da cidadania em geral etc.

Haveria a oferecer ao público o aporte do amplo arco de grupos que se mobiliza em favor da laicidade do Estado. Deixaram de ouvir fontes respeitáveis, que têm importantes e diversas contribuições a oferecer: minorias religiosas, em sua imensa diversidade no Brasil, monoteístas e politeístas, ateus e agnósticos; defensores e defensoras dos direitos sexuais e reprodutivos; movimento de mulheres e dos setores GBLTT; grupos acadêmicos dedicados ao estudo do Estado laico; associações científicas; e defensores da liberdade de expressão, para citar apenas alguns segmentos.

A representatividade e força desses setores é sua profunda heterogeneidade, sem qualquer centralização ou hierarquia, indicadora das múltiplas e diversas manifestações da pluralidade humana, base da democracia, como tanto indicaram cientistas políticos e filósofos como Arendt e Bobbio e outros. A imprensa nem se serviu dessas fontes para analisar e, antes ainda, nem informou, deixando igualmente de servir a todos e de cumprir sua missão.

Carta-manifesto

Já na ocasião da visita do papa Bento 16 ao Brasil, em 2007, a cobertura da imprensa deixara a desejar, como analisamos neste Observatório (ver "A imprensa em falta com o Brasil" ). Naquela oportunidade, a maior parte da imprensa adotou atitude que extrapolava o respeito e a atenção – naturalmente devidas – à significativa e respeitável população católica no Brasil, para adotar cobertura que ignorou a pluralidade religiosa e o caráter laico do Estado brasileiro. Ali, a imprensa foi positivamente surpreendida pelo gesto do presidente Lula, que naquele momento teve coragem para cumprir seu juramento de defesa da Constituição brasileira e reafirmou a laicidade diretamente ao papa Bento 16, dizendo que não assinaria qualquer acordo bilateral, por ser o Brasil um Estado laico. Alberto Dines destacou no OI a contradição entre uma imprensa recolhida e o presidente assertivo (ver "Catequese da mídia contraria Estado laico" ).

Não fosse por outro motivo, desta vez seria de se esperar que a imprensa perguntasse ao presidente Lula: o que mudou, em 18 meses, que tornou possível assinar o acordo? Não seria de se esperar que a imprensa pedisse acesso ao documento, antes da assinatura, para submeter a análises e confirmar, ou não, as assertivas de que não haveria riscos à separação entre Estado e religiões? Ou, no caso, riscos à separação entre o Estado e especificamente a Igreja Católica Romana, que vigora desde o início da República, por ser matéria de interesse de todos?

Ao invés disso, o silêncio auto-obsequioso foi quase total: a CBN abriu espaço para o debate antes da assinatura do acordo (com base em notícias de jornais de outros países), como alguns veículos independentes, blogueiros isolados ou de instituições. A ONG "Católicas pelo Direito de Decidir" lançou uma carta-manifesto [ver aqui] repercutida por diversas ONGs ligadas ao movimento de mulheres, e que não recebeu atenção da mídia para uma posição relevante que demonstra que entre os próprios católicos não há, felizmente, expectativa unânime de que o Estado brasileiro abdique da laicidade para se submeter a um grupo religioso.

Retrocesso, uma ameaça

Mais constrangedor ainda foi brasileiros e brasileiras precisarem consultar jornais estrangeiros, na internet, como o argentino Clarín , entre outros, que a partir do dia 9 de novembro detalharam aspectos do acordo, ouvindo fontes em geral não identificadas, trouxeram informações relativas a coletivas de que participou o presidente Lula em Roma, com o presidente italiano, em que o tema do acordo com o Vaticano foi abordado, deixando a impressão de que os veículos brasileiros sequer tinham correspondentes em Roma.

Como reagir à situação de o mundo discutir uma interpretação da vida brasileira que não teríamos jamais em vista, pelo absurdo, como a idéia de que o acordo protegeria a Igreja Católica até de mudanças na lei brasileira? Ou mesmo informações da presença de itens que, de fato, "caíram" na versão final do acordo? Ou com interpretação distinta dos termos depois anunciados, como prenúncio de próximas pressões?

Resta esperar que, já assinado o acordo, a imprensa cumpra seu dever, ainda que tardiamente, impulsionando o debate porque há ainda o que fazer. Basta ler o artigo 20, que implicitamente traz a exigência constitucional, no lado brasileiro, de que seja ratificado pelo Congresso Nacional. Que a omissão não permaneça como a marca histórica da imprensa neste momento tão crítico em que a República, em seu 119º aniversário, é ameaçada de retrocesso em séculos.

