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Artigo 223 coloca em xeque papel do Estado e do mercado

Muitos eram os desafios postos para o capítulo Da Comunicação Social que surgia, em 1988, pela primeira vez em uma Constituição brasileira. Um deles era consolidar a comunicação como um bem público. Afinal, o setor de comunicações não poderia fugir da grande disputa que esteve no cerne daquela Assembléia Nacional Constituinte: qual o papel a ser desempenhado pelo Estado e pelo mercado para que fossem garantidos os direitos positivados na nova Carta?

O contexto internacional – marcado pelo avanço do neoliberalismo na Europa e a derrocada dos governos baseados no modelo estatal-centralizador, simbolizada pela queda do Muro de Berlim – já explicava o porquê deste debate instalar-se com força no Congresso Nacional. No cenário nacional, o Brasil acabara de sair de um longo período de ditadura militar em que a imagem do Estado tinha sido muito desgastada pelo processo antidemocrático. Particularmente na área de comunicação, o uso que o governo militar tinha feito dos meios de comunicação do Estado e da regulação do setor a favor da sua legitimação fazia com que a balança da Constituinte pendesse, neste tema, para o lado do ultra-liberalismo.

Ainda assim, aprovou-se o que foi considerado à época – e ainda é considerado – uma das grandes inovações da atual Carta Magna: o Artigo 223, que prevê a complementaridade dos sistemas estatal, público e privado de comunicação. A inovação fica por conta do texto estabelecer uma diferenciação de papéis entre os três setores, o que não ocorre com nenhum dos outros direitos tratados sob o chapéu Da Ordem Social, como a saúde, a educação e a previdência social.

Mas o artigo mantém-se como um das previsões constitucionais mais polêmicas exatamente porque, como quase todos os demais artigos do capítulo da comunicação, segue até hoje sem regulamentação. A inexistência de referência legal do que venha a ser a configuração jurídica de cada um destes sistemas levou a uma grande confusão conceitual, que ao longo dos anos afastou a possibilidade de o artigo funcionar na direção imaginada em 1988.

Intenção

Para os defensores da complementaridade, sua inclusão na Constituição seria uma forma de equilibrar os já existentes sistema privado e estatal, com notória prevalência do primeiro, e também equiparar a estes uma nova figura, o sistema público. A intenção era ter um sistema de comunicação que não estivesse à serviço nem do mercado, nem dos governos do dia.

Segundo Venício A. de Lima, pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) e que na época da Constituinte trabalhou como assessor técnico do Senado, a complementaridade apareceu nos textos discutidos dentro do subcomitê de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática em um dos substitutivos propostos por Artur da Távola, último relator do capítulo da comunicação. Antes disso, a idéia tinha sido descrita nos cadernos produzidos pelo Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da UnB e entregues a Tancredo Neves, logo após sua eleição, para servir de base para as políticas de comunicação da Nova República.

A explicação para a proposta da complementaridade, segundo Lima, tinha a ver com a conjuntura nacional. "Estávamos saindo de um período militar e traumatizados com a experiência de 20 anos de Estado militar autoritário. Então, o público era uma alternativa", comenta. "A discussão sobre o público era um debate extremamente politizado porque era a forma de escapulir do autoritarismo."

Embora a conjuntura explique a opção por ressaltar a idéia de um sistema público diferenciado do estatal, para alguns, a confusão conceitual começa aqui. "Não existe diferença entre 'estatal' e 'público'. O que é estatal é público, pois o Estado é, ou deve ser, público", defende Marcos Dantas, professor da PUC-RJ, ressaltando ainda que há uma confusão entre Estado e governo. "Concordo, entretanto, que o Estado possa ser mais fechado ou menos fechado, mais autoritário ou menos autoritário, mais democrático ou menos democrático, mais transparente ou menos transparente, refletindo, nisso, o jogo das forças sociais e políticas que o sustentam e influenciam."

Para o coordenador do Laboratório de Políticas de Comunicação da UnB, Murilo Ramos, a separação entre o público e o estatal transformou-se em uma armadilha normativa que acabou por escapar a todos os especialistas naquele momento. Participando da assembléia do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, em maio deste ano, Ramos afirmou que o isolamento do sistema privado em relação ao estatal e ao público acaba por ignorar o fato de que o primeiro não pode existir sem a autorização e a fiscalização do Estado e da sociedade.

Problemas de execução

A confusão conceitual, no entanto, extrapola o texto constitucional, os debates acadêmicos e as discussões sobre uma possível regulamentação do Artigo 223, e se concretiza nas experiências de comunicação pública registradas como tal no Brasil. Em sua maioria, estas iniciativas nascem de projetos estatais, como as TVs Educativas e rádios ligadas aos estados e municípios. No entanto, por questões que vão da forma de organização destes veículos às conjunturas políticas nacional e regional, praticamente nenhuma deixou de estar atrelada às vontades dos governos de plantão.

"A idéia de serviço público de radiodifusão – que tem como referência maior a BBC de Londres, a Rádio e Televisão da Alemanha, a NHK do Japão e a PBS dos Estados Unidos – nunca vingou por aqui. Até a TV Cultura de São Paulo, montada institucionalmente como emissora pública independente do Estado, jamais conseguiu viver uma possível autonomia", avalia Laurindo Lalo Leal Filho, pesquisa da Universidade de São Paulo e ouvidor da Empresa Brasil de Comunicação.

O resultado é desastroso, segundo o professor da Universidade Federal da Bahia Othon Jambeiro. "O estatal é desmoralizado entre nós e o público não consegue deixar de ser estatal. Além disso, o sistema privado supre os grupos que dominam o Estado com o suporte ideológico de que dependem para manter sua hegemonia", dispara Jambeiro.

