As últimas eleições colocaram na agenda pública o tema da ética no jornalismo. Com os debates em torno da classificação indicativa de obras audiovisuais, a discussão se estendeu para o campo do entretenimento. E agora, chega ao espinhoso terreno da publicidade, com a disputa pela regulamentação dos anúncios voltados às crianças. Enquanto as empresas fabricantes de produtos infantis e publicitários fazem lobby para manter a ausência de normas, entidades da sociedade civil dos campos da pediatria, psicologia e comunicação se mobilizam para regulamentar a publicidade infantil.
“O principal malefício causado às crianças é que a publicidade age na subjetividade. É feita para trabalhar com a formação de desejos e transportar o que é necessidade para o campo do desejo. Seria leviano afirmar que as propagandas mexem com a saúde mental das crianças, porque não há comprovação científica disso, mas podemos afirmar que é perverso fazer propagandas para crianças ou de produtos adultos com apelos infantis sob o argumento de que a criança tem alto grau de influência na decisão de compra da família”, afirma o pesquisador Edgard Rebouças, da Universidade Federal de Pernambuco, integrante da Campanha Quem financia a baixaria é contra a cidadania. Rebouças defende que não haja intervalos comerciais em programas infantis. “É muito mais fácil atingir uma criança, porque ela não tem os filtros sociais que os adultos têm. É aí que reside a perversidade dos publicitários que se valem disso”, diz.
Mantendo a postura histórica pela não-regulamentação da atividade publicitária, o Conar (Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária) rebate as críticas e afirma que “a educação se dá com a informação e não com a falta dela” e que a proibição de propaganda infantil é um “atentado à liberdade de expressão comercial”. “A propaganda contribui para que os cidadãos exerçam bem o direito de fazer escolhas. Informação editorial e informação publicitária são complementares”, afirma Gilberto Leifert, presidente da entidade.
Rebouças faz a defesa de uma regulamentação ampla da publicidade destinada a crianças e adolescentes. “Lutamos para que não sejam usadas crianças em comerciais, e que o anúncio não seja destinado a elas usando personagens ou personalidades que fazem parte de seu universo. E que o apelo seja direcionado aos pais”, diz. “Não somos contra que haja publicidade de leite em pó, desde que seja direcionada para os pais. Não somos contra que exista propaganda do Mc Donald's, mas que fale aos pais”, completa.
Por isso, o professor afirma que o ideal seria se não houvesse nenhum tipo de comercial durante um programa infantil. “Principalmente na primeira fase da infância, uma criança não consegue identificar o que é comercial. Em outras fases, ela passa a ter outra percepção, mas fica mais condicionada a consumir os produtos anunciados do que se divertir, se educar e se informar com os programas. A TV deve seguir alguns princípios básicos: educar, informar e divertir. Neste caso, está servindo para vender”, diz.
Frentes de atuação
Segundo Rebouças, a busca da regulamentação dos anúncios destinados às crianças tem atualmente três frentes. A primeira delas está na Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados: um substitutivo da deputada Maria do Carmo Lara, feito a partir do projeto de lei de autoria do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR) que sugeria a proibição da publicidade destinada a crianças. “O estava tramitando para ser votado com a proibição, mas a Campanha entrou na discussão e ponderou que ele teria poucas chances de passar. Assim, começamos a brigar pela regulamentação. Houve audiências públicas em alguns estados, mas o projeto foi para o final da pauta. Seria interessante que voltasse a tramitar”, informa o professor.
A segunda frente é implementada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que colocou em consulta pública a regulamentação de publicidade de alimentos de baixo valor nutritivo e de alimentos com quantidades elevadas de açúcar, gordura saturada, gordura trans, sódio e bebidas com baixo teor nutricional. Além da consulta, a Anvisa realiza, no próximo dia 12, na Comissão de Saúde do Senado, uma audiência pública para discutir obesidade infantil. “Estarão presentes pesquisadores e profissionais dos campos da pediatria, cardiologia e psicologia, além de empresários da indústria alimentícia”, informa Rebouças, que vai à audiência apresentar uma pesquisa sobre como outros países regulamentam a publicidade infantil.