* Roseli Fischmann é professora, coordenadora da área Filosofia e Educação da Pós-Graduação em Educação da USP, autora, entre outros, de Estado Laico (Memorial da América Latina), entre outras obras, coordenadora do Grupo de Pesquisa Discriminação, Preconceito, Estigma da USP; integrou a Comissão Especial sobre Ensino Religioso, do Estado de São Paulo (1995-1996).

Investigações e vazamentos: Como desqualificar a função da imprensa

O que ocorre neste momento nos escalões superiores dos órgãos de segurança (PF e ABIN) pode ser adjetivado como kafkiano – pesadelo, exacerbação do absurdo. No entanto, a qualificação mais apropriada para este episódio também deriva do nome de um gênio da literatura: dantesco.

Sob o ponto de vista institucional, político e funcional o Brasil vive um inferno. Verdadeiro caos. Com a Polícia Federal investigando simultaneamente a própria Polícia Federal e a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN, órgão da Presidência da República), o menos que se pode dizer é que estamos às vésperas de uma perigosa ruptura, estimulada por um lado pela vaidade de magistrados do Supremo Tribunal Federal e, por outro, pelas habituais trapalhadas do Ministério da Justiça.

O pecado original começa na imprensa. Em primeiro lugar porque no início da Satiagraha nossos jornalões se comportaram de forma irresponsável, divulgando sem qualquer suporte investigativo os primeiros relatórios produzidos pelos encarregados da operação policial. Aquilo não foi vazamento, foi inundação criminosa. Um telejornalismo que só se movimenta com dicas de policiais produz no máximo reality-shows e encenações.

Sob a ótica do jornalista, vazamentos são legítimos desde que os seus teores sejam devidamente checados antes da publicação. Sob a ótica do governo é legítimo investigar os funcionários – de qualquer escalão – que vazam para a imprensa informações sigilosas. Este confronto de legitimidades só conseguirá ser esclarecido através do debate.

Sem esclarecer

Quando estourou a operação Satiagraha, colaboradores deste Observatório da Imprensa repudiaram as práticas que colocam os jornalistas na condição de meros caudatários e subordinados dos órgãos policiais. Nenhum veículo, nenhum jornalista, nenhum opinionista teve a coragem de aproveitar a deixa para discutir com serenidade os procedimentos que desqualificam a função da imprensa.

O segundo pecado da mídia consiste em manter na penumbra a deplorável situação em que se encontram hoje os órgãos de segurança. O noticiário desses dias não é "holístico", mas apenas incidental.

A situação não é nova. Descende do Dossiê Vedoin, comprado de chantagistas para ser infiltrado no semanário IstoÉ. A PF mostra-se rigorosamente "republicana" quando sua comprovada eficiência não ameaça figuras do governo e dos partidos do governo. Quando seus investigadores farejam trapalhadas nas altas esferas, num passe de mágica evapora-se a sua competência e a PF passa a comportar-se de forma tosca e provinciana.

A partir do momento em que o então diretor-geral da PF Paulo Lacerda foi transferido para ABIN, e o então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos confessou publicamente a existência de um diário guardado num cofre que só seria aberto dentro de algumas décadas, evidenciou-se que a verdade estava sendo omitida.

A dramática trapalhada de agora é apenas a continuação da outra, a dos aloprados, que tão cedo não será esclarecida. Sobretudo porque nossa imprensa só chega à verdade através de vazamentos.

* Alberto Dines é editor-responsável do Observatório da Imprensa.

Obama e o negro na TV brasileira

A vitória de Barack Obama traz a felicidade da batalha vencida contra os absurdos da experiência humana. Os EUA vão ter que conviver eternamente com a sonoridade do nome do presidente eleito, que remete a Osama, o Bin Laden, o satânico algoz daquela nação. O fato histórico remete à reflexão sobre o papel do negro na sociedade, na perspectiva de nova ordem mundial e, por analogia, aqui, ao aproveitamento dos atores negros na TV brasileira.

Desde as primeiras imagens de atores brancos interpretando negros com pesado make-up a Sérgio Cardoso, no estilo black face, vivendo com soberba competência um negro na novela A Cabana de Pai Tomás, baseada no romance H.B. Stowe, adaptada por Edy Maia, produzida em 1969, pela TV Globo, que não alcançou o sucesso esperado, a presença da negritude espelhada por brancos causou estranheza no público e na classe artística.