O pesquisador baiano ainda ressalta que a relação que historicamente foi estabelecida entre o poder público e os concessionários da radiodifusão, tanto em termos políticos como no que diz respeito à regulação das atividades privadas de comunicação, não desenha cenário futuro diferente do que já existe. "O desequilíbrio em favor do sistema privado é tão grande que só uma transformação radical em todo o sistema brasileiro de radiodifusão tornaria possível fazer a Constituição 'pegar', pelo menos nesse artigo", ratifica Lalo.

Lobby pela desregulamentação

A confusão entre conceitos na Constituição e, principalmente, na execução das políticas públicas que direcionaram a configuração do sistema nacional de comunicação não explica a ausência de uma regulamentação do Artigo 223. O fato de que as duas décadas que separam a promulgação da Carta e os dias de hoje não tenham sido suficientes para que se chegasse a um denominador comum que pudesse ser consagrado em um texto complementar pode ser melhor compreendido se considerada a correlação de forças dentro dos governos e do Legislativo.

"A não regulamentação deste e de tantos outros artigos que ainda figuram como letra morta na Constituição não se deu em função de qualquer questionamento de ordem conceitual", acredita Bia Barbosa, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. "O grande problema está na falta de vontade política, que envolve também o poderio econômico e os interesses privados dos parlamentares, boa parte deles ligada direta ou indiretamente aos radiodifusores."

Sabe-se que as necessidades dos grupos mais poderosos nunca foram impedimento para que se regulamentasse a Constituição e, até mesmo, seu texto fosse modificado. Em 20 anos, o Congresso já aprovou 55 emendas constitucionais que "retocaram" a Carta Magna. No capítulo Da Comunicação Social, apenas uma emenda foi aprovada nestas duas décadas. Foi, não por acaso, um retoque patrocinado explicitamente pelas empresas de comunicação. A emenda constitucional que reformou o Artigo 222, permitindo a entrada de capital estrangeiro nas empresas de comunicação, foi rapidamente aprovada pelo Congresso e sancionada pelo Executivo em 2002 (saiba mais ). Prova de que quando é do interesse dos empresários de comunicação e dos muitos parlamentares que os defendem, a regulamentação e até mesmo a revisão de preceitos constitucionais saem do papel.


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Reforma do Artigo 222 abriu setor ao capital estrangeiro

O Artigo 222 da Constituição Federal, que garantia que os meios de comunicação em operação no país fossem controlados exclusivamente por cidadãos brasileiros, foi o único do capítulo Da Comunicação Social a ser alvo de reforma nestes 20 anos. Em 2002, a Emenda Constitucional 36 alterou seus dispositivos, permitindo a presença de até 30% de capital estrangeiro no quadro acionário das empresas jornalísticas e de radiodifusão.

O novo texto estabeleceu também algumas salvaguardas. A gestão das atividades, a definição da programação e a responsabilidade editorial dos conteúdos deveriam ser controladas exclusivamente por brasileiros. A título de manter o controle sobre a entrada dos capitais estrangeiros, foi previsto que as alterações dos quadros societários decorrentes da entrada de investidores de outros países deveriam ser comunicadas ao Congresso Nacional.

A nova redação do artigo ainda remetia a regulamentação em lei específica. Apesar de ter se comprometido a enviar um projeto de lei para o Congresso como base da norma que detalharia a nova redação do Artigo 222 da Constituição, o governo Fernando Henrique publicou uma Medida Provisória (a 70/2002) no início de outubro.

No apagar das luzes daquele ano, em 20 de dezembro, foi aprovada a Lei 10.610, que disciplinou a entrada dos investimentos internacionais no setor. O uso de uma MP e a tramitação rápida foram um recurso do governo tucano em resposta à pressão do empresariado, que queria evitar que a definição destas regras ficasse a cargo do recém-eleito governo de Luis Inácio Lula da Silva.

Motivos nada nobres

Esta agilidade também já havia marcado a tramitação da Emenda Constitucional 36. Em menos de um ano, seus operadores no Congresso Nacional conseguiram resgatar a Proposta de Emenda Constitucional 203/B, de 1995, do deputado Laprovita Vieira (PPB-RJ), e aprová-la, em maio de 2002. Jornalistas que trabalhavam em Brasília na época contam que a votação foi comandada em plenário pelo vice-presidente de relações institucionais das Organizações Globo, Evandro Guimarães, articulador do acordo para viabilizar a concordância dos parlamentares com todos os partidos, à exceção do PDT. O PT, que se notabilizava por uma postura combativa em relação aos interesses do empresariado, acabou também aceitando o projeto, reivindicando durante a negociação a instalação do Conselho de Comunicação Social (saiba mais).

A mudança de postura das emissoras, que até poucos anos antes eram refratárias à presença de capital estrangeiro do setor, se deu por motivos muito concretos: o conjunto de dívidas contraídas ao longo da década de 1990. “A aprovação da emenda foi feita para atender os interesses dos empresários, que estavam em um momento delicado do ponto de vista financeiro, pois haviam fracassado na sua tentativa de participar do processo de privatização das teles. Foi na esteira destes fracassos que capital estrangeiro passou a ser luz no fim do túnel”, lembra o professor aposentado da UnB e pesquisador Venício Lima.

Além da desastrada investida sobre o espólio da Telebrás, citada por Lima, outra aventura dos empresários foi a reforma de seus parques de produção e transmissão. Exemplos são o Projac, inaugurado pela Rede Globo no Rio de Janeiro em 1995, e o Complexo Anhanguera, lançado pelo SBT em 2000. Tais iniciativas foram motivadas pela paridade entre o real e o dólar. Quando veio a desvalorização cambial, em 1998, a dívida contraída explodiu.

