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Critérios técnicos para outorgas de rádio e TV não servem para nada

[Título original: Critérios técnicos não servem para nada]

 

Em 7 de fevereiro de 1997, acontecia a primeira licitação para concessão de rádios FM e AM e para geradoras de televisão. Acabava assim a discricionariedade na outorga de emissoras de rádio e TV para dar lugar a critérios objetivos na classificação das propostas dos interessados em prestar os serviços de radiodifusão. Ainda que existissem brechas, mantendo vivo o clientelismo nas outorgas – mais especificamente nas concessões de rádios e TVs educativas e de retransmissoras de TV, que até hoje não necessitam de procedimento licitatório – tratava-se de uma conquista histórica. Não seriam mais o compadrio e o prestígio político que definiriam para quem outorgaríamos rádios e TVs comerciais, e sim a força das propostas técnicas e de preço apresentadas pelos concorrentes.

Mas hoje, passados exatos 14 anos, mais uma vez podemos constatar que o Estado vem sendo sistematicamente ludibriado. O que deveria ser uma concorrência de técnica e preço tornou-se, simplesmente, um leilão no qual leva a outorga quem pode pagar mais.

Das 905 licitações concluídas desde 1997 em que houve ao menos dois concorrentes, 846 foram vencidas pela empresa que apresentou a melhor oferta de preço. Em 16 casos o vencedor foi o concorrente que apresentou a melhor oferta técnica e a melhor oferta de preço. E em apenas 43 licitações a proposta técnica foi preponderante sobre a oferta de preço.

Os mecanismos

De acordo com os Decretos nº 1.720, de 1995, e nº 2.108, de 1996, que estabelecem as regras para as licitações nas outorgas de radiodifusão, critérios técnicos como o tempo destinado na programação a conteúdos jornalísticos, educativos e culturais e o número de programas produzidos na própria área de prestação do serviço deveriam contar pontos na escolha de quais seriam os vencedores dos processos licitatórios.

Essa pontuação ponderada entre técnica e preço tinha, como objetivo primordial, impedir que o poderio econômico passasse a ser o critério exclusivo para a definição dos que seriam agraciados com uma outorga de radiodifusão. A proteção foi estabelecida de maneira proporcional, de modo que as propostas de preço tivessem um peso maior para rádios e TVs com grande alcance, e uma importância menor para pequenas emissoras de radiodifusão de abrangência local. No caso de rádios em frequência modulada e de televisões de baixa potência e cobertura restrita, por exemplo, o peso da proposta técnica seria responsável por no mínimo 70% da pontuação atribuída aos concorrentes.

Como os mecanismos são burlados

O desequilíbrio que faz com que as propostas técnicas tenham, na maior parte das vezes, nenhuma influência na definição dos vencedores das licitações de radiodifusão ocorre porque o Ministério das Comunicações se deixa enganar.

Segundo dados do próprio ministério, das 9.719 propostas técnicas apresentadas em procedimentos licitatórios desde 1997, 8.812 (90,67%) alcançaram nota máxima em todos os quesitos de avaliação e 310 (3,19%) receberam nota entre 99 e 99,999. Na maior parte dos procedimentos licitatórios, todos os concorrentes empataram na avaliação técnica, e foi a proposta de preço que definiu o vencedor. 

Ou seja, as regras que pretendiam privilegiar critérios de qualidade da programação e impedir que o poder econômico fosse preponderante na definição dos vencedores dos procedimentos licitatórios são de um fracasso desconcertante. A proposta técnica virou uma simples formalidade, pela qual quase todos os concorrentes passam com nota máxima.

Confiantes na falta de fiscalização do poder público, cuja capacidade de acompanhamento e avaliação da programação das emissoras de rádio e TV é notoriamente deficitária, as empresas que concorreram em procedimentos licitatórios prometem entregar o melhor conteúdo do mundo à população. Depois de vencida a licitação, oferecem o que bem entendem, com uma certeza quase plena de que aquilo que pactuaram no procedimento licitatório não precisará ser cumprido.

O que o ministro pode fazer

O novo ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, declarou que está disposto a colaborar com as rádios comunitárias (RCs), criando uma secretaria especial para tratar do assunto. A proposta é certamente bem-vinda. E se soma à nossa esperança de que ele não faça como os seus antecessores, que enrolaram, prometeram e nada fizeram pelas RCs.

Reconheçamos, porém, que, em alguns casos, a enrolação se deu com o apoio de "entidades da sociedade civil". Por exemplo, durante a I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada em 2009, a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço) divulgou um pretenso "acordo" assinado com representantes do governo Lula, com possíveis conquistas para as RCs. Na verdade foi um grande blefe, uma fraude, desmascarada aqui mesmo no Observatório (ver "Um acordo ou um blefe? "). Essa mesma Abraço teria (ela nunca desmentiu isso) sido cúmplice do governo no envio ao Congresso Nacional do Projeto de Lei (PL) nº 4573/08, que criminaliza mais ainda a operação de rádios comunitárias sem concessão e descarta a anistia aos que foram punidos por operar rádios sem autorização.

Mas, vamos considerar que estamos inaugurando um novo tempo e que o ministro Paulo Bernardo tenha chegado com boas intenções e disposto a fazer algo pelas rádios comunitárias. É possível, Paulo Bernardo tem uma história política decente. Diante disso, trazemos algumas sugestões ao novo ministro das Comunicações no que se refere às rádios comunitárias.

Relações promíscuas com padres e pastores

Eis o que o ministro pode fazer:

1. Mudar urgentemente o primeiro e segundo escalão do Ministério. Esse grupo tem demonstrado um comprometimento histórico com as grandes redes e irá boicotar todo avanço que o ministro propuser nessa área.

2. Revisar os processos das quase 4 mil rádios outorgadas. Nossa estimativa é de que somente 10% do que foi outorgado é rádio comunitária de verdade. Considere-se que o Minicom está ciente dessa irregularidade; pior, ele é cúmplice do que está acontecendo.

3. Estabelecer norma que permita a cassação das outorgas das rádios pseudo-comunitárias, por receberem as concessões de forma espúria, ilegal, imoral. Cito como exemplo: a "rádio comunitária" da igreja católica em Copacabana (RJ), Rua Hilário Gomes, 36; a "rádio comunitária" da Casa da Benção, em Taguatinga (DF); a "rádio comunitária" Paullus FM, no município de Diamante (PB). Essas igrejas deveriam ter vergonha por se apossar – de forma ilegal! – de bens públicos. Existem centenas de rádios assim. O vergonhoso é que o Minicom seja cúmplice dessa ilegalidade e a Anatel seja omissa diante desses casos.

4. Promover inquérito administrativo para apurar e punir os envolvidos na outorga de RCs às igrejas e políticos, resultado de interferências políticas e religiosas dentro do Minicom. Tornar público o resultado desses inquéritos, revelando os nomes dos servidores públicos que mantiveram essas relações promíscuas com padres e pastores para outorgar RCs. Sobre o assunto ler o estudo publicado neste Observatório, de autoria de Venício A. Lima e Cristiano Lopes, intitulado"Coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004): as autorizações de emissoras como moeda de barganha política".

Moedas de troca na bodega da política

5. Elaborar um novo Decreto regulamentando a Lei 9.612/98, das rádios comunitárias. O Decreto em vigor, nº 2.615/98, contém irregularidades e cria mais restrições do que a lei já prevê. Por exemplo, ele limita o alcance a 1 Km, estabelece uma burocracia kafkiana, cria uma dezenas de punições, não define o que é apoio cultural…

6. Promover cursos e oficinas para as rádios comunitárias, conforme prevê o artigo 20 da Lei 9.612/98. Doze anos depois de promulgada a lei consta que o Minicom não fez nada neste sentido. Isto é, o Minicom não cumpre a lei.

7. Impedir que o Minicom e a Anatel continuem com a política de exclusão para quem faz rádio comunitária. Essa é uma postura histórica. Como exemplo, podem ser citadas as Resoluções da Anatel (60/98 e 356/04) que determinam canais de operação para as RCs fora do dial. Isto é, propõe-se um gueto, um campo de concentração: se o dial de FM vai de 88 a 108 MHz, a Anatel determina que a RCs irão operar na faixa de 87,5 a 87,9 MHz.