Na caricatura musical, assistiu-se a atores brancos rebocados de preto cantando “Boneca de pixe”, ou o clássico “Nêga do cabelo duro” ou saudando o carnaval com “O teu cabelo não nega” ou “Mulata assanhada”. O espaço para os afro-descendentes na TV limita-se à cozinha, prostíbulo ou senzala. Poucos se destacam no futebol e outros enchem a telinha de luz, magia e cores no carnaval. Enriquecem as emoções de cenas de assaltos, crimes hediondos ou com a favelização contemporânea da programação. Sim, a grande audiência da programação da TV aberta está concentrada na periferia das grandes cidades e, por isso, a favela e o negro viram personagens do horário nobre.

Esperança de igualdade

Aqui, como lá, a diferença social traz o preconceito revelado com anos de escravatura. O primeiro anúncio da propaganda brasileira descreve um feitor procurando "um negro fugidio, de bunda grande". Outros eram identificados por furos, cortes e cicatrizes no rosto, o que caracterizou essa irracionalidade do mundo. Nos jornais de 1850, aparece "vende-se uma preta cozinheira de forno e fogão, boa lavadeira e mascata". Outras "pretas" eram alugadas para amamentar. Vendiam o néctar da vida que a senhorinha não tinha…

No universo da indústria cultural onde predomina o olho azul e a pele clara, o branco, os atores cor de chocolate, colored, ou protagonistas do cinema feijoada (iniciativa da associação de diretores e atores negros) são eternamente figurantes, pano de fundo, que pontuam a solidariedade, no estar por trás, para ser verdadeira a vida da cena. Embaixadores da dor silenciosa, capacidade camaleônica de renovação de personagens, escravos, capangas ou políticos corrupto são referências episódicas. E aquele sem números de rostos conhecidos, sem identificação nos créditos, que promovem a verossimilhança nas novelas com ambientação rural, na escravidão ou favela? Ainda estão sem o reconhecimento das empresas produtoras e não garantem lugar no mercado de trabalho. Outros são humilhados nos programas de humor. Sem citar a geração deserdada dos atores desaparecidos.

Mas o que Obama tem a ver com o universo da produção televisiva brasileira? O presidente eleito pela expressiva votação popular traz signos que representam a esperança de igualdade, de se escrever o novo capítulo da novela da vida, que Luther King idealizou para a história progredir: "Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter" Que os atores negros possam sobreviver e semear sonhos num mercado de brancos.

* Robson Terra é jornalista, professor universitário e mestrando em Comunicação e Tecnologia.

Mídia privada, independente?

A mídia privada, fazendo o papel de principal aparelho ideológico de Estado, nos faz lembrar o tempo inteiro do senso comum que faz toda a engrenagem do atual tipo de sociedade funcionar. Nada se pode mudar. Ou melhor, só a lógica do mercado e as vontades privadas podem mudar as coisas, até as nossas leis. Qualquer movimento que aponte para uma nova maneira de gerir a coisa pública e um novo meio de controle do Estado pela sociedade tem suas idéias massacradas diariamente pelos porta-vozes da "democracia", da "independência" e das teorias da lógica do mercado.

Como nos recentes processos políticos que ocorrem na América Latina, vários ideólogos da democracia representativa alertam para um perigo totalitário e que estariam nascendo ditadores, através do voto. Até foi dito que "democracia direta é totalitarismo". Então, quem acredita nisso acha que escolhermos um presidente da República pelo voto direto é um ato autoritário?

Mais qualidade na programação

Enfim, parece que alguns preferem falar qualquer coisa para tentar impedir que uma idéia pareça legítima e que caia em debate. A mídia nada debate, sempre passa informações descontextualizadas, causando uma enorme confusão e formando uma massa acostumada a não analisar a situação, sempre esperando a assepsia dos fatos isolados ao invés de uma análise da situação. A posição da grande mídia é sempre a de escolher o que é importante a sociedade discutir, quando há interesse que a sociedade discuta.

O que não interessa para o setor privado, não interessa para a mídia – por também ser formada por grandes blocos privados, algo lógico. Antes do papel de nos informar e levantar discussões, a mídia mainstream é um negócio com objetivos de lucro e tudo que uma empresa privada precisa seguir, colocando a informação em segundo plano. Infelizmente, é a lógica do mercado.