O resultado foi o acúmulo de prejuízos da ordem de R$ 7 bilhões em 2002, sendo R$ 5 bilhões apenas da Globopar, holding das Organizações Globo. A situação dramática gerou inclusive uma divisão entre os radiodifusores. As redes SBT, Record e Bandeirantes reivindicavam uma abertura maior do que os 30% previstos no projeto. A Globo foi contra. Ela precisava garantir a sua capitalização sem correr o risco de que o feitiço se voltasse contra o feiticeiro, ou seja, que suas concorrentes não utilizassem o apoio de investidores estrangeiros para fortalecerem demais sua atuação no país.

Pró-mídia

No entanto, a expectativa de que a abertura ao capital estrangeiro resolvesse os problemas financeiros das empresas de comunicação não se concretizou. Sem encontrarem interessados em seus negócios, os radiodifusores transferiram o foco de suas lamentações do Congresso para o Executivo. O recém-eleito governo Lula foi duramente pressionado a elaborar um programa de “resgate” das empresas, apelidado de Pró-Mídia. Em 2004, o BNDES assumiu a possibilidade de executar o programa e chegou a prometer R$ 4 bilhões para o setor, que àquela época acumulava dívidas de R$ 10 bilhões.

Em documento divulgado à época, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), questionou a necessidade da ajuda financeira e defendeu, caso ela fosse ser levada a cabo, a exigência de contrapartidas dos contratantes dos financiamentos como: transparência na gestão dos recursos obtidos, tratamento equânime para os veículos públicos e estatais, garantia de acesso por novos concorrentes e não apenas pelos endividados, e compromissos de que parte do empréstimo fosse usado para adquirir produção independente e regionalizada.

As divergências surgidas já durante a formatação do texto da Emenda Constitucional ressurgiram, levanto a um racha dentro da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert). Estas divergências internas dos radiodifusores foram importantes para a desistência do programa de apoio por parte do governo federal. A Globo, em situação mais dramática, iria resolver sua fragilidade financeira articulando a abertura de outro setor a investidores internacionais: o da televisão por assinatura.

Abertura nas telecomunicações

Após a aprovação da Emenda 36, a única empresa jornalística ou concessionária de rádio e TV a vender parte de seu capital a um grupo estrangeiro foi o Grupo Abril, controlador da principal editora no ramo de revistas. Em 2006, ela negociou 30% de suas ações para o grupo Naspers, uma empresa multinacional com base na África do Sul que atua na área de mídia eletrônica.

“Até onde se sabe, a questão da propriedade dos meios de comunicação no Brasil jamais esteve na pauta dos grupos financeiros internacionais, para efeito de controle econômico”, analisa o professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Othon Jambeiro. Para ele, o setor mais atrativo para os empresários estrangeiros sempre foi o de serviços de telecomunicações. Quando houve a reforma constitucional, tal tendência já havia se confirmado na privatização do setor de telefonia. A espanhola Telefónica e a Portugal Telecom ficaram com o “filé” do fatiamento do Sistema Telebrás, ao adquirir a Telesp.

Dois anos após a aprovação da Emenda 36, em 2004, foi a vez da gigante latino-americana Telmex entrar no país com a compra da Embratel por US$ 360 milhões. “É preciso entender que, embora não pareça, TV aberta é um negócio em extinção e, num país como o Brasil, onde poucos lêem, editar jornais interessa menos ainda ao grande capital global. O negócio, agora, é a TV por assinatura e na sua regulamentação é que deveríamos estar centrando os nossos esforços”, indica Marcos Dantas, professor da PUC-RJ.

Se comparado à radiodifusão aberta, o mercado de TV por assinatura está sensivelmente mais tomado pelos grupos estrangeiros. O principal responsável por este cenário foi as Organizações Globo, que como resposta às suas dificuldades financeiras promoveu a desnacionalização deste mercado.

Na distribuição por cabo, a Globo passou o controle da Net à mexicana Telmex. Apesar da Lei do Cabo restringir a presença de capital externo a 49%, uma engenhosa operação financeira garantiu o repasse da maioria da operadora aos mexicanos com a anuência da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). A empresa GB Empreendimentos e Participações, formada por 51% da Globo e 49% da Telmex, comprou 51% das ações ordinárias da Net. Por meio da Embratel, a Telmex comprou 37,3% das ações ordinárias e 49% das preferenciais da Net, chegando ao controle real de 62% da companhia.

No satélite (DTH), as Organizações Globo atuaram fortemente para viabilizar a fusão da DirecTV, da Hughes Eletronic Corporation, com sua operadora Sky, mantida em uma parceria com o conglomerado internacional News Corporation. Em 2006, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autorizou o negócio. Com ele, a nova operadora passou a controlar 97% do mercado, tendo controle majoritário pela News Corporation com 74% e a Globo com 26%.

A Abril, que competiu durante a década de 1990 com a Net, também vendeu sua operadora de TV por assinatura, TVA, para um grupo estrangeiro, a Telefónica. A empresa espanhola explora o serviço de telefonia fixa em São Paulo e detém 50% da Vivo, que atua na área móvel.

Intenção original: controle nacional

Apesar de ter sido o único artigo alterado do capítulo da Comunicação Social, o Artigo 222 esteve entre os poucos consensos dentro da subcomissão que discutiu capítulo Da Comunicação Social durante a Assembléia Constituinte. Em sua versão original, ele restringia o controle das empresas de mídia a “brasileiros natos e naturalizados há mais de 10 anos”, aos quais caberia “a responsabilidade por sua administração e orientação intelectual”.

A preocupação com o controle nacional unia os interesses dos grupos remanescentes alinhados aos militares aos da esquerda nascente. A internacionalização do parque produtivo, que viria a ser uma marca do projeto hegemônico no país durante a década de 1990, ainda não havia aportado no país como uma saída para os problemas nacionais.