8. Encaminhar ao Congresso Nacional uma nova proposta de lei para as RCs. Mas isso não é o suficiente; o governo tem que fazer a sua defesa. Revogar a lei em vigor – nº 9.612/98 – é uma necessidade. Ela é tão restritiva, excludente, que bem poderia ter sido assinada por Benito Mussolini.

9. Elaborar Medida Provisória (MP) anistiando as milhares de pessoas acusadas de "operar emissora sem autorização". Esta MP recuperaria o substitutivo do deputado Walter Pinheiro (PT-BA), detonado pelo governo ao encaminhar PL com o mesmo objetivo, mas com intenções nada decentes. A MP deve tocar em três pontos: 1) anistiar os que foram punidos; 2) propor nova redação ao artigo 183 da lei 9.472/97, que estabelece cadeia (2 a 4 anos) para este tipo de crime, substituindo por punição administrativa; 3) revogar o artigo 70 da lei 4.117/62, criado pelo Decreto 236/67, obra da ditadura militar que está sendo utilizada até hoje.

10. Extinguir o "banco de negócios" instalado no Palácio Planalto. Funciona do seguinte modo: processos de rádios autorizadas pelo Minicom são negociadas com parlamentares e religiões antes de serem enviadas ao Congresso Nacional; são moedas de troca na bodega da política. Claro, só andam as RCs que têm padrinhos poderosos.

Coragem será percebida quando moralizar o sistema

11. Nomear um interlocutor do Minicom para o setor. Salvo exceções, os indicados pelo Executivo até são ignorantes no tema e enrolões – prometiam o que não podiam cumprir e nunca aprenderam sobre o que é rádio comunitária. Tá na hora de se indicar alguém com o mínimo de conhecimento no assunto e o mínimo de respeito ao movimento.

Estas medidas certamente irão atrair a ira daqueles que querem manter as RCs em guetos, como os nazistas fizeram aos judeus. Eles irão procurar Paulo Bernardo e Dilma Rousseff e se posicionar contra qualquer reforma legal ou administrativa que beneficie as rádios comunitárias. O que incomoda a esses poderosos se traduz como uma questão de classe: os senhores da Casa Grande não admitem que a senzala tenha acesso a um meio de comunicação que lhe permita pensar, crescer, desenvolver, decidir sobre o seu destino. Os da Casa Grande e os da catedral querem continuar manipulando as pessoas, impedindo seu acesso aos bens e serviços que o Estado fornece ou deveria fornecer.

Os inimigos das RCs estão dentro e fora do Estado. No Estado, temos historicamente o Minicom, mas a Anatel ganha de todos no capítulo ferocidade contra as rádios comunitárias. Fora do Estado, há as grandes redes de comunicação (Globo, SBT, RBS, etc.) e as igrejas cristãs. As igrejas estão disputando quem constrói o maior latifúndio da comunicação, incluindo rádios comunitárias. A ganância, a ambição dessas religiões – católicas e protestantes – é do tamanho do deus em que acreditam.

A batalha é imensa. Paulo Bernardo está chegando agora, mas os padres e bispos estão acostumados a transitar nos palácios desde quando eles inventaram um deus e uma religião. É o ambiente do poder. Quem vai dizer não para as sete famílias da comunicação ou para o Vaticano? Padre de direita ou de esquerda, sempre teve as portas abertas, incluindo aquela onde se guardam os tesouros. A coragem de Paulo Bernardo será percebida quando ele moralizar o sistema, limpar a sujeira denunciada, e dizer não aos padres, pastores e falsos líderes sociais.

 

* Dioclécio Luz é jornalista, escritor e pesquisador de rádios comunitárias e mestrando em Comunicação pela UnB

O balanço dos governos Lula

Este texto pretende fazer um breve balanço crítico da política de comunicações ao longo dos oito anos de governo Lula (2003-2010), sobretudo no que se refere ao serviço público de radiodifusão. Obedecendo aos eixos temáticos definidos pela Fundação Friedrich Ebert, trata dos principais condicionantes estruturais do pluralismo e da diversidade – estrutura legal, concentração da propriedade e fontes de financiamento –, além de descrever avanços, derrotas e recuos na política de comunicações, e de identificar tendências do contexto e das estratégias de disputa em torno da regulação do setor.

1. Estrutura do sistema de meios de comunicação

1.1 Marco Regulatório

"Trusteeship model" – A primeira característica "moderna" da mídia brasileira é que o Estado fez uma opção – ainda na década de 1930 – por um modelo de exploração da radiodifusão que privilegia a atividade privada comercial. Poderia ter sido de outra forma. Para ficar com o exemplo clássico, na mesma época, a Inglaterra fazia a opção oposta, isto é, privilegiou o próprio Estado como operador e executor da atividade de radiodifusão. Mas, no que se refere ao rádio e a televisão, adotamos o modelo que tem origem nos Estados Unidos. É mais ou menos uma curadoria: compete à União a exploração de um serviço que o delega para administração e operação de terceiros.

O rádio e a televisão são, em sua maioria, outorgas do Poder Público para a iniciativa privada. O prazo de vigência para as concessões de rádio é de 10 anos e de televisão, 15 anos. Na prática elas se transformam em propriedade privada, já que a não renovação ou o cancelamento de uma concessão são situações praticamente impossíveis do ponto de vista legal. Desde quando o rádio foi introduzido no Brasil, e foi regulado pelo Estado, optou-se por privilegiar esse modelo de curadoria. Não foi uma opção que contou com a participação popular. Ao contrário, foi uma decisão de gabinete, sem que houvesse qualquer debate ou participação pública.

"No law" – Na mídia brasileira predomina a no law, ou seja, a ausência de regulação. A principal referência legal ainda é o quase cinquentenário Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962. Desatualizado, foi fragmentado pela Lei Geral de Telecomunicações, de 1997 e é complementado por várias normas avulsas para serviços específicos (diferentes modalidades de televisão paga, por exemplo) que, em alguns casos, são até mesmo contraditórias. Ademais, as normas constitucionais existentes, em sua maioria, não foram regulamentadas pelo Congresso Nacional e, portanto, não são cumpridas. Um exemplo emblemático são os princípios para a produção e a programação do serviço público de radiodifusão (Artigo 221), que deveriam também servir de critério para a outorga e a renovação de concessões e, no entanto, são ignorados.

A situação é de tal forma grave que, em novembro de 2010, a Federação Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão (FITERT) e a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) protocolaram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO nº 09) pedindo ao Supremo Tribunal Federal que declare "a omissão inconstitucional do Congresso Nacional" em legislar sobre a matéria.

Situação ao final do governo Lula

  • Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa (LGCEM) – Durante o primeiro governo Lula, duas comissões foram criadas com a finalidade de produzir um pré-projeto de LGCEM. No entanto, elas nunca chegaram a se reunir. A primeira – que era um GTI (Grupo de Trabalho Interministerial) – esperou oito ou nove meses para que seus membros fossem indicados. Quando finalmente indicados e marcada uma primeira reunião, o governo decidiu que não seria mais um GTI, mas sim uma Comissão Interministerial (CI), com representantes também da Procuradoria Geral da República e outros órgãos. A primeira comissão, um GTI, deixou de existir, embora nunca tivesse se reunido. E a nova, uma CI, também nunca se reuniu.


O tema, no entanto, não morreu. Em julho de 2010, o presidente Lula assinou novo decreto criando outra CI para "elaborar estudos e apresentar propostas de revisão do marco regulatório da organização e exploração dos serviços de telecomunicações e de radiofusão". Fazem parte da nova comissão representantes da Casa Civil, dos ministérios das Comunicações e da Fazenda, da Secretaria de Comunicação Social da Presidência (SECOM) e da Advocacia Geral da União. Representantes de órgãos e entidades da administração federal, estadual e municipal, além de entidades privadas, poderão ser convidados a participar das reuniões. O artigo 6º do decreto diz que "a Comissão Interministerial encerrará seus trabalhos com a apresentação, ao Presidente da República, de relatório final", mas não estabelece prazo para que isso ocorra [íntegra do decreto].

