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Ministro diz que reforma da Lei Rouanet vai combater apartheid cultural no Brasil

Prestes a enviar ao Congresso Nacional um projeto de reforma da Lei Rouanet, após um longo período de debates com o meio artístico e patrocinadores, no qual foram recebidas mais de 2 mil sugestões em consulta pública, o ministro da Cultura, Juca Ferreira, reiterou em entrevista à Agência Brasil que a mudança se faz urgente porque a legislação atual acarretou no aprofundamento de desigualdades por meio dos gastos públicos com os incentivos culturais.

O objetivo central da proposta que será encaminhada é a democratização de acesso aos financiamentos, com disponibilização para todos os produtores culturais, independentemente da área ou da região onde vivem.

“O apartheid cultural no Brasil é muito grave. O que gente quer é montar um sistema nacional que de fato atenda a demanda de todos os estados. A produção cultural já é regionalizada, mas o sistema público não atendia as demandas”, disse Ferreira.

O modelo vigente, no qual prevalece o poder de escolha do departamento de marketing das empresas beneficiadas com a renúncia fiscal, gerou concentração na captação. Só 20% dos projetos aprovados conseguem patrocínio das empresas, e desses 80% estão nas capitais Rio de Janeiro e São Paulo e 3% dos proponentes ficam com mais da metade do dinheiro aplicado.

“Na verdade, o dinheiro público estava sendo utilizado para ampliar as desigualdades, consolidar privilégios e exclusões. Boa parte das áreas culturais estava de fora, sem conseguir patrocínio, e a gente percebia uma concentração excessiva, com regiões inteiras que não recebiam praticamente nada”, criticou Ferreira.

“A Lei Rouanet passava a impressão de que era bem sucedida porque disponibilizava recursos para a área cultural num volume que antes nunca se tinha. Ficava a impressão de que, apesar das distorções, era positiva. Mas a aparência de acerto não era real”, acrescentou.

A nova Rouanet apostará no fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura (FNC) como alternativa para aqueles que não conseguem captar financiamento via renúncia fiscal. Ele seria reformulado, com fundos setoriais para lidar com cada área da cultura e com liberdade para captar recursos fora do orçamento. “Na medida em que o ministério aprove [a proposta apresentada pelo produtor cultural], já transfere o recurso para que a obra, o evento, enfim, o processo cultural se realize”, explicou Ferreira.

Haverá mudanças na atual repartição orçamentária do ministério. Hoje, 80% do dinheiro de que a pasta dispõe está sob a forma de renúncia fiscal – R$ 1,3 bilhão em 2009 – e só 20% são disponibilizados pelo FNC, num valor que não chega a R$ 400 milhões.

“A gente quer inverter isso: 80% [dos recursos devem] ser através do fundo e o resto por meio de renúncia. Vai haver uma inversão de prioridade”, garantiu Ferreira.

Para ele, isso representa sair da dependência da renúncia para criar uma série de mecanismos. "Biblioteca e museu não conseguem captar pelo mecanismo da renúncia. A empresa quer algo que dê retorno de imagem, artistas consagrados, projetos que envolvam parcela da sociedade de maior poder aquisitivo”, comparou.

Na reforma proposta, as faixas de renúncia fiscal serão ampliadas. Às duas faixas atuais – de 30% e 100% – serão acrescidas quatro, de 60%, 70%, 80% e 90%, para permitir maior contribuição da iniciativa privada.

“[Com] 100% de renúncia a empresa não bota nada e determina como deve ser usado [o recurso]. Isso é privatização do dinheiro público e a Constituição não permite. O Brasil comeu mosca quando aprovou a Lei Rouanet, porque não é constitucional você disponibilizar recursos públicos para serem empregados a partir de critérios privados”.

Outro mecanismo previsto na reforma da Lei Rouanet é a criação da Loteria da Cultura, que poderia render algo em torno de R$ 200 milhões anuais, a serem aplicados no fundo setorial das artes. “Se dispersar não tem muito significado. Recuperação de patrimônio tem uma outra escala de recursos necessários”.

Empresas mantêm uso da Lei Rouanet

Os investimentos culturais de empresas que fazem uso da Lei Rouanet, que oferece como contrapartida uma redução no Imposto de Renda (IR), apresentaram uma queda – ainda que branda – no fim do ano passado em relação a 2007. De acordo com dados do Ministério da Cultura, os investimentos feitos por meio da lei no último quadrimestre de 2008 demonstram uma redução de R$ 39 milhões em relação ao mesmo período do ano anterior – números ainda preliminares, pois os dados serão finalizados em março. Apesar da diminuição nos gastos, provavelmente reflexo da crise financeira, as empresas ainda não deram sinais de que o montante destinado a investimentos do tipo a serem feitos neste ano também será afetado. Por enquanto, o planejamento de algumas companhias para 2009 mantém – e em alguns casos amplia – a verba para a área.

O Banco Indusval Multistock (BIM) quase duplicou a verba para 2009 em comparação com a do ano passado, passando de R$ 338 mil para R$ 516,9 mil em investimentos. A Petrobras, maior patrocinador cultural do país, ainda não divulgou a previsão para esse ano – mas informa que, no ano passado, a área não foi atingida pela crise, já que manteve em 2008 o mesmo valor destinado a projetos culturais em 2007, de R$ 205 milhões.