Para Venício Lima, no texto prevaleceu a tradição constitucional brasileira do setor. “Por um princípio antigo, impediu-se também a participação das pessoas jurídicas.A racionalidade atrás disso era que se podia responsabilizar alguém pela calúnia, pela difamação”, explica.

Tal impedimento foi também revertido na Emenda Constitucional 36. Reivindicação dos evangélicos, a novidade tem contribuído para o ascenso da Rede Record no mercado de televisão aberta. Caso o crescimento da rede comandada por Edir Macedo confirme-se a ponto de tirar a liderança de mercado da Globo, estaremos diante de uma ironia: por caminhos tortos, a única reforma constitucional do capítulo Da Comunicação Social terá criado condições para uma mudança profunda nas comunicações brasileiras.


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Restrição à concentração de propriedade mantém-se letra morta

A subcomissão responsável pela área de comunicação na Assembléia Constituinte de 1988 é conhecida por ser a única a ter encerrado suas atividades sem um relatório final consensuado entre seus membros. Um dos temas que escapou ao embate que marcou as atividades do grupo foi o inciso 5º do Artigo 220, segundo o qual “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Segundo o pesquisador Venício Lima, o texto, resultado de uma emenda do deputado Carlos Alberto Caó (PDT-RJ), foi consensual e facilmente entrou na redação final do capítulo.

À primeira vista parece estranho que tal restrição fosse admitida pelos parlamentares alinhados aos interesses dos radiodifusores, uma vez que a situação da mídia brasileira era de um oligopólio consolidado especialmente nas Organizações Globo. Naqueles anos, o grupo ultrapassava os 60% de participação na audiência de TV e abocanhava mais de 70% do bolo publicitário televisivo. O tempo mostrou que não houve nenhuma incoerência.

“Na história das políticas de comunicação no país, as concessões feitas pelo empresariado geralmente são em questões que não têm impacto real no quadro da mídia brasileira”, analisa Bráulio Ribeiro, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação. O dispositivo constitucional que proíbe a prática de monopólio e oligopólio é um destes casos emblemáticos, permanecendo até hoje como uma diretriz avançada que simplesmente não tem efeito prático algum na regulação da propriedade dos veículos de comunicação no país.

O principal motivo é a falta de regulamentação. Não há lei complementar ou ordinária que mencione o inciso ou defina o que é monopólio ou oligopólio. “Em todas as atividades econômicas, o Estado tem condição de regular porque consegue definir exatamente o que comprova a concentração da propriedade ou o controle do mercado”, diz James Görgen, coordenador do projeto “Donos da Mídia”. “Mesmo a teoria econômica já estipulou compreensões sobre poder de mercado significativo, ou outras questões vinculadas a estes conceitos. Mas tanto o Estado como o governo nunca se debruçaram para ver quais são os limites de propriedade na mídia.”

A falta de uma definição mais clara acaba prejudicando a única norma sobre controle de propriedade da radiodifusão existente. O Decreto-Lei 236 de 1967 estabelece os limites referentes às outorgas que podem ser obtidas por uma “entidade”. Em nível regional, tal restrição é de quatro estações de Ondas Médias e seis de FM. Em nível nacional cada ente só pode operar até duas estações de Onda Curtas e de Ondas Médias e até dez emissoras de TV, sendo no máximo cinco em VHF e duas por estado.

Segundo Venício Lima, o problema aí está no conceito de entidade. Sem a regulamentação do inciso 5º do Artigo 220, os empresários aproveitam-se desta brecha legal para ir além do limite estipulado pelo decreto, bastando mudar a pessoa jurídica responsável pela outorga para não haver qualquer conflito. Assim, basta que a família Saad, dona da Rede Bandeirantes, utilize uma pessoa jurídica – cujos sócios são uma parte dos familiares – para controlar até cinco emissoras e crie outra entidade, com outra parte da família, para obter outras cinco TVs e já não há nenhum desrespeito ao Decreto-Lei 236.

Oligopólio em rede

Para além do limite estabelecido em lei, a concentração do mercado ocorre na organização das redes por meio das relações de afiliação. As afiliadas retransmitem a programação das cabeças-de-rede, recebendo parte da publicidade captada pela rede, em valores proporcionais à audiência local. As cabeças arrecadam parte dos valores provenientes da propaganda local e, ao aumentarem seu alcance por meio das afiliadas, conseguem ter poder de influência política e se tornarem economicamente atrativos para os anunciantes nacionais.

Neste cenário que mistura desregulamentação e organização histórica do mercado, a concentração pode ser verificada em três níveis, segundo tipologia utilizada por Venício Lima. Primeiro, há uma concentração horizontal, caracterizada pelo controle de diversos veículos de um mesmo tipo. Isso ocorre tanto na televisão (com casos como o da cidade de Brasília, onde a Record transmite a Record Brasília e a Record News), no rádio (como em São Paulo, onde a Bandeirantes detém as estações BandNews FM, BandFM, Rádio Bandeirantes, Nativa, SulAmérica e Mitsubishi) e na mídia impressa (como no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, onde o Grupo RBS controla oito títulos: Zero Hora, Diário Gaúcho, Pioneiro, Diário de Santa Maria, Diário Catarinense, Jornal de Santa Catarina, Hora de Santa Catarina e A Notícia).

Na chamada concentração vertical, um mesmo grupo comanda diversos elos da cadeia produtiva. É o caso explícito da Rede Globo, que produz e distribui seu próprio conteúdo na TV aberta e mantém a programadora GloboSat (que produz canais como Multishow, GNT e Globonews), a empacotadora NetBrasil e a distribuidora Net Serviços no mercado de TV a Cabo. O último e mais grave caso é a propriedade cruzada, marcada pela posse de vários veículos (rádio, jornal, TV) por um mesmo grupo. É o caso de praticamente todas as redes de TV e dos grupos afiliados regionais, além de outros grandes grupos que se organizam a partir de outras mídias (como os grupos Folha, Estado e Abril).

