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Jornalismo de insinuação: “quem você pensa que está enganando?”

Os últimos dados sobre a circulação média de jornais divulgados pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC) para o mês de abril, e o tipo de jornalismo que continua sendo praticado pelos principais jornalões brasileiros, trouxeram à memória uma música de Paul Simon, muito popular nos anos 1970. Lançada em 1973, mesmo ano das audiências do caso Watergate no Congresso dos EUA, o refrão de Loves me like a rock ("gosta de mim tanto quanto um rock") repetia: "who do you think you´re fooling?" (quem você pensa que está enganando?)

A circulação dos jornalões

Dados do IVC revelam que a Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado de S.Paulo perderam, respectivamente, 10,84%, 7,75% e 16,93% de circulação média diária em abril de 2009, se comparada aos números de abril de 2008. Nenhum deles atinge a circulação de 300 mil exemplares diários. Os números arredondados são, respectivamente, 289 mil, 259 mil e 214 mil exemplares [veja aqui matéria "Circulação de jornais cai 6,7% em abril"].

Se supusermos que cada exemplar é lido, em média, por quatro (?) pessoas, o maior jornalão brasileiro teria hoje cerca de 1 milhão, 156 mil leitores/dia. Isto significa atingir potencialmente cerca de 0,604% do total estimado da população brasileira, que é de 191.231.246 habitantes (cf. IBGE , em 4/6/2009).

Considerando esses números em perspectiva histórica, verifica-se que, apesar do crescimento da população alfabetizada, há uma tendência clara de queda nos últimos anos. No ano 2000, a Folha tinha uma circulação média de 429.476 exemplares/dia, O Globo de 334.098 e O Estado de S.Paulo, 391.023. Por outro lado, a pesquisa sobre "O Futuro da Mídia", recentemente divulgada, revela que, entre nós, ler jornais (impressos ou online) é apenas a 10ª fonte de entretenimento preferida (ver "A mudança sem retorno ").

Na verdade, os dados do IVC apenas confirmam o que já se sabia: os jornalões, cada vez mais, circulam apenas entre parcela muito reduzida da elite letrada brasileira. Apesar disso, os números não parecem assustar o representante da Associação Nacional de Jornais (ANJ), que considera "a situação passageira (…), reflexo da situação da economia (sic)". E, paradoxalmente, também não parecem incomodar aos próprios jornalões.

Jornalismo de insinuação (e de exclusão)

O tipo de cobertura jornalística praticado pelos jornalões aparentemente não se interessa em conquistar novos leitores. Em princípio, uma cobertura equilibrada, que represente todos os lados envolvidos nas questões, seria aquela capaz de conquistar credibilidade e atrair o maior número de leitores – vale dizer, contemplar leitores de diferentes opiniões.

Se, no entanto, a cobertura jornalística obedece sempre a um mesmo "enquadramento" para diferentes notícias – "enquadramento" perceptível até mesmo para um leitor menos atento –, o que ela faz é reforçar, diariamente, a opinião dos atuais (poucos) leitores. Ao mesmo tempo, excluem-se eventuais novos leitores que não se alinhem com o "enquadramento" da cobertura.

Outra possibilidade, creio, mais remota, seria o jornal crescer dentro do universo de leitores potenciais que também se sentiriam reforçados com o "enquadramento" já praticado.

Poucos quilômetros

Tomemos um pequeno, mas emblemático, exemplo: a cobertura oferecida pelo jornal O Globo na terça feira (2/6), sobre o comportamento comparado dos presidentes da França e do Brasil em relação aos parentes das vítimas, tão logo se soube do desaparecimento do Airbus da Air France (o tema foi tratado neste Observatório em "Air France, voo 447 – As tragédias da mídia).

A "má vontade" da cobertura política dos jornalões em relação ao presidente da República, seu partido e seus aliados, embora não consensual, é certamente conhecida e reconhecida. Não me refiro, por óbvio, à fiscalização das atividades do Executivo, nem às denúncias fundadas de corrupção, nem aos editoriais, nem à opinião de colunistas e/ou articulistas. Refiro-me tão somente à rotina diária da cobertura política.

Uma nota de capa de O Globo tinha como título "Sarkozy vai e Lula manda vice". Uma matéria interna (pág. 9) tinha como título "Sarkozy consola parentes; Lula estava longe".

Seria difícil negar que esses títulos – estatisticamente mais lidos do que o conteúdo das matérias – insinuam que o presidente brasileiro, ao contrário de seu colega francês, foi omisso e não deu a importância que deveria ao acidente, mandando o vice representá-lo e permanecendo longe dos acontecimentos.

Os leitores que se derem ao trabalho de ler, tanto a nota quanto a matéria interna, no entanto, ficarão sabendo: que o presidente do Brasil soube do desaparecimento do Airbus depois de chegar a El Salvador, que visitava, em viagem oficial, para as solenidades de posse de seu novo presidente (aliás, casado com uma brasileira); que ele cancelou sua participação no almoço comemorativo "por estar abalado com a tragédia"; e que ele pediu ao presidente em exercício para deslocar-se de Brasília ao Rio de Janeiro, para se encontrar com os familiares.