A pouco menos de dois meses do término do governo Lula, em novembro de 2010, um primeiro resultado público do trabalho da nova CI, liderado pela SECOM, se materializou na realização do "Seminário Internacional Comunicações Eletrônicas e Convergências de Mídias", em Brasília. Representantes de três organismos internacionais – Comissão Européia, OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e UNESCO – e de órgãos reguladores de cinco países – Portugal, Espanha, Reino Unido, Estados Unidos e Argentina – debateram, ao longo de dois dias, com empresários de mídia, jornalistas, parlamentares, acadêmicos, ONGs, movimentos sociais e funcionários públicos graduados, diferentes formas adotadas para regulação democrática do setor de comunicações. [As proferidas do Seminário estão disponíveis aqui.] Além de qualificar o debate público do tema com o conhecimento das experiências internacionais, um dos objetivos era fornecer subsídios para (finalmente) a elaboração do pré-projeto de um "marco regulatório da organização e exploração dos serviços de telecomunicações e de radiodifusão".

  • Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (ANCINAV) – O projeto de transformar a ANCINE (Agência Nacional de Cinema) em Ancinav – que seria o órgão regulador e fiscalizador da produção e distribuição dos conteúdos audiovisuais – não chegou sequer a ter uma versão final. Um pré-projeto não oficial vazado para a imprensa provocou uma feroz e intensa campanha de oposição, movida, sobretudo, pelos grupos tradicionais de mídia. Diante disso o governo decidiu, em janeiro de 2005, que os estudos prosseguiriam mas que, prioritariamente, deveria ser construída uma proposta de regulação mais ampla dentro da qual a transformação da ANCINE em ANCINAV pudesse ser incluída. O argumento foi de que não se poderia implantar uma agência reguladora do audiovisual sem se ter primeiro uma LGCEM.


Em janeiro de 2005 o governo anunciou que seria encaminhada ao Congresso Nacional uma nova proposta de legislação contemplando apenas os setores de fomento e de fiscalização na área da produção audiovisual. Isso atendia aos interesses de grupos que faziam oposição ao projeto de transformação da ANCINE em ANCINAV. A nova proposta de lei foi de fato elaborada e enviada ao Congresso Nacional, em junho do ano seguinte, e seis meses depois transformada na Lei nº 11.437, de 28 de dezembro de 2006, que criou o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) regulamentado pelo Decreto nº 6.299, de 12 de dezembro de 2007.

  • Rádios comunitárias – O governo Lula não foi capaz de implementar políticas democratizantes em relação às rádios comunitárias, que continuam regidas por uma legislação excludente aprovada no governo de Fernando Henrique Cardoso (Lei nº 9.612/1998). Ainda em 2003 foi criado um Grupo de Trabalho (GT) que chegou a produzir um relatório final. Mudou-se o ministro das Comunicações, criou-se agora um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), que se reuniu ao longo de 2010 produzindo também extenso relatório final. Mudou-se novamente o ministro e o novo titular da pasta não aceitou o relatório final do GTI, que nunca chegou a ser encaminhado à Presidência da República.

 

A repressão às rádios comunitárias – que não conseguem se legalizar, na maioria das vezes por inoperância do próprio Ministério das Comunicações – em certos momentos chegou mesmo a aumentar, comparada ao governo anterior.

  • RTVIs – As RTVIs (Retransmissoras de TV Institucionais) foram criadas pelo Decreto nº 5.371, de 17 de fevereiro de 2005. Elas representavam uma excelente oportunidade para o poder municipal se tornar retransmissor de emissoras de TV do campo público e, também, produtor de conteúdo. O decreto abria a possibilidade de uso da TV a cabo por prefeituras em até 15% do tempo total de retransmissão.


A "brecha" foi saudada por todos os que se interessam pela democratização do mercado da comunicação e o fortalecimento da televisão pública. A TV a cabo, ainda hoje, alcança apenas cerca de 260 municípios dos mais de 5.600 existentes no país. Como as operadoras de TV a cabo são obrigadas, por lei, a transmitir canais comunitários, as atividades das Câmaras de Vereadores seriam transmitidas e haveria também a possibilidade da geração de receitas publicitárias e do início da produção de conteúdo local. Houve, no entanto, uma forte reação dos grupos privados de radiodifusão e, menos de dois meses depois da assinatura do Decreto 5.371, um novo Decreto – de nº 5.413, de 6 de abril de 2005 – foi assinado voltando atrás e extinguindo as RTVIs.

  • TV Digital – A escolha do modelo japonês para a implantação da TV Digital no Brasil, consolidada ao longo de uma profunda crise política (2005) e em ano eleitoral (2006), sinalizou um recuo importante na postura anterior do governo Lula em relação à política de digitalização da televisão.


No início do processo, o Decreto nº 4.901 de 26/11/2003, que criou o Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), contemplou a participação direta de representantes da sociedade civil organizada que já faziam parte do Comitê Consultivo do SBTVD e discutiam as alternativas de política. No entanto, a partir da nomeação do senador Hélio Costa (PMDB-MG) para ministro das Comunicações, em julho de 2005, esse comitê foi sendo esvaziado e marginalizado pelo próprio Ministério das Comunicações e os representantes da sociedade civil perdendo a voz até que, na decisão final, não tiveram qualquer interferência.

Dois anos e sete meses após a criação do SBTVD, um novo decreto altera radicalmente a política anterior. O Decreto nº 5.820 de 29/06/2006 – apesar de criar um canal "de cultura", destinado à transmissão de produção cultural e programas regionais, e um canal "de cidadania" para transmissão, dentre outros, de programas de comunidades locais – atendeu diretamente aos grupos dominantes de mídia, em especial aos radiodifusores. A eles interessava garantir a comercialização de seus conteúdos diretamente aos usuários da telefonia móvel, sem depender da intermediação das empresas de telefonia. Mas, sobretudo, interessava evitar a oportunidade histórica de ampliação do número de concessionários de televisão no país.

O Ministério Público de Minas Gerais iniciou ação civil junto à Justiça Federal pela nulidade do Decreto nº 5.820, ainda em agosto de 2006, mas não logrou sucesso na iniciativa. O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), por sua vez, protocolou no Supremo Tribunal Federal, em agosto de 2007, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra o mesmo decreto que veio, finalmente, a ser julgada improcedente três anos depois, em 5 de agosto de 2010.

  • Regulamentação da TV Paga – Desde 2007 tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que "abre o setor de TV por assinatura para as teles, cria a separação de mercado entre produtores de conteúdo e empresas de distribuição e ainda cria cotas de programação nacional nos pacotes de canais pagos", além de revogar a Lei do Cabo de 1995.


Na sua complicada e controversa versão atual, o projeto – PLC 116 do Senado Federal – é o resultado da articulação inicial de três propostas representando grupos e interesses distintos: o PL 29/2007, do deputado Paulo Bornhausen (DEM-SC), representa as empresas de telefonia; o PL 70/2007, do deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP), representa os radiodifusores; e o PL 323/2007, dos deputados Walter Pinheiro (PT-BA) e Paulo Teixeira (PT-SP), que se situa em posição intermediária entre os interesses dos dois setores.

Aprovado em junho de 2010 na Câmara dos Deputados, a posição de diferentes atores em relação ao projeto tem oscilado na medida mesma em que o próprio projeto sofre alterações. A operadora Sky (associação dos grupos News Corporation e Globo) e a Associação Brasileira de Programadores de TV por Assinatura (ABPTA) patrocinam uma campanha publicitária denominada "Liberdade na TV", contrária ao projeto com o mote "querem intervir na sua TV por assinatura".

1.2 Níveis de concentração da propriedade

  • Propriedade cruzada – A legislação brasileira nunca se preocupou de forma efetiva com a propriedade cruzada dos meios de comunicação. O mais próximo que se chegou dessa preocupação foi na década de 1960, durante o regime militar, quando houve uma tentativa, através do Decreto-Lei 236/1967, de se estabelecer limites para o número de concessões de radiodifusão que um mesmo grupo privado poderia controlar. Esses limites, no entanto, não foram obedecidos. O Estado, que é o órgão fiscalizador, jamais interpretou a norma legal como forma de regular a concentração da propriedade.


Não há, portanto, na legislação brasileira, sobretudo na de radiodifusão, preocupação com o fato de que o mesmo grupo empresarial, no mesmo mercado, seja concessionário de emissora de rádio e/ou de televisão, e ainda proprietário de empresas de jornais e/ou de revistas.

Os principais grupos empresariais que existiram e ainda existem na mídia brasileira são multimídia, baseados na propriedade cruzada. Isso foi verdade para os Diários Associados – o primeiro grupo dominante no país – e é, evidentemente, verdade para as Organizações Globo – o maior grupo de mídia que existe no Brasil hoje.