No entanto, tal relação não se dá de maneira direta. “Quantitativamente, não podemos falar em controle direto dos grupos nacionais. Mas ele é indireto, por várias relações econômicas e políticas onde a concentração acaba ocorrendo”, explica James Görgen. Segundo dados levantados pelo projeto "Donos da Mídia", as cinco principais redes de TV (Globo, SBT, Record, Bandeirantes e Rede TV) têm vinculados a si 145 grupos afiliados e 869 veículos. A Globo é maior, com 274 veículos ligados, seguida pelo SBT, com 197, a Record, com 160, e a Bandeirantes, com 156. A RedeTV, embora seja uma organização nacional, aparece com apenas 82 emissoras e publicações vinculadas à sua rede.

Um fenômeno recente tem sido a ascensão de redes independentes. Segundo Görgen, no início da década, 80% ou mais dos veículos estavam ligados às cinco principais redes. Atualmente, este índice caiu para 70%. Ao total, existem hoje 33 redes de TV e 21 de rádio, que envolvem, respectivamente, 1.393 e 686 veículos. Mas isso não reduziu o poder e a influência deste núcleo, chamado por ele de “Sistema Central de Mídia”. “Estes conglomerados controlam as duas pontas do sistema. A maior infra-estrutura de distribuição, a TV, que alcança 98% do país, e, de outro lado, o jornal, onde se dá a formação de opinião da elite”, avalia.

Outra mudança dos últimos anos é a variação dos agentes que controlam estes meios. Segundo dados da pesquisadora Susy dos Santos, do total de emissoras de TV, 34% são comandadas por políticos, 23% por empresários, 21% por fundações privadas e universidades, 16% por Igrejas e 6% por órgãos estatais.

Coronelismo eletrônico

A presença majoritária de políticos no comando de veículos é resultado do fenômeno que ganhou o nome de “coronelismo eletrônico”, no qual a troca de favores entre governos e lideranças regionais e locais vem gerando a expansão da apropriação da mídia por estes últimos como instrumento de legitimação política. Uma outra face deste processo é o uso de fundações por estas lideranças para obterem outorgas de rádios e TVs educativas. Como, desde 1995, os interessados em concessões comerciais devem participar de processos licitatórios, ficou mais fácil buscar licenças de educativas a partir da constituição de fundações de fachada.

Outro elemento importante evidenciado por este quadro é o crescimento da presença dos grupos religiosos, classificado por Venício Lima de “coronelismo eletrônico evangélico”(leia mais sobre o assunto ). “Eu ando muito assustado com a presença da religião. Para eles crescimento religioso está intimamente ligado à questão da mídia”, comenta o pesquisador.

Para além de se questionar a validade de um serviço público estar voltado aos interesses de um grupo religioso particular, para Lima o comportamento destes grupos no Congresso também reforça o lobby dos radiodifusores contra a regulamentação referente à propriedade dos meios de comunicação.

Um dos grupos religiosos que tem se notabilizado por uma estratégia diferenciada é a Igreja Universal do Reino de Deus. A organização religiosa comandada por Edir Macedo tem apostado não no uso da mídia para promoção da fé, mas na constituição de uma rede em condições de disputar com a Globo. Nos últimos anos, a Record tem efetuado uma estratégia agressiva de disputa de grupos afiliados, retirando importantes veículos regionais do SBT e ampliando seu alcance.

Mudanças pouco prováveis

Para Venício Lima, a concretização da proibição ao monopólio, aliada à regulamentação da regionalização da produção, seria “uma revolução” nas comunicações brasileiras. Já o jornalista Beto Almeida, que atuou como um dos militantes da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) durante a Constituinte, vê com ceticismo a possibilidade de colocar o inciso 5º do Artigo 220 em funcionamento.

“O mais difícil de avançar é a proibição ao oligopólio. Como você vai proibir se esta é a forma de organização do capitalismo mundial hoje? Só com um processo de transformação”, comenta. “Um exemplo é a Constituição do Equador, que traz limites importantes como a impossibilidade dos bancos terem meios de comunicação. A única forma de combater isso seria pelo aumento da presença do Estado.”

Na avaliação de Bráulio Ribeiro, do Intervozes, mesmo sendo uma batalha difícil, a regulamentação do artigo 220, especialmente de seu inciso 5º, é uma disputa que deve ser encarada pelos setores progressistas da área da comunicação. “Um caminho inicial seria detalhar as restrições ao número de canais do Decreto-Lei 236, caracterizando como mesma entidade aquele ente que tiver pessoas com relações parentais de até segundo grau, aquele que tiver canais vinculados à mesma marca ou grupo, como Record e RecordNews, e que estiverem em relação de afiliação”, sugere.


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Criação do CCS reflete força dos empresários na constituinte

No início de 2002, o jornalista e conselheiro eleito para a primeira gestão do Conselho de Comunicação Social (CCS) Carlos Chagas anuncia para os presentes da primeira reunião do órgão uma sentença que se faria profecia: “Ecoou pelos corredores do Congresso: o Dr. Roberto não gostou”. Tratava-se, evidentemente, do presidente das Organizações Globo e de sua primeira impressão a respeito do conselho, que iniciava suas atividades com grande expectativa por parte das organizações da sociedade civil dedicadas à pauta da democratização das comunicações.

Seis anos depois, o CCS está inativo. Segue à espera da boa-vontade deste ou do próximo presidente do Congresso Nacional, responsável por sua ativação e, nos últimos anos, por sua inanição. O fato de a existência do conselho estar condicionada a vontade política da mesa do Senado faz parte de uma série de mecanismos criados para alterar o texto original apresentado pela deputada e relatora Cristina Tavares, durante a Assembléia Constituinte de 1988 e, assim, solapar a proposta de um conselho autônomo e imbuído de ferramentas eficazes de controle social da comunicação.