A Lei Rouanet – a Lei nº 8.313, de 1991 – permite que projetos aprovados pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) recebam patrocínios e doações de empresas, que poderão abater os investimentos feitos no IR devido por meio de duas modalidades. Pelo artigo 18 da lei, é possível abater 100% do que foi investido, no limite de 4% do IR devido – no entanto, o rol de projetos aprováveis nesse artigo é mais restrito a áreas como música erudita e preservação do patrimônio cultural.

A outra forma é pelo artigo 26 da lei, que prevê um abatimento de 40% das doações e de 30% dos patrocínios, também no mesmo limite – grosso modo, a diferença entre ambos é que na doação não fica explícita a divulgação do nome da empresa investidora. Em geral, o retorno do investimento pelo artigo 26 não é recuperado totalmente, porém há mais áreas culturais abrangidas e de maior visibilidade, como teatro e cinema.

Apesar de menos de 5% das empresas aptas a usar as leis de incentivo à cultura o fazerem, desde que a Lei Rouanet foi criada, em 1995, os investimentos culturais feitos por meio dela mantêm o ritmo de crescimento – em 1999, por exemplo, foram investidos R$ 211 milhões, e em 2003, R$ 430 milhões. A captação de recursos se concentra no último quadrimestre, época de aprovação dos projetos. Nesse período já se pode notar uma redução nos recursos, de R$ 540 milhões nos quatro meses finais de 2007, para R$ 416 milhões no mesmo período d ano passado.

O total da captação no ano caiu de R$ 979 milhões para R$ 874 milhões, o que indica um reflexo da crise, apesar de os dados não estarem totalmente consolidados. Para o advogado Henrique Heiji Erbano, do escritório Rubens Naves Advogados, as empresas buscam a segurança do limite tributário, principalmente na crise, pois há receio de liberar verbas pela lei do incentivo e depois não ter lucro suficiente para recuperá-la, já que o abatimento é feito no IR.

Mas há indícios de que o setor cultural não sofrerá um grande baque de recursos por meio da Lei Rouanet em 2009. Até agora, foram captados cerca de R$ 15 milhões em investimentos em janeiro. A Petrobras, maior patrocinadora de projetos culturais no país – que utiliza a Lei Rouanet tanto pelo artigo 18 quanto pelo 26 -, declarou que a crise financeira não afetou a área em 2008, já que o valor destinado foi o mesmo de 2007.

Em 2008, a empresa patrocinou cerca de 700 projetos. A companhia ainda não divulgou a verba destinada ao setor para 2009, o que só fará no fechamento de seu balanço. Já a Comgás ampliou os recursos do Fundo Comgás de Patrocínio Sociocultural, criado em 2007 para a seleção de projetos que se enquadrem no artigo 18 da Lei Rouanet. Em 2008, cinco projetos foram contemplados com o valor total de R$ 1 milhão – dentre eles, o projeto do Museu da Pessoa, em São Paulo, e o Cine Tela Brasil, uma sala de cinema itinerante. Os recursos do fundo foram ampliados para R$ 1,5 milhão, com desembolso previsto no segundo semestre de 2009.

Na opinião da advogada Flávia Regina Souza Oliveira, sócia da área de terceiro setor do escritório Mattos Filho Advogados, as empresas estão preocupadas em adequar o uso da lei ao seu perfil, de modo a garantir um retorno institucional a custo zero. Um exemplo disso é o Banco Indusval (BIM), que investe desde 2005 por meio da Lei Rouanet.

De acordo com Katya Delfino, responsável pela gestão da área no banco, é difícil encontrar projetos alinhados aos valores da empresa, na área educacional. Atualmente, o banco patrocina o projeto Maré Alta, que atende 1,5 mil pessoas em São Paulo, cuja verba para 2009, de R$ 516,9 mil, é quase o dobro do valor aplicado no ano passado. Em 2008, o Grupo Icatu Hartford, do mercado de seguros, investiu cerca de R$ 400 mil, principalmente em projetos de artes plásticas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. "A lei passou a ser estratégia para alavancar o orçamento de marketing", diz Aura Rebelo, diretora de marketing do grupo. Segundo ela, a previsão é a de um aumento nos investimentos para 2009.

A despeito da crise, algumas empresas decidiram começar a utilizar a Lei Rouanet neste ano. Foi o caso da Lanxess Petroflex, indústria química que decidiu investir R$ 4 milhões em um projeto chamado chamado Salas de Leitura, que prevê a criação de 40 salas em 2009. De acordo com Jorge Muzy, da empresa Muzy Corp, consultoria que auxiliou a Lanxess no uso da lei, é preciso quebrar o paradigma de que só as grandes empresas, com verbas de porte, conseguem usar as leis de incentivo. "Percebemos que tínhamos um bom percentual para explorar", diz Jeferson Fernandes, responsável pelo projeto na empresa.

Outras leis de incentivo além da Rouanet também estão sendo procuradas pelas empresas. Para o advogado José Mauricio Fittipaldi, do escritório Cesnik, Quintino & Salinas Advogados, especializado no mercado de entretenimento, isso ocorre porque durante a crise é provável que alguns benefícios calculados sobre o ICMS dos Estados passem a ser mais procurados do que aqueles vinculados ao IR. A Lanxess descobriu que, por meio de leis de incentivo à cultura e educação no Rio Grande do Sul, poderia abater até R$ 600 mil do ICMS devido.