A propriedade cruzada, para efeito de um diagnóstico da mídia brasileira na perspectiva da economia política do setor, torna irrelevante a diferença entre mídia impressa e mídia eletrônica. Nos casos mais importantes, os grupos controladores de uma e de outra são os mesmos.

Uma das conseqüências dessa omissão reguladora é que a mídia privada comercial foi sempre oligopolizada, exatamente porque se formou com base na ausência de restrições legais à propriedade cruzada dos diferentes meios.

  • Oligarquias políticas e familiares – A mídia brasileira é controlada por uns poucos grupos familiares. Mas não só por grupos familiares. Eles são também os mesmos grupos oligárquicos da política regional e local. Aparece, então, uma questão extremamente importante: o coronelismo eletrônico, prática política através da qual forças no controle do aparelho de Estado se utilizam das outorgas de radiodifusão como moeda de barganha política. Dessa forma, o poder concedente desse serviço público, muitas vezes, se confunde com o próprio concessionário, atualizando e reproduzindo, com roupagem nova, o coronelismo político da República Velha para o tempo presente. [Para uma discussão conceitual sobre a prática política do "coronelismo" ver, neste Observatório, Venício A. de Lima e Cristiano Aguiar Lopes, "Rádios Comunitárias: Coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)".]


  • Igrejas – Tem havido um avanço importante do controle tanto da radiodifusão quanto da mídia impressa brasileiras por diferentes igrejas. O maior avanço é das igrejas evangélicas neopentecostais, embora, historicamente, a igreja católica seja a maior concessionária de emissoras de rádio no Brasil. Em alguns casos, a presença das igrejas como concessionárias é bastante evidente – como, por exemplo, na programação vespertina dos canais da TV aberta, tanto em VHF como em UHF.


  • Hegemonia de um único grupo privado – As Organizações Globo concentram as verbas publicitárias, de maneira desproporcional à audiência relativa de seus veículos: em torno de 60% do "bolo publicitário". Para a Rede Globo de Televisão, que lidera a audiência deste segmento, o percentual chega a ser ainda maior, de tal forma que se somarmos todas as outras emissoras comerciais de televisão veremos que a elas são destinados apenas entre 35% e 40% do volume total de publicidade.


  • Concentração da propriedade – Quando se trata da radiodifusão e da imprensa, o Brasil se antecipou à tendência de concentração da propriedade na mídia manifestada pelo processo de globalização. A propriedade sempre foi concentrada e, ademais, concentrada dentro de parâmetros inexistentes em outros países. A sinergia verticalizada em áreas da produção de entretenimento (telenovelas, por exemplo) é prática consagrada na TV comercial há muitos anos. Não há rigor no cumprimento dos poucos limites existentes em lei com relação ao número possível de concessões de rádio e TV para o mesmo grupo empresarial no mesmo mercado. A propriedade cruzada na radiodifusão e entre a radiodifusão e a imprensa é permitida sem restrições. Não há limites para o tamanho das audiências das redes de televisão. Esse quadro regulatório gerou um fenômeno de concentração horizontal, vertical, cruzado e "em cruz", sem paralelo. O Brasil é o paraíso da radiodifusão privada comercial oligopolizada.


Balanço do governo Lula:

Não houve qualquer alteração fundamental no quadro de concentração da propriedade da mídia no Brasil entre 2003 e 2010.

1.3 Financiamento dos meios de comunicação

Na tradição brasileira, o Estado tem sido – direta ou indiretamente – uma das principais e, em muitos casos, a principal fonte de financiamento da mídia privada comercial, seja ela impressa ou eletrônica. Basta verificar quais são os maiores (em termos de recursos publicitários) anunciantes dos jornais, das revistas semanais e dos telejornais das principais redes de televisão privada do país.

Balanço do governo Lula:

Reorientação na publicidade oficial – Uma importante descentralização na alocação dos recursos publicitários oficiais teve início em 2003. Apesar dos grupos dominantes da grande mídia continuarem a ser os destinatários prioritários das verbas, o número de municípios cobertos pulou de 182, em 2003, para 2.184, em 2009, e o número de meios de comunicação programados subiu de 499 para 7.047, no mesmo período.

2. Principais avanços, recuos e derrotas

2.1. Avanços

Além do início do mencionado processo de regionalização da alocação dos recursos de publicidade oficial, registrem-se os outros seguintes avanços:

  • Empresa Brasil de Comunicação (EBC) – O ano de 2007 ficará marcado pelo nascimento da Empresa Brasil de Comunicação (EBC-TV Brasil), resultado da fusão da Radiobrás com a ACERP/TVE, a TVE do Maranhão e o canal digital de São Paulo. Sua conformação final surgiu das dezenas de emendas que a Medida Provisória 398/07 recebeu no Congresso Nacional.


Apesar das críticas que podem ser feitas ao processo de sua implantação – e são muitas –, a EBC, finalmente criada pela Lei 11.652, de 7 de abril de 2008, representa um importante avanço: está "no ar" uma TV que institucionalmente se define como pública e a disputa para definir o que é uma televisão pública se desloca agora para a sua prática.

  • 1ª. Conferência Nacional de Comunicação (CONFECOM) – A realização da CONFECOM – a última conferencia nacional a ser convocada de todos os setores contemplados pelo "Título VIII – Da Ordem Social" na Constituição de 1988 – sempre encontrou enormes resistências dos grandes grupos de mídia. Seis entidades empresariais se retiraram da Comissão Organizadora: Associação Brasileira de Emissoras de Radio e Televisão (ABERT); Associação Brasileira de Internet (ABRANET); Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA); Associação dos Jornais e Revistas do Interior do Brasil (ADJORI Brasil); Associação Nacional dos Editores de Revistas (ANER) e Associação Nacional de Jornais (ANJ). Permaneceram a Associação Brasileira de Radiodifusores (ABRA), uma dissidência da ABERT fundada pelas redes Bandeirantes e Rede TV!, em maio de 2005; e a Associação Brasileira de Telecomunicações (TELEBRASIL), criada em 1974, com a missão de "congregar os setores oficial e privado das telecomunicações brasileiras visando à defesa de seus interesses e o seu desenvolvimento".


Afinal realizada em Brasília, de 14 a 17 de dezembro de 2009, a 1ª CONFECOM teve a participação de mais de 1.600 delegados, democraticamente escolhidos em conferências estaduais nas 27 unidades da Federação, representando movimentos sociais, parte dos empresários de comunicação e telecomunicações e o governo. Dela saíram mais de 600 propostas que deverão servir de referência para apoio e/ou apresentação de projetos de regulação do setor de comunicações no Congresso Nacional. Acima de tudo, e independente do boicote e da satanização quase unânime por parte da grande mídia, a 1ª CONFECOM ampliou de forma inédita a mobilização da sociedade civil e o espaço público de debate sobre as comunicações no país.

  • Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) – Em maio de 2010 foi instituído o Programa Nacional de Banda Larga pelo decreto n. 7.175/2010 com o objetivo de "fomentar e difundir o uso e o fornecimento de bens e serviços de tecnologias de informação e comunicação, de modo a: massificar o acesso a serviços de conexão à Internet em banda larga; acelerar o desenvolvimento econômico e social; promover a inclusão digital; reduzir as desigualdades social e regional; promover a geração de emprego e renda; ampliar os serviços de Governo Eletrônico e facilitar aos cidadãos o uso dos serviços do Estado; promover a capacitação da população para o uso das tecnologias de informação; e aumentar a autonomia tecnológica e a competitividade brasileiras." A Telecomunicações Brasileiras S.A. (Telebrás) foi reativada e será a gestora do plano, estando prevista a atuação de empresas privadas de forma complementar para fazer os serviços chegarem ao usuário final.


O PNBL ainda é uma promessa e o presidente da Telebrás tem acusado as empresas privadas de telefonia de o boicotarem. Na verdade, cinco grupos são responsáveis por 95% da oferta atual de banda larga no Brasil – Oi, Telefônica, Embratel/Net, GVT e CTBC – enquanto 2.125 pequenos provedores respondem pelos restantes 5% do mercado. Há pouca ou nenhuma competição e os grupos dominantes são contra a inclusão de metas de expansão da infraestrutura de banda larga nos contratos de concessão das empresas de telefonia que estão em fase de revisão na ANATEL, a agência reguladora do setor.