O balanço necessário sobre o setor das comunicações e o CCS, mais especificamente, nestes 20 anos da Constituição “cidadã” começa entre os últimos dias do regime militar e a eleição de Tancredo Neves em janeiro de 1985. O presidente recém-eleito admitia a possibilidade de rediscutir o modelo privatista e altamente concentrado dos meios de comunicação no Brasil, e os movimentos sociais, inspirados pela abertura política, começavam a retomar o discurso da democracia no setor.

“Sabemos que as concessões de rádio e de televisão são distribuídas por critérios exclusivamente políticos, partidários e até personalistas”, afirmava Tancredo, logo em sua primeira entrevista coletiva depois de eleito. “A primeira idéia que me ocorre, sem entrar no exame detalhado da matéria, através da consulta feita às entidades de classe nela interessadas, parece ser a criação de um Conselho Nacional de Comunicações que tenha participação direta não apenas na decisão da concessão de rádio e de televisão, mas, sobretudo, na fiscalização do seu funcionamento.”

A realidade, entretanto, era bem mais complexa, e Tancredo Neves promoveu o baiano Antônio Carlos Magalhães ao ministério “que ele quisesse”. No caso, o escolhido foi justamente o das Comunicações. Por pressão da Globo, manteve também no cargo Rômulo Furtado, influente secretário-geral do ministério por dois governos no período autoritário, o que, indiretamente, já delineava o ambiente dos embates que viriam a ser travados na Constituinte.

Uma batalha perdida

Foi tarefa da deputada Cristina Tavares, do PMDB de Pernambuco, relatar e apresentar o primeiro anteprojeto para apreciação do plenário da Subcomissão da Ciência, Tecnologia e da Comunicação. Nesta proposta constava a instalação de um Conselho Nacional de Comunicações composto por 15 membros, entre representantes de entidades empresariais, sindicais, governo e sociedade civil. Seria sua atribuição, entre outras, outorgar e renovar autorizações e concessões para exploração de serviços de radiodifusão.

O projeto recebeu dezenas de emendas e foi sucessivamente derrotado, inclusive, por conta dos votos do próprio PMDB, cujos deputados em bom número se sentiam ameaçados por serem eles mesmos detentores de concessões de rádio e TV. O deputado Arthur da Távola (PMDB-RJ) ainda voltou a apresentar projeto semelhante em relação à instituição do conselho no subcomitê da Ciência e Tecnologia e da Comunicação da Comissão Temática da Família, da Educação, Cultura e Esportes. Este foi igualmente suplantado, mesmo após modificações.

Foi a emenda final do deputado José Carlos Martinez (PMDB-PR), detentor de concessões de TV no Paraná, ao relatório de Tavares, a responsável por enterrar definitivamente a criação do Conselho Nacional de Comunicação nos termos propostos pela relatora. A proposta de Martinez, acatada pela Constituinte, atribuiu à União, ad referendum do Congresso Nacional, “outorgar concessões, autorizações ou permissões de serviços de radiodifusão”.

O Conselho de Comunicação Social como conhecemos, auxiliar do Congresso Nacional e sem nenhuma autonomia, foi resultado de uma proposta assumida por ninguém. Assim como outras iniciativas progressistas que surgiram durante a Constituinte, esta também foi marcada pela profusão de palavras instigantes acomodadas entre interesses privados, e que se revelaram sem nenhuma efetividade prática.

“Esperava-se à época o que se espera até hoje: a criação de um órgão com participação popular e democrática que atuasse de forma decisiva sobre todas as decisões relativas à comunicação”, avalia Diogo Moyses, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. “No fim do processo constituinte, o lobby dos radiodifusores tinha transformado este conselho imaginado em um órgão meramente consultivo e restrito ao Senado. Até hoje, isso tem graves conseqüências para a sociedade brasileira, que demanda controle público sobre a comunicação social.”

Existência no papel

O CCS não foi instalado imediatamente e permaneceu como letra-morta na nova Constituição por alguns anos. Mas a década de 90 trouxe consigo uma piora sensível na qualidade das programações de TV. A sensação de total liberdade experimentada pelas grandes empresas de comunicação (em um ambiente de não regulamentação dos recém-criados direitos e deveres constitucionais para o setor) era diretamente direcionado para a busca de audiência a qualquer custo.

Nesse contexto surgiu a iniciativa de regulamentação do conselho, a partir de proposta do deputado Antônio Britto (PMDB-RS) e sancionada pelo presidente Fernando Collor no mesmo ano.

Reuniões se seguiram para definir a composição do conselho, colocando o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) à frente do processo. Não se sabe com exatidão quais foram os termos da negociação com o empresariado, mesmo porque, depois do falecimento do principal negociador pelo FNDC, o jornalista Daniel Herz, não há muita disposição dos principais atores da época em comentar as polêmicas do caso.

De qualquer forma, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) defendia a composição negociada como “a possível”, enfrentando dura oposição de parlamentares como Pedro Simon (PMDB-RS). O formato final previa treze membros, portanto, empresas e sindicatos dividiriam igualmente oito vagas, restando cinco para a sociedade civil. Para Simon, o conselho precisava contar com “uma certa independência para ser um conselho de debate, de discussão entre as partes e não um conselho em que um determinado setor, o mais forte, terá prioridade”. No caso, os empresários.