Vai ser sempre assim até termos uma mídia formada também por meios de comunicação de gestão pública, onde a informação e discussão de assuntos de interesse da sociedade seja colocada de forma não filtrada e não pasteurizada e que passe a ser esse o seu principal objetivo.

A TV Brasil ainda está longe de alcançar as reivindicações de movimentos sociais, que pedem a democratização dos meios de comunicação. Sua formação foi meio nebulosa, com um Conselho Curador ainda mais nebuloso, com vinte membros – sendo quinze escolhidos a dedo pelo presidente da República – e carecendo de clareza nos critérios adotados para a escolha. Apesar do governo não abrir mão desse controle, sem dúvida é uma das TVs com maior qualidade na programação, com conteúdo bem diversificado, ao contrário da mesmice das privadas.

Controle ideológico

A escolha do modelo de TV digital no Brasil foi um grande retrocesso. Alinhado com as grandes TVs privadas, o governo somente levou em consideração os interesses comerciais das emissoras, pois em nenhum momento foi levado em consideração o papel social da TV aberta, com a possibilidade de se ampliarem os canais abertos com uma qualidade ainda superior à que temos hoje. O governo não dialogou com a sociedade suficientemente e nos empurrou goela abaixo um modelo de TV fora de nossa realidade e com o mesmo número de canais, ao invés de até quadruplicar os canais abertos. Lamentável.

Só com meios de comunicação com gestão pública teremos uma mídia realmente democrática em que a população possa intervir no conteúdo e a busca de lucratividade não fique em primeiro plano, degradando e distorcendo a sua função. Sem contar que seria mais difícil se manter o controle ideológico que sofremos hoje nos meios de comunicação.

* Felipe Dolandeli é técnico em telecomunicações em Queimados (RJ).

Violência contra mulheres incentivada pela mídia

Em Santo André, na última semana, presenciamos um caso de cárcere privado que desnudou para todo o país o machismo dos policiais e jornalistas, a irresponsabilidade dos meios de comunicação e a insensibilidade nos casos em que as vítimas são mulheres. Um homem manteve como reféns a ex-namorada e uma amiga dela porque estava inconformado com o fim do relacionamento.

O machismo, que utilizarei aqui como a concepção de mundo que considera os homens superiores às mulheres e permite que eles possam impor sua vontade a elas, deve ser combatido. Especialmente em relacionamentos afetivos, não deve haver superioridade ou inferioridade de nenhuma das partes, mas igualdade na relação. Ninguém pode tratar outra pessoa como propriedade, nem obrigá-la a se manter num relacionamento. E, em hipótese alguma, pode-se admitir que sejam cometidos crimes, com o fim de impor a vontade de uma pessoa sobre outra.

Horror e decepção

No entanto, a maioria dos casos de violência cometida contra mulheres decorre da insatisfação do homem com o término do relacionamento e a tentativa de impor sua vontade, agredindo-a para retomar a relação, ou matando-a, para que não se torne "propriedade" de mais ninguém. Quem ama não mata, já diziam as feministas alguns anos atrás; hoje podemos acrescentar: quem ama não mata, não tortura, não agride, não mutila, não mantém em cárcere privado. Qualquer defesa desses crimes, em nome de um pretenso sentimento amoroso, serve apenas para encobrir a violência contra uma pessoa que manifestou legitimamente a sua vontade de sair da relação.

No caso de Santo André, tanto as autoridades quanto os meios de comunicação agiram de forma a desculpar o criminoso, minimizando suas ações e tratando-o como um jovem trabalhador em crise amorosa. Isso não deveria apagar o fato de que estava cometendo um crime para impor sua vontade à ex-namorada. E aqui cabe uma primeira crítica à atuação dos meios de comunicação: por que não falar do horror e decepção que uma jovem de 15 anos possa estar sentindo porque o primeiro namorado dela preferiu cometer crimes para afirmar que ela é propriedade dele, e por isso ela não poderia se separar?

Típico crime de gênero

Se os jornalistas são tão ciosos em mostrar "o outro lado", especialmente quando se trata de homens-pais-de-família-honestos-trabalhadores vítimas de crimes, por que se omitiram neste caso, em que a vítima principal era uma jovem-estudante-séria-responsável com a vida toda pela frente? Temos um criminoso e temos quatro vítimas: dois homens que eram reféns e foram libertados no primeiro dia (e não tivemos mais notícias deles) e duas mulheres reféns, sendo uma delas a ex-namorada do agressor. Por que a empatia da mídia foi para o homem, e não para as vítimas mulheres? É praticamente impossível pensar em alguma explicação além de machismo, pois é óbvio que neste caso os homens foram tratados como superiores e mais importantes que as mulheres.