2.2 Recuos e derrotas

Além dos registros já feitos em relação à não elaboração até mesmo de um projeto de Lei Geral para regulação da comunicação eletrônica; do recuo em relação à transformação da ANCINE em ANCINAV; da inoperância em relação à legislação das rádios comunitárias; do recuo em relação ao decreto das RTVIs e à escolha do modelo tecnológico para implantação da TV digital, também merecem menção:

  • Cadastro geral dos concessionários de radiodifusão – O primeiro ministro das Comunicações do governo Lula, deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), ao assumir a pasta, em janeiro de 2003, prometeu que tornaria público o cadastro com os nomes de todos os concessionários das emissoras de rádio e de televisão no país. De fato, cumpriu a promessa em novembro de 2003: o cadastro, embora incompleto e falho, passou a estar disponível no site do MiniCom.


Foi a primeira vez que o público tomou conhecimento dessa informação básica. Os Decretos Legislativos confirmando as outorgas são publicados no Diário Oficial da União (DOU), mas trazem apenas os nomes das empresas. Não especificam os nomes de seus sócios.

No início de 2007, o cadastro "desapareceu" do site do MiniCom. Desde então, o interessado em informações oficiais só pode recorrer àquelas disponíveis no site da ANATEL. Lá não existe um cadastro geral com a relação de concessionários, mas sim dois bancos de dados: o Sistema de Acompanhamento de Controle Societário (SIACCO) e o Sistema de Informação dos Serviços de Comunicação de Massa (SISCOM).

No SIACCO pode-se pesquisar o "perfil das empresas" por razão social ou CNPJ e, a partir daí, chega-se ao quadro societário e/ou à diretoria das entidades – em geral, incompletos. Já no SISCOM a busca pode ser feita por localidade e por serviço. Vale dizer: aquele que quiser compor um cadastro completo deverá pesquisar município por município.

Do cadastro geral disponibilizado ao público em novembro de 2003 regredimos para uma informação fragmentada que, na prática, impede a construção de um quadro geral das concessões e de seus concessionários.

  • Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) – O governo encaminhou projeto de criação do CFJ ao Congresso Nacional em 4 de agosto de 2004. Segundo a FENAJ (Federação Nacional de Jornalistas), o principal objetivo era "promover uma cultura de respeito ao Código de Ética dos Jornalistas". Diante da intensa e violenta oposição da grande mídia, no entanto, a própria FENAJ, preparou e distribuiu, em Brasília, um substitutivo ao projeto original, no dia 13 de novembro, agora de criação de um Conselho Federal de Jornalistas como "órgão de habilitação, representação e defesa do jornalista e de normatização ética e disciplina do exercício profissional de jornalista". Apesar disso, através de votação simbólica, por acordo de lideranças, a Câmara dos Deputados decidiu desconsiderar o substitutivo e rejeitar o primeiro projeto, em 15 de dezembro de 2004.


  • III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3) – Houve importante recuo do governo Lula em relação às diretrizes originais para a comunicação constantes do PNDH3 (Decreto nº 7.037, de 21 de Dezembro de 2009). Menos de cinco meses depois, novo decreto (Decreto nº. 7.177 de 12 de maio de 2010) alterou o anterior e, no que se refere especificamente ao direito à comunicação: (a) manteve a ação programática (letra a) da Diretriz 22 que propõe "a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados"; (b) exclui as eventuais penalidades previstas no caso de desrespeito às regras definidas; e (c) exclui também a letra d, que propunha a elaboração de "critérios de acompanhamento editorial" para a criação de um ranking nacional de veículos de comunicação.


  • Conselho de Comunicação Social – Na Constituinte de 1987-88, a proposta original de criação de um "órgão regulador independente e autônomo" foi transformada em "órgão auxiliar" que deveria apenas ser ouvido quando o Congresso Nacional julgasse necessário (Artigo 224). Essa alteração deu origem ao Conselho de Comunicação Social (CCS). Apesar de criado, todavia, o CCS sempre enfrentou forte resistência de boa parte dos parlamentares.


A lei que regulamentou a criação do CCS (Lei 8339/1991) foi aprovada pelo Congresso Nacional em 1991, mas ele só logrou ser instalado em 2002, como parte de um polêmico acordo para aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que, naquele momento, constituía interesse prioritário para os empresários da grande mídia. A Emenda Constitucional nº 36 (Artigo 222), aprovada em maio de 2002, permitiu a propriedade de empresas jornalísticas e de radiodifusão por pessoas jurídicas e a participação de capital estrangeiro em até 30% do seu capital total.

Mesmo sendo apenas um órgão auxiliar, o CCS, quando instalado, demonstrou ser um espaço relativamente plural de debate de questões importantes do setor – concentração da propriedade, outorga e renovação de concessões, regionalização da programação, TV digital, radiodifusão comunitária etc. Vencidos os mandatos de seus primeiros membros, houve um atraso na confirmação dos membros para o novo período de dois anos, o que ocorreu apenas em fevereiro de 2005. Ao final de 2006, no entanto, totalmente esvaziado, o CCS fez sua última reunião. Os membros para um terceiro mandato não foram indicados e o CCS não mais se reuniu.

3. Contexto e estratégias

A maioria das propostas de políticas públicas que a sociedade civil organizada considera avanços no processo de democratização das comunicações não foi implementada no período 2003-2010. Ao contrário, muitas das iniciativas neste sentido, como vimos, foram sendo, uma a uma, abandonadas ou substituídas por outras que negavam as intenções originais. Existem, no entanto, exceções importantes.

Em diferentes ocasiões, ficaram também evidentes as contradições e conflitos de orientação política entre setores internos ao próprio governo, em especial o Ministério das Comunicações, o Ministério da Cultura e a SECOM-PR. Registre-se, por exemplo, a ausência, na prática, do Ministério das Comunicações tanto do esforço de elaboração de um projeto de LGCEM (liderado pela SECOM), quanto da instituição e implementação do PNBL (liderado pelo Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital, vinculado diretamente ao Gabinete Pessoal do Presidente da República).

Da mesma forma, ficou mais de uma vez evidente a impotência do Estado diante dos grandes grupos de mídia, assim como ficou claro o enorme poder histórico desses grupos, ainda capazes de interferência direta na própria governabilidade do país.

Considere-se ainda que algumas questões relevantes não puderam ser tratadas aqui. Dois exemplos: (1) houve ou não continuidade na prática do coronelismo eletrônico, isto é, no uso das autorizações, concessões e renovações de radiodifusão como moeda de barganha política? (2) de que forma decisões do Judiciário afetaram direta ou indiretamente a democratização das comunicações [não exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalista; inconstitucionalidade total da Lei de Imprensa de 1967 e o direito de resposta]?

O período 2003-2010 foi também marcado (1) pelo formidável avanço da internet e (2) pelo recrudescimento da posição radical dos grupos privados de mídia em relação a qualquer proposta de regulação das comunicações, oriunda ou não do governo.

3.1 Avanço da internet

Dados do Ibope revelam que "das cerca de 60 milhões de pessoas que acessaram a internet em 2008, 67% fazem parte das classes C, D e E. Cerca de 80% dessas pessoas têm renda familiar mensal de até cinco salários mínimos". Dessa forma, "de ferramenta quase exclusiva da elite nos anos 1990, a internet encerra a primeira década do século 21 tendo como usuário um indivíduo cada vez mais parecido com o brasileiro médio".

Por outro lado, o PNBL – já mencionado – se devidamente implementado em articulação com políticas específicas de inclusão digital, renova esperanças de avanço ainda maior no processo de universalização da internet nos próximos anos.

3.2 Intolerância

Alguns exemplos da radicalização crescente por parte dos atores dominantes no campo das comunicações:

  • Partidarização – A presidente da Associação Nacional de Jornais admitiu publicamente a partidarização da mídia ao afirmar, em março de 2010:


"A liberdade de imprensa é um bem maior que não deve ser limitado. A esse direito geral, o contraponto é sempre a questão da responsabilidade dos meios de comunicação. E, obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo, de fato, a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada. E esse papel de oposição, de investigação, sem dúvida nenhuma incomoda sobremaneira o governo." (Cf. "Ações contra tentativa de cercear a imprensa", O Globo, 19/3/2010, p. 10)

Essa partidarização tem sido evidenciada rotineiramente na cobertura política realizada pela grande mídia, em particular ao tempo das campanhas eleitorais [cf. Venício A. de Lima (org.); A Mídia nas Eleições de 2006. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007].