“A proposta original tinha como modelo o FCC [Federal Communications Commission] norte-americano, que conta com cinco membros, mas que não tem a ver com a realidade brasileira. Nunca houve um consenso”, conta Venício A. Lima, professor da Universidade de Brasília. “O CCS tem um problema de origem”, concorda Ricardo Moretzsohn, que teve assento no CCS pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) entre 2002 e 2004. Nem mesmo o fato de que o FCC é uma agência reguladora no coração do liberalismo e que conta com similares na maioria dos países desenvolvidos ajudou a superar a intransigência dos empresários.

Regulamentado em 1991, o CCS ainda esperou por mais de uma década para que viesse a ser instalado. E novamente foi um emaranhado de negociações nada públicas que permitiram o avanço. Negociações que se se deram no âmbito das discussões sobre a revisão da Lei 8.977/95, que aprovou a entrada de 30% de capital estrangeiro nas empresas de comunicação nacionais. Em contrapartida, logrou-se a instalação do Conselho de Comunicação Social.

Buscando um sentido

A primeira gestão do Conselho de Comunicação Social parece ter justificado a preocupação de Dr. Roberto. Mesmo com todas as limitações pela falta de independência, seu início contou com uma composição equilibrada e gente disposta a trabalhar. Moretzsohn conta que a experiência foi tão positiva que assustou os empresários e os próprios parlamentares, produzindo relatórios bem fundamentados sobre concentração da propriedade dos meios e, já naquela época, a respeito da digitalização.

Mas a “brincadeira” parou por aí. Veio a segunda gestão, presidida pelo escritor Arnaldo Niskier e apinhada de representantes dos interesses da grande mídia ocupando as vagas da sociedade civil, como previa o senador Pedro Simon. “A segunda gestão teve a sua composição deturpada. Tem que haver um mecanismo para indicação das vagas pelos movimentos sociais”, afirma Moretzsohn, do CFP.

Foi o suspiro melancólico do Conselho de Comunicação Social. Apesar de sua existência estar explícita na lei, não houve a renovação da gestão e desde 2006 ele está ocioso. Apenas o presidente do Congresso pode restaurá-lo, o que já foi defendido, na teoria, pelo atual, o senador Garibaldi Alves (PMDB-RN). Para a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), o conselho “tem pouca eficácia”. “Queríamos um conselho, mas, lamentavelmente, só depois de muito tempo é que o CCS veio a ser instituído. Depende da presidência do Senado, e mesmo a Câmara não demonstra interesse.”

“O problema é que a mesa do Congresso é quem manda. Há muita resistência por parte dos senadores para a instalação, pois muitos são detentores de concessões”, diz Venício Lima. “Ele não está instalado atualmente porque, mesmo sem poder, pode incomodar”, completa.

Ainda existe a expectativa de retomada do CCS para o futuro próximo. Para Lima, tudo depende da conjuntura e da “correlação de forças” no Congresso. “A mesa do Senado foi sujeita a muito desgaste recentemente”, reflete. “Devemos insistir em um movimento que reformule tanto o caráter quanto a composição do conselho”, confia Ricardo Moretzsohn. 


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Capítulo V contrapõe interesses privados e caráter público

No dia 5 de outubro de 1988, há exatos 20 anos, era promulgada a mais atual Constituição da República Federativa do Brasil, com 250 artigos. Foi a primeira das sete constituições brasileiras a ter um capítulo exclusivamente dedicado à comunicação social. Mas o pioneirismo daquela Assembléia Nacional Constituinte com relação à normatização da comunicação não se deu de forma tranqüila. Pelo contrário, este foi uma dos capítulos mais problemáticos de todo o processo de redação da primeira Constituição pós-ditadura militar.

Durante o período de um ano e oito meses, de fevereiro de 1987 a outubro de 1988, 559 parlamentares divididos em 24 grupos elaboraram propostas para serem sistematizadas e votadas, dando corpo assim à nova Constituição. O subcomitê de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática, que ficou responsável por organizar uma proposta de capítulo para a comunicação social, teve neste ponto a sua maior dificuldade e não conseguiu entregar à comissão de sistematização, no tempo previsto, um acordo entre as forças políticas que disputavam diferentes visões a serem positivadas na Carta Magna. O contexto em que foi gestado o novo texto constitucional transpirava anseios democráticos, mas, de forma contraditória, no Parlamento via-se uma base nitidamente conservadora e aliada à elite tradicionalmente detentora do poder político e econômico.

Os dois principais atores políticos da disputa sobre o que veio a ser o capítulo “Da Comunicação Social” eram a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), representante dos interesses dos radiodifusores e que tinha ampla representação parlamentar, e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), que por sua vez tinha um número bem menor de parlamentares partidários ou simpatizantes de suas propostas. Aliada da Fenaj, porém não totalmente alinhada com as propostas da entidade, estava a Frente por Políticas Democráticas de Comunicação, que contou com parlamentares que ficaram marcados pela sua atuação na defesa da comunicação democrática, como Cristina Tavares, Artur da Távola e Olívio Dutra.  

Dentre as principais propostas da Fenaj, estavam a positivação da comunicação como um bem público, a constituição de um sistema público de comunicação, de um Conselho Nacional de Comunicação – que fosse deliberativo e responsável pela regulamentação e fiscalização – e a existência de regras claras para a limitação de monopólios e oligopólios. A Abert, por sua vez, tinha como objetivo garantir o mínimo de legislação para o setor. Atuar na ausência de um marco regulatório sempre foi o objetivo dos empresários do setor de comunicação e, para tanto, a associação contou com a contribuição incessante dos seus parlamentares.