Apesar de a Constituição da República pregar a igualdade e vedar a discriminação, seja qual for a sua forma, o que foi visto na atuação das autoridades foi uma discriminação de gênero. As reféns, mulheres, foram ignoradas pelas autoridades (inclusive pelo Ministério Público, que sempre atua cioso dos direitos das vítimas), que procuraram manter a integridade física de um homem que estava cometendo um crime. Foram divulgadas informações de que o rapaz estava agredindo a ex-namorada durante o cárcere. Era um caso em que a atuação policial deveria ser mais incisiva, de forma a proteger as vítimas o máximo possível.

Mas a impressão passada à população foi a de que garantir a integridade física do homem era mais importante do que impedir as agressões à ex-namorada, ou impedir que uma refém já libertada voltasse ao cativeiro. O resultado também foi típico de crimes relacionados a gênero: o homem saiu ileso; uma das mulheres (a ex-namorada) morreu após ser baleada no púbis (provavelmente para garantir o argumento machista "se não é minha, não será de mais ninguém") e na cabeça; a outra mulher foi ferida no rosto e talvez precise de mais cirurgias para não ficar desfigurada.

Falas estarrecedoras

A atuação dos meios de comunicação foi uma subversão de todos os valores que devem reger a comunicação social, especialmente a dignidade da pessoa humana e a não-discriminação. Programas de televisão não respeitaram sequer a situação delicada das vítimas e interferiram, ao vivo, conversando com alguém que estava cometendo um crime. Como se a situação por si só não fosse absurda, optaram por não condenar a atitude do criminoso, tratando-o o tempo todo como se estivesse agindo corretamente. O rapaz, feliz por aparecer na televisão e tornar-se celebridade, sentiu-se estimulado e optou por estender o cárcere privado até o limite possível, que foi o desfecho trágico.

Com essa postura, os meios de comunicação interferiram nas negociações, estimularam uma inversão de valores (quem, em sã consciência, torceria por alguém que está cometendo um crime?) e agiram de forma escandalosa, violando o Código de Ética dos Jornalistas (o art.11, parágrafo II, veda a divulgação de informações de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em casos de crime).

Uma dessas manifestações televisivas, em especial, merece repúdio. Trata-se do programa de Sônia Abrão, no qual foi concedida extrema importância ao criminoso, com um repórter entrevistando-o ao vivo e chamando-o de "querido". Ao final da ligação, optou-se por conversar com especialistas sobre o caso. As falas de um advogado foram estarrecedoras: ele ignorou o sofrimento da refém, considerou-se otimista, pretendeu que o caso terminasse em pizza e que houvesse um casamento feliz entre vítima e carcereiro! Tamanha falta de respeito e empatia pela vítima de um crime jamais deveria ser incentivada por profissional algum, nem divulgada sem ressalvas.

Facilitando a impunidade

Todo este caso é de extremo mau-gosto, pois mantém uma situação de violência contra mulheres. Uma mulher que esteja pensando em terminar o namoro ou casamento, após acompanhar o noticiário, ficará em dúvida sobre o que fazer. O recado passado pela sucessão de acontecimentos da última semana é claro: mostra que mulheres que fazem valer sua vontade correm grande risco de serem agredidas e perderem a vida, enquanto os homens que as agrediram para impor um relacionamento se tornam estrelas de televisão e recebem toda a simpatia dos meios de comunicação.

Igualdade entre homens e mulheres pressupõe um tratamento digno nos meios de comunicação, para que não sejam perpetuados atos machistas que dificultam e desvalorizam a vida das mulheres. Porém, quando a mídia opta por valorizar um agressor de mulheres abre espaço para a manifestação de outros agressores, justificando-os e facilitando a sua impunidade, já que não são vistos como os criminosos que realmente são. Não é este o papel dos meios de comunicação em um Estado democrático de direito e o mínimo que se espera da postura dos profissionais da comunicação é compreenderem o próprio machismo, a fim de evitar futuras abordagens tão trágicas e ofensivas às mulheres quanto as do caso de Santo André.

* Cynthia Semíramis Machado Vianna é professora universitária, mestre em Direito pela PUC-MG.