É oportuno registrar que a partidarização da mídia tem como corolário não só o enfraquecimento dos partidos, como sua própria despolitização, na medida em que são afastados da política cotidiana e confinados às formalidades e à burocracia de seu funcionamento legal e dos procedimentos eleitorais.

  • "Democratização da comunicação" – A radicalização chegou a tal ponto que até a expressão "democratização da comunicação" passou a ser satanizada pela grande mídia. Propostas para a "democratização da comunicação", muitas vezes simples referências a normas e princípios consagrados na Constituição de 1988, passam a ser imediatamente rotuladas de autoritárias ou de ameaças à liberdade da imprensa. Praticamente não há diálogo ou negociação entre os atores dominantes e a sociedade civil. A retirada das associações que representam os principais grupos de mídia da Comissão Organizadora da 1ª CONFECOM talvez seja o caso mais emblemático desse tipo de intolerância.


Em 19 de outubro de 2010, a aprovação pela Assembléia Legislativa do Ceará do "Projeto de Indicação nº 72.10", que propõe a criação do Conselho Estadual de Comunicação Social (CECS), detonou um novo ciclo de generalizada reação da grande mídia e da própria OAB nacional. Na ocasião, o advogado e editor do suplemento "Direito & Justiça" do Correio Braziliense, referindo-se às propostas aprovadas pela 1ª. CONFECOM, chegou a afirmar que "Goebbels, encarregado por Hitler da difusão da propaganda nazista e de eliminar adversários do regime, não teria feito melhor" (cf. Josemar Dantas, "Democracia em Risco", suplemento "Direito&Justiça", Correio Braziliense, 8/11/2010, p. 2).

Considerando a radicalização e a intolerância que têm marcado a relação entre os principais atores do campo nos últimos anos, o futuro próximo certamente reserva imensos desafios para a democratização das comunicações no Brasil.

*Texto comissionado pela Fundação Friedrich Ebert (FES) e apresentado no seminário "Partidos Políticos Progresistas y Medios de Comunicación en el Cone Sur", realizado em Santiago (Chile), de 6 a 7 de dezembro de 2010; título original "Política de comunicações no governo Lula (2003-2010)"

Desculpa para calar a opinião

Eu não frequento clubes que me aceitem como sócio. (Groucho Marx, 1890-1977, comediante, EUA).

 

O respeitado Clube de Editores e Jornalistas de Opinião do Rio Grande do Sul, que reúne duas dezenas dos mais importantes colunistas e blogueiros do Estado, tomou uma grave decisão na semana passada. Por escassa maioria, numa reunião virtual feita pela internet, o Clube de Opinião decidiu “não opinar” sobre o inclemente processo que a família do ex-governador gaúcho Germano Rigotto move contra um pequeno jornal de Porto Alegre, o JÁ.

A ação judicial, que completa dez anos, está matando financeiramente o jornal de cinco mil exemplares editado há 25 anos pelo jornalista Elmar Bones, que em agosto passado teve suas contas pessoais bloqueadas pelos advogados dos Rigotto. A valente opção não opinativa do Clube de Opinião teve uma bela desculpa: “evitar qualquer conotação política-eleitoral” antes do pleito de 3 de outubro, já que Germano Rigotto é candidato ao Senado pelo PMDB gaúcho. Num sereno, mas contundente editorial publicado no domingo (19) no site do jornal e reproduzido neste OI, Elmar Bones respondeu, batendo no osso da questão:

“Pode ser uma maneira cômoda de contornar uma situação espinhosa, mas essa interpretação não encontra base nos fatos e contraria a lógica da democracia. O processo eleitoral, que exige verdade e cobra opinião do eleitor, não pode ser usado como pretexto para a omissão, o silêncio e a desinformação”.

Bones, que como Groucho não é sócio do clube, poderia usar o raciocínio que o comediante Marx usava para definir “inteligência militar”: “Clube de Opinião sem opinião é uma contradição em termos”. A infeliz decisão da entidade gaúcha carteliza e uniformiza, por baixo, o que deveria ser livre e múltiplo: o pensamento. É o fundo do poço de uma incômoda questão que constrange, envergonha e deprime a imprensa do Rio Grande do Sul, um celeiro de bravos profissionais que iluminaram o jornalismo brasileiro nos momentos mais duros de sua história, quando era necessária muita opinião, muita coragem, muita resistência. Elmar Bones é um sobrevivente daqueles tempos, quando então comandava o CooJornal, uma das legendas da valente imprensa nanica que afrontava os generais da ditadura de 1964.

A omissão

A candente questão que o clube gaúcho tangencia é que o JÁ não está sendo punido por sua opinião, mas pela embaraçosa informação que publicou em 2001: o envolvimento de Lindomar Rigotto numa licitação fraudulenta na CEEE, a estatal de energia elétrica. Enxertado na diretoria financeira pelo irmão Germano, então o poderoso líder do governo do PMDB na Assembléia Legislativa, o mano Lindomar fez uma mistureba financeira tão grande que acabou sendo o personagem central de um CPI que indiciou ele, outras onze pessoas e onze empresas. O cabeça da quadrilha, que montou a operação na CEEE, era o irmão menos famoso de Rigotto, segundo o relatório final da CPI: “De tudo o que se apurou, tem-se como comprovada a prática de corrupção passiva e enriquecimento ilícito de Lindomar Vargas Rigotto”, escreveu corajosamente o relator e deputado Pepe Vargas (PT), apesar de ser primo de Lindomar e Germano.

Essa era a reportagem de capa que o JÁ publicou há dez anos, sob o título “Caso Rigotto – um golpe de US$ 65 milhões e duas mortes não esclarecidas”. Não tinha nada de opinião. Era pura informação, matéria prima do bom jornalismo, baseado em peças do Ministério Público e nos autos da CPI, agregando detalhes sobre a vida turbulenta de Lindomar, que acabou assassinado por assaltantes de sua casa noturna, no litoral gaúcho, em 1999. A matéria do jornal arrebatou em 2001 os principais troféus de jornalismo do sul do país – o Esso Regional e o ARI, da Associação Riograndense de Imprensa. E acabou premiada, também, com o processo da família Rigotto.

O Clube de Opinião achou por bem não opinar nada sobre este vergonhoso, continuado ataque ao primado da liberdade de expressão no país. Se levassem a sério seu pretexto para este mutismo – “evitar qualquer conotação político-eleitoral” –, os bravos formadores de opinião do Rio Grande do Sul deveriam se esquivar de gastar tinta e tempo com assuntos constrangedores como a bolsa-família da ex-ministra Erenice Guerra, que empregou a parentada em órgãos públicos e tinha no coração do governo Lula um filho tão empreendedor quanto o irmão de Germano Rigotto. A intermediação de Israel Guerra, conforme a capa da revista Veja da semana passada, arrumou para um empresário aflito um contrato camarada de R$ 84 milhões nas entranhas dos Correios. A lambança de Lindomar Rigotto, segundo a manchete do JÁ, lesou os cofres públicos gaúchos, em valores corrigidos, numa soma dez vezes maior: R$ 840 milhões, a maior fraude da história do Rio Grande.

A contradição

Se tivesse o mesmo comportamento caridoso que hoje oferta ao candidato Germano Rigotto, que imagina preservar, o Clube de Opinião deveria se esquivar também de falar sobre os fatos constrangedores que já demitiram quatro funcionários da Casa Civil de Lula e provocam evidentes embaraços na candidata Dilma Rousseff. É um escândalo de forte conotação política, e supostamente eleitoral, tanto quanto a ação que garroteia o jornal de Elmar Bones.

Apesar dessa contradição, nenhum dos bravos sócios do clube deixa de bater na Erenice, criatura criada por Dilma, que agora diz não ter nada a ver com isso: “Eu não posso responder por ela”, esquiva-se a petista. Aliás, a mesma desculpa de Rigotto, que alega não ter nada a ver com a perseguição ao JÁ: “Eu desconheço o processo contra o JÁ. Isso é coisa da minha mãe”, fantasia Germano. Dona Julieta Rigotto tem 89 anos.