Além da expressiva força da Abert na Assembléia Nacional Constituinte, outra esfera do poder público também estava claramente a favor dos concessionários: o Executivo. A composição do primeiro escalão da chamada Nova República tornava impossíveis alterações na regulamentação do setor de radiodifusão. No cargo de presidente, tomou posse um representante das oligarquias maranhenses e radiodifusor, José Sarney, que entregou à sua versão baiana, Antônio Carlos Magalhães, o Ministério das Comunicações. Na Secretaria Geral do ministério, Sarney e ACM mantiveram Rômulo Villar Furtado, no cargo então há 11 anos, tendo passado incólume pelos três últimos governos militares. A esposa do secretário-geral, Rita Furtado, uma grande empresária das comunicações, foi ainda eleita deputada federal e tornou-se agente direta dos interesses do ministério dentro da Constituinte.

Tensões, perdas e ganhos

A tensão no subcomitê Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática era grande. A primeira relatora do capítulo da comunicação, a deputada Cristina Tavares, de posição considerada progressista e a favor da democratização dos meios de comunicação, não aceitou descaracterizar a proposta do Conselho Nacional de Comunicação para torná-lo um órgão apenas consultivo. Também não cedeu em outras importantes propostas e foi substituída por Artur da Távola. Vários substitutivos foram feitos e a perspectiva de um acordo não chegava. Távola, com uma posição um pouco mais conciliatória, conseguiu, junto com uma comissão de professores da UnB e especialistas em políticas de comunicação, aos 45 minutos do segundo tempo, fechar um acordo e mandar direto para a votação em plenário a proposta do capítulo V do título VIII da Ordem Social da Constituição Federal.

De cara, o Plenário derrubou a proposta de se ter um Conselho Nacional de Comunicação com representação de diferentes setores da sociedade para regulamentar a comunicação caiu. Em seu lugar, criou-se o Conselho de Comunicação Social com caráter exclusivamente consultivo e limitado ao Senado, cuja regulamentação tornou-se, anos mais tarde, um drama à parte. Outra grande vitória dos radiodifusores  foi o condicionamento da cassação da concessão ou permissão para rádios e TVs ao voto nominal de no mínimo dois quintos do Congresso Nacional. A previsão inviabiliza, na prática, a cassação de qualquer outorga.

Por outro lado, a introdução da limitação a oligopólios e monopólios no artigo 220; dos princípios de finalidade educativa, cultural e informativa dos meios de comunicação além da regionalização e produção independente no art. 221 e a complementaridade dos sistemas estatal, público e privado de comunicação contida no artigo 223 foram vistos como uma vitória do setor progressista. Contudo, ao longo destes 20 anos, nenhum desses artigos considerados “ganhos” políticos da frente que defendia políticas democráticas para a comunicação foi satisfatoriamente regulamentado.

O saldo das negociações beneficiou claramente os empresários da radiodifusão, que saíram do processo constituinte como grandes vitoriosos da disputa ali travada. Apesar de a nova Constituição reforçar o caráter público da comunicação e, mais especificamente, da radiodifusão, o próprio texto e as disputas que seguiram à sua promulgação reforçaram o modelo de mercado e ampliaram as salvaguardas para a exploração privada e comercial do serviço.

Apesar de flagrantemente desatualizada, o Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962 continua ser a lei mais completa que regulamenta a radiodifusão. Em 1997, o setor das telecomunicações foi retirado de dentro do CBT, separado do setor da radiodifusão e, com a privatização, ganhou uma lei novinha, a Lei Geral das Telecomunicações. Por sua vez, a radiodifusão ainda é regulamentada por uma lei publicada quando a TV ainda era uma tecnologia em preto e branco.

Desregulamentado

Boa parte dos demais capítulos do Título VIII – Da Ordem Social foram regulamentados. Podemos usar como exemplo a saúde, que em 1990 foi regulamentada pela lei que criou o Sistema Único de Saúde (SUS) e outras leis complementares que tratam do orçamento do setor; a Educação, que foi regulamentada em 1996 com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e tem ainda regulamentado o Conselho Nacional de Educação e o Plano Nacional de Educação e a Assistência Social, que desde 2004 conta com o Sistema Único de Assistência Social (Suas) e também a Lei Orçamentária da Assistência Social (Loas).

Passados 20 anos da promulgação da Constituição, fica patente que não é do interesse dos radiodifusores nem da grande maioria dos parlamentares e tampouco dos governos que se sucederam ter um setor das comunicações plenamente regulamentado. Assim como os governos militares se utilizaram deste instrumento de forma a controlar os meios estatais, os governos civis e os parlamentares beneficiam-se das suas relações com os empresários da comunicação, rechaçando toda forma de dar transparência ao funcionamento do setor. Tem sido uma constante, ao longo dos anos, que projetos e políticas envolvendo mecanismos de democratização, participação ou controle público das mídias sejam barrados pelo Executivo e o Legislativo, quase sempre com seus defensores sendo rotulados de censores.

Além da comunicação, alguns outros capítulos da Constituição, como o que estabelece os direitos dos povos indígenas, que também se encontra no Título VIII, aguardam por uma nova regulamentação que se faça minimamente atualizada. Contudo, não se pode querer apenas atualizar as leis sem um direcionamento político que trate os temas da Ordem Social como bens públicos e, fundamentalmente, como direitos humanos. É importante ressaltar que de nada vai adiantar regulamentar estes setores sem reconhecer neles a sua real dimensão de direito humano e sem salvaguardar neles as responsabilidades que o Estado, como poder público, tem na sua garantia e promoção.

Série especial

O Observatório do Direito à Comunicação publica, a partir de hoje, uma série de reportagens e artigos que tentam apresentar um balanço dos 20 anos de vigência dos cinco artigos do Capítulo V – Da Comunicação Social do Título III da Constituição Federal. Em seu conjunto, o especial pretende colocar em perspectiva as disputas históricas pela interpretação do texto constitucional, as brigas antigas e recentes pela regulamentação dos artigos e, principalmente, como as duas décadas da Constituição impactam a garantia do direito à comunicação no país.


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