A terceira frente é a da regulamentação de publicidade de bebidas alcoólicas. Pela lei, para publicidade, são bebidas alcoólicas aquelas com teor alcoólico acima de 13 graus. Ou seja: a cerveja, que tem de 4 a 5 graus, não é. “Uma portaria que regulamenta a publicidade de bebida alcoólica está em consulta pública, mas a portaria não é superior à lei, então, é muito difícil que adiante algo, a não ser que seja alterada a lei”, informa Rebouças.
Exposição exagerada
Com a digitalização da televisão, este cenário pode piorar, já que dentro do próprio programa a criança vai poder acessar hiperlinks de consumo. Mas, hoje em dia, mesmo sem a implantação da TV digital, as crianças estão submetidas a uma avalanche de comerciais. Segundo pesquisa do Rio Mídia realizada em 2006, em uma semana de programação infantil matinal, três emissoras de TV aberta do país exibiram 447 comerciais, o equivalente a cerca de três horas e 45 minutos da faixa horária oferecida (8,76%). No topo da lista dos produtos anunciados estão brinquedos, remédios de emagrecimento, jogos de aposta, CDs de música, mensagens via celular, cereais e comidas fast-food. O levantamento analisou os intervalos das únicas emissoras comerciais de TV aberta que oferecem, pela manhã, programas destinados às crianças. São elas: Rede Globo, Rede TV e SBT.
Além das propagandas em intervalos de programas infantis, anúncios de produtos adultos usam apelos para crianças. “Desde os anos 40, os publicitários descobriram que crianças têm influência na percepção de compra da família. Em um estudo clássico dos anos 60, afirma que as crianças têm influencia de 60% nas compras das famílias. De qualquer tipo de compra, desde alimento a móveis e eletrodomésticos. Os publicitários se valeram deste dado e fazem uma publicidade indireta às crianças, o que também é extremamente perverso”, explica Rebouças.
Os limites da auto-regulamentação
Para Leifert, do Conar, as tentativas de regulamentação revelam que o Estado não acredita no poder de discernimento do cidadão. “É um evidente paradoxo. Em relação à publicidade, temos insistido nessa tecla: muitas vezes o projeto de lei ou a intervenção do Estado sugere que o cidadão é considerado plenamente capaz apenas para constituir família, eleger representantes políticos, pagar impostos, mas seria incapaz de fazer escolhas a partir da publicidade”, afirma.
Tentando dar conta da pressão pela regulamentação da propaganda infantil, em setembro de 2006, o Conar colocou em prática novas normas éticas para a publicidade de alimentos e de produtos destinados a crianças e adolescentes. Para Leifert, o balanço é positivo. “Houve consenso que crianças e adolescentes merecem tratamento diferenciado e resultado pode ser medido pela ampla adesão às novas normas adotadas em junho de 2006 e que entraram em vigor em setembro. O pequeno número de processos éticos abertos desde então também confirma essa impressão”.
Rebouças, porém, é ponderado em relação à eficiência da auto-regulamentação. “No artigo reformulado, a entidade coloca uma série de aconselhamentos para os publicitários sobre o uso de crianças, personagens, produtos destinados a crianças. Já é um avanço, porque antes não havia nem isso. Mas o Conar não é instância do Estado para regulamentar, é uma entidade de auto-regulação de empresários de comunicação, empresas de publicidade e anunciantes. É um clube que tem varias atuações louváveis e interessantes, mas defendem interesses próprios e como suas determinações não tem força de lei, se alguém do clube não quiser seguir as normas, a sanção máxima é ser excluído do clube”, diz Rebouças. “O Conar modificou sua regulamentação justificando que deveriam ser formados consumidores conscientes. Temos que formar cidadãos conscientes e não consumidores conscientes”, aponta o professor.
Links:
Substitutivo da deputada Maria do Carmo Lara
(http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=326953)
Projeto de Lei de autoria do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), que sugere a proibição da publicidade destinada a crianças
(http://www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp?CodTeor=24887)
Consulta pública da Anvisa sobre o regulamento para a publicidade de alimentos
(http://www4.anvisa.gov.br/base/visadoc/CP/CP%5B16556-1-0%5D.PDF)
Pesquisa do Rio Mídia
(http://www.multirio.rj.gov.br/riomidia/)