Um dos mais ferozes membros do Clube de Opinião gaúcho é Políbio Braga, dono do blog mais influente e acessado do sul do país, com quase 100 mil assinantes. Militante estudantil de esquerda no início dos anos 1960 em Santa Catarina, foi diretor da Folha Catarinense, do Partido Comunista, onde era apenas simpatizante, não filiado. Chegou a ser presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), na época em que José Serra presidia a União Nacional dos Estudantes (UNE). Depois do golpe de 1964 foi preso pela ditadura uma dúzia de vezes e, na mais longa delas, cumpriu seis meses de pena no antigo presídio do Ahú, um bairro de Curitiba.

No comando de seu blog, hoje, Políbio é contundente, bem informado e impiedoso, principalmente com tudo que acontece no turbulento entorno da Casa Civil e da candidata petista à presidência da República. Quando Veja explodiu nas bancas no sábado (11/9), Políbio festejou: “Estoura escândalo maior do que o Mensalão no Governo Lula”, era a manchete do blog. Sobre o escândalo do irmão de Rigotto, matematicamente dez vezes maior do que o do filho de Erenice, quinze vezes mais estrondoso que a quadrilha dos 40 do mensalão chefiada por José Dirceu, Políbio não ousou escrever uma única linha, muito menos dar sua retumbante opinião. No fim de agosto, o Observatório da Imprensa abordou, pela segunda vez, a saga do JÁ e de Elmar Bones, num texto (“Como calar e intimidar a imprensa ") que teve larga repercussão na internet – e nenhuma no ágil e abrangente blog de Políbio Braga.

O rabo

Autor desse texto, liguei várias vezes pedindo que Políbio abrisse espaço para o tema Rigotto vs. JÁ, confiando no belo lema que seu blog desfralda: “De rabo preso com a notícia”. Cansado de minha cobrança, Políbio acabou admitindo:

“Sobre este caso, devo te dizer que adotei uma linha de ‘rabo preso’ com meus amigos, que não são muitos, mas que prezo demais. Um deles é o Rigotto. Ao longo dos últimos 10 anos, tenho conversado com ele a toda hora, temos almoçado juntos, ele é fonte que consulto a todo momento, vou votar nele e também toda a minha família e os amigos que têm razões para fazer isto”.

Assim, descobri consternado que o Políbio eleitor prevaleceu sobre o Políbio jornalista e o seu festejado blog, além da notícia, tinha o rabo irremediavelmente preso a Germano Rigotto.

É justo esclarecer que Políbio Braga e seus colegas de clube não estão sozinhos neste vasto e silencioso constrangimento. Nenhum grande órgão da imprensa gaúcha se atreveu a mencionar o caso do JÁ e seus escandalosos antecedentes, de forte “conotação político-eleitoral” e um evidente poder letal sobre a boa imagem de Rigotto, que tem um chamativo coração vermelho como símbolo de sua campanha ao Senado.

Na RBS, a maior rede regional de comunicação da América Latina (Zero Hora, o maior do estado, e mais sete jornais, 21 emissoras de TV, 24 de rádio e sete portais de internet), o assunto passa batido pela pauta diária do conglomerado de mídia. Rigotto, sempre que pode, lembra aos amigos que tem uma relação especial de amizade com Nelson Sirotski, o diretor-presidente do grupo. O mesmo acontece no segundo maior grupo do estado, a Record, onde se destacam o Correio do Povo e a rádio Guaíba, hoje sob controle da Igreja Universal.

Na sexta-feira (10/9), aconteceu algo inesperado: o colunista do jornal e âncora da rádio Juremir Machado da Silva abriu corajosamente espaço no seu programa de uma hora, a partir das 13h, para ouvir Elmar Bones ao vivo no estúdio da rádio Guaíba. Juremir foi o primeiro nome importante do jornalismo sulista e a Guaíba o primeiro grande veículo da imprensa gaúcha que conseguiu quebrar o bloqueio de silêncio e abrir espaço para a saga do JÁ. Quando veio o primeiro intervalo do programa, um esbaforido executivo da área comercial irrompeu no estúdio para implorar ao entrevistador e a seu convidado: “Pelo amor de Deus, não misturem esta entrevista com a campanha eleitoral do Rigotto! O homem ‘é assim’ com o nosso presidente!”.

O pastor Natal Furucho, o presidente da Record no sul do país, seria mais um chefão da mídia que “é assim” com Germano Rigotto, o que explicaria o estrondoso silêncio midiático que envolve suas desditas.

O sumiço

Na quinta-feira (9/9), um dia antes da inédita entrevista na Guaíba, a história do JÁ ressuscitou no jornal O Sul, de Porto Alegre. Não era nenhuma ousadia da casa, mas a nota de abertura da coluna de Cláudio Humberto, um profissional que Políbio Braga inveja como um “respeitado e bem informado jornalista” e que é reproduzido em outros 36 jornais do país, além d’O Sul. Furando toda a imprensa gaúcha, o colunista de Brasília informava: “Bomba política explode no colo de Rigotto”. Era a notícia de que, após 15 anos sob um inacreditável “segredo de justiça”, a juíza Fabiana Zilles, da 2ª Vara Cível da Fazenda Pública, em Porto Alegre, dera por “concluso” o caso da roubalheira da CEEE. Ou seja, falta agora apenas a sentença da juíza sobre a maior fraude gaúcha, que atinge diretamente o mano esperto que Germano Rigotto plantou na estatal.

A coluna de Cláudio Humberto é publicada simultaneamente nos três jornais do Grupo NH, que domina a rica região do Vale do Rio dos Sinos, em Novo Hamburgo, Canoas e São Leopoldo, no entorno da região metropolitana de Porto Alegre. Apesar disso, estranhamente, a nota daquele dia que brilhava n’O Sul desapareceu num passe de mágica dos jornais do NH. O dono do grupo é Mário Gusmão, um dos dois brasileiros que integra a Comissão de Liberdade de Imprensa e Informação da poderosa Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol). O outro brasileiro é Gustavo Ick, também do jornal NH do mágico Gusmão. A comissão da SIP, como o Clube de Opinião gaúcho, jamais opinou ou sequer colocou em pauta o caso do JÁ.

No dia seguinte, na mesma sexta-feira em que Elmar falava na Guaíba, o blog de Políbio Braga no mesmo O Sul replicava com uma manchete forte: “Jogo pesado mira candidatura de Rigotto”. Citava a própria nota de véspera de Cláudio Humberto, que ele classificou como “oblíqua”, e condenava o “saco de maldades” contra o PMDB supostamente aberto pelo “resgate do caso do jornal JÁ, acionado em juízo pela mãe de Rigotto, ofendida com reportagens sobre o filho morto, Lindomar”. E mais não disse. Parecia uma mera travessura de um jornaleco irresponsável, enxovalhando a memória de um jovem desafortunado. Políbio esqueceu de fazer a conexão natural dos fatos que qualquer jornalista com o rabo preso com a notícia, só com a notícia, deveria fazer.

A resposta

O “resgate do caso do JÁ” foi engenho e bravura deste Observatório, o primeiro a contar os bastidores da ação dos Rigotto contra Elmar Bones (ver “O jornal que ousou contar a verdade “, 24/11/2009, e “Como calar e intimidar a imprensa “, 31/8/2010), assinados por este jornalista. O simples, inegável e transparente relato da saga do jornal e de seu editor, premiado pela reportagem e processado pela família do morto, virou “jogo sujo” na estranha interpretação do blogueiro Políbio Braga. Se não tivesse o rabo preso com o seu amigo Rigotto, ele poderia beber na fonte do límpido editorial que Elmar Bones publicou no site do jornal. Ali está claro que o caso do JÁ, engavetado desde julho de 2007, foi desarquivado em fevereiro de 2007 não pelo réu Elmar Bones, mas pelos advogados da própria família Rigotto. O saco de maldades, portanto, foi escancarado por quem, agora, teme sua repercussão político-eleitoral.

Definhando financeiramente, o JÁ teve em 2006 a altivez de recusar uma milionária oferta de um partido adversário do então governador Germano Rigotto, que se preparava para tentar a reeleição. A proposta era reimprimir 100 mil exemplares da edição maldita de 2001, contando os deslizes contábeis do irmão de Rigotto na CEEE, e espalhar a bomba pelo Rio Grande do Sul. A digna resposta de Elmar Bones, ao recusar a oferta, só cabe na cabeça de um jornalista que não tem rabo preso: “Nosso jornal não é instrumento político de ninguém”, ensinou o editor do JÁ, encerrando a conversa.

Os artigos pioneiros do Observatório ecoaram fundo nas redações dos principais jornais gaúchos – Zero Hora, Correio do Povo, Jornal do Comércio, O Sul –, evidência de que os bons repórteres e editores do sul continuam atentos e inquietos, todos eles constrangidos com o silêncio que vem de cima. Em telefonemas e e-mails enviados diretamente a este jornalista, que assina aqueles e este texto, uns e outros se mostram solidários a Bones, conscientes do crime que se comete contra a liberdade de expressão e absolutamente impotentes para executar ou simplesmente sugerir esta pauta obrigatória. “Os textos do Observatório constituem uma paulada em nossas consciências amorfas”, me disse um deles, em tom emocionado e sofrido. Apesar de ser de conhecimento público o nome da juíza, o endereço do tribunal e o número do processo do caso da CEEE, nenhum repórter teve a iniciativa de apurar esta história, como mandam as regras elementares do bom jornalismo, amarrado apenas pela busca da verdade e do interesse público.

A fresta

Apesar das dificuldades, aos poucos o espírito guerreiro de Elmar Bones se afirma e se impõe, furando a bolha de silêncio, como aconteceu com o pioneiro Juremir, na Guaíba. O Estado de S.Paulo publicou uma matéria (11/9), enquanto notas esclarecedoras brotam em blogs influentes e solidários, como os de Carlos Brickmann, Cláudio Humberto e Ricardo Noblat. Dias atrás, o blog Conversa Afiada, de Paulo Henrique Amorim, abriu espaço para um inédito pingue-pongue com Elmar Bones, de enorme repercussão na internet pela história que parecia novidade, mas que já tem dez anos de agonia e resistência. Inédito, no caso, era a disposição do repórter de ouvir o réu de uma das mais longas ações da justiça contra a liberdade de expressão.

Parece improvável que Germano Rigotto e seus amigos consigam estancar o vazamento crescente de uma epopéia que não pode ser silenciada, não deve ser escondida e não pode ser tolerada. A verdade flui sempre pelas frestas cada vez mais largas de um sistema multimídia que confronta a mentira e desafia o silêncio – e torna caricata a figura anacrônica do “jornalista com rabo preso”. Na eleição de 2006, um pequeno instituto de pesquisas de Porto Alegre, o Methodus, desafiou o ridículo ao apostar na vitória do azarão Yeda Crusius contra os favoritos Germano Rigotto e Olívio Dutra. Deu no que deu.

Na semana passada, o Methodus publicou sua segunda pesquisa, encomendada pelo Correio do Povo para a corrida ao Senado no sul. Em relação ao levantamento do mês anterior, Ana Amélia Lemos (PP) subiu 12,4 pontos percentuais, chegando à liderança com 51,8%. Paulo Paim (PT) vinha em segundo, com 47,7%. Germano Rigotto (PMDB) caiu 6,8 pontos percentuais em relação à primeira pesquisa, ficando agora com 40,9%.

Pelo silêncio da grande mídia, não se sabe até que ponto a queda abrupta de Rigotto pode ser atribuída à verdade latejante do JÁ e ao potencial corrosivo do escândalo da CEEE. O bravo Clube de Opinião também não opinou sobre esta possibilidade.

Mídia & Governo: Razões para a hostilidade crescente

O processo eleitoral e a indisfarçável partidarização revelada na cobertura jornalística dos principais veículos da grande mídia provocaram, nas últimas semanas, reações cada vez mais explícitas e contundentes por parte do próprio presidente da República. Por outro lado, o atual governo chegará ao seu término enfrentando uma hostilidade crescente por parte desses veículos. A virulência dos ataques de editoriais e colunistas contra o governo e o próprio presidente Lula encontram poucos e raros paralelos na história política brasileira.

A hostilidade entre alguns veículos e o governo é agora, mais do que antes, inegavelmente recíproca e pública.

Razões intrigantes

Nesse contexto, diante da proximidade das eleições e da provável vitória da candidata apoiada pelo atual governo – aos quais esses veículos fazem oposição explícita – é inevitável que surjam questões que não só busquem compreender o que vem acontecendo no processo eleitoral, mas, sobretudo, questões prospectivas de como poderão ser as relações da grande mídia com o próximo governo.

Uma questão, em particular, desafia o senso comum: afinal, quais razões teriam levado os principais grupos da grande mídia a fazer oposição sistemática a um governo que continua a contar com maciço apoio popular?

Um observador da mídia que não tem acesso a informações dos bastidores do poder – nem propriamente político, nem midiático – por óbvio, também não tem como responder a essa pergunta. Todavia, é intrigante a constatação do que está a ocorrer.

No Brasil, ao contrário do que acontece em alguns países da América Latina, os oito anos de governo Lula não representaram a mais remota ameaça à grande mídia. Em nossos vizinhos, apesar da oposição de grupos dominantes de mídia, foram democraticamente eleitos governos que tomaram a iniciativa de rever e/ou propor nova regulação para o setor de comunicações, desafiando interesses historicamente enraizados. Aqui nada disso ocorreu.

A grande mídia nativa não foi objeto de qualquer regulação ou saiu derrotada de qualquer disputa em relação às políticas públicas do setor de comunicações. Basta verificar que nos projetos (ou mesmo pré-projetos) e programas nos quais ela considerou estarem seus interesses ameaçados, houve recuo do governo Lula e/ou os projetos não lograram aprovação no Congresso Nacional.

Exemplos: a criação do Conselho Federal de Jornalismo (em 2004); a transformação da Ancine em Ancinav (em 2005); a criação das RTVIs (em 2005); a guinada em relação ao modelo de TV Digital (de 2003 para 2006); a nova regulação das rádios comunitárias que apesar de recomendações geradas em dois grupos de trabalho não saiu do papel (2003 e 2005); a regulação da TV paga através do PL 29 (2007) que até hoje tramita no Congresso Nacional; o recuo nas propostas relativas ao direito à comunicação constantes da terceira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos (2009); o anunciado projeto de uma Lei Geral de Comunicação de Massa que nunca se materializou; etc. etc.

A única medida de política pública – aliás, prevista no artigo 223 da Constituição de 1988 – que logrou ser implementada pelo governo Lula foi a criação de uma empresa pública de comunicação, a EBC (Empresa Brasil de Comunicação), que, embora ridicularizada pela grande mídia, é complementar a ela e não representa qualquer ameaça.

Por outro lado, a realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, em dezembro de 2009 – que tem efeitos apenas propositivos –, foi não só boicotada como satanizada nos principais veículos de comunicação do país.

O que teria provocado, então, tamanha hostilidade dos grupos dominantes de mídia?

Vivemos em plena liberdade da imprensa. O governo não deixou de aplicar vultosos recursos em publicidade oficial paga destinada exatamente à grande mídia. Apesar disso, além da oposição política publicamente admitida inclusive pela presidente da ANJ, a grande mídia insiste em anunciar que o atual governo constitui uma permanente ameaça à liberdade de expressão e que o seu partido padece de uma obsessão autoritária e stalinista de controlar a imprensa.

Outras questões

Diante de tamanho enigma, outras questões igualmente inquietantes carecem também de resposta.

Qual será o comportamento desses veículos depois das eleições? Que tipo de relação é possível se construir entre eles e o novo governo, especialmente se for eleita a candidata que enfrentou sua oposição sistemática? Que comportamento esperam esses veículos do novo governo?

E mais: o que acontecerá com a credibilidade de veículos de mídia que (1) praticam "jornalismo investigativo" seletivo, em relação apenas a uma das candidaturas e (2) transformam suspeitas e denúncias em "escândalos políticos midiáticos, mas raramente a Justiça consegue estabelecer a veracidade das acusações?

Levando-se em conta o que está acontecendo, não só na América Latina, mas, inclusive, no processo eleitoral em curso para as eleições legislativas nos Estados Unidos, é ainda de se perguntar: a quem interessa a radicalização do processo político?

As razões verdadeiras não são fáceis de ser detectadas. Talvez seja mesmo, como se diz na conhecida fábula, "da natureza do escorpião".

 

 

* Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010.