Nem a nota, nem a matéria de O Globo, todavia, informam ao leitor que o Palácio do Eliseu, onde estava o presidente da França (aliás, país de origem da Air France e membro-sede do consórcio franco-germânico-espanhol – European Aeronautic Defence and Space Company (EADS) – fabricante do Airbus A330-200), fica a poucos quilômetros do aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, onde Sarkozy se reuniu com os familiares das vítimas.

"Who do you think you´re fooling?"

O jornalismo de insinuação, ao "dar a entender de modo sutil ou indireto" uma interpretação tendenciosa, fere o princípio básico do jornalismo que é seu compromisso com a verdade. Sua prática desrespeita o leitor e, por óbvio, é condenável em qualquer circunstância. Utilizar o jornalismo de insinuação até mesmo na cobertura de uma tragédia das proporções do acidente do voo 447 da Air France, com o objetivo de atingir politicamente um presidente da República cujos índices de aprovação, em todas as camadas sociais, estabelecem recordes históricos, não parece revelar a intenção de ampliar o número de leitores ou aumentar a circulação do jornal.

Na hipótese inversa, estaríamos supondo que os jornalões ainda acreditam que seus leitores (antigos e/ou novos) são incapazes de fazer a distinção entre a insinuação dos títulos, a omissão de informações na matéria e a verdade dos fatos.

Se for esse o caso, valeria repetir para os jornalões, o refrão da musica de Paul Simon: "Who do you think you´re fooling?". E a resposta só poderia ser uma: os jornalões estão enganando (fooling) a si mesmos. O resultado desse tipo de jornalismo, junto a outras causas, está revelado, ainda mais uma vez, nos últimos números divulgados pelo IVC.

Venício A. de Lima  é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)

O novo nasce, o velho ainda resiste

Após participar de debates sobre a mídia em diferentes cidades do país nas últimas semanas, ocorreu-me a famosa passagem de Antonio Gramsci (1891-1937) nos Cadernos de Cárcere quando ele comenta sobre a "crise de autoridade" (Selections of the Prison Notebooks; International Publishers, New York, 1971; págs. 275-276).

Embora, por óbvio, as circunstâncias fossem outras e seja necessária uma pequena adaptação no texto, penso que se aplica ao momento de transição que a mídia vive no Brasil a idéia de que "o velho está morrendo e o novo apenas acaba de nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece". (A frase original correta é: "A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece".)

O novo e o velho

Não há dúvida de que o espantoso crescimento da inclusão digital, cuja melhor expressão é o acesso à internet através de suportes como o computador pessoal e os celulares, está provocando uma mudança profunda na produção, distribuição e no "consumo" de informações e entretenimento (ver "A mudança sem retorno ").

Não há dúvida, também, de que essas mudanças indicam uma quebra da unidirecionalidade histórica da comunicação de massa e a possibilidade de maior pluralidade e diversidade no espaço público com o surgimento, por exemplo, de sites alternativos, blogs e a criação capilar de novas redes sociais. Atores tradicionalmente excluídos do espaço público de discussão e formação de opinião na sociedade brasileira estão tendo, afinal, alguma chance de serem ouvidos. Abriu-se uma enorme janela de oportunidades.

Por outro lado, a velha mídia – sobretudo os jornais diários, mas também as revistas, o rádio e a televisão – apesar das quedas globais de circulação e audiência, do fechamento de jornais e da migração do impresso para a internet, não só resistem em buscar as adaptações que garantirão sua sobrevivência de longo prazo no mercado, mas se apegam às velhas fórmulas. É aí que "sintomas mórbidos aparecem".

Neste contexto, a conhecida prática da busca de leitores pelo desencadeamento de campanhas de denúncias contra pessoas e/ou instituições, independente da procedência das acusações, continua a provocar danos em imagens e reputações que dificilmente serão reparadas, mesmo, se e quando, uma decisão judicial que garanta o direito de resposta for eventualmente cumprida.

"Sintomas" contraditórios

A confirmação do fechamento da Gazeta Mercantil – um jornal especializado em economia que não previu as transformações porque passa o seu setor; a recente compra da agência de notícias global Reuters pela canadense Thomson e o anunciado desmembramento da AOL – provedora de internet – do grupo Time Warner (apesar do controle acionário permanecer integralmente no grupo) são sinais difusos e, aparentemente, contraditórios da universalidade do terremoto na economia política do setor.

Enquanto isso, entre nós, às vésperas da realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, outros sintomas aparecem: o Supremo Tribunal Federal revoga por completo a Lei de Imprensa (5.250/1967), deixando a descoberto o "direito de resposta" e provocando a insegurança jurídica de empresas, instituições e, sobretudo, de cidadãos; o ministro das Comunicações insiste em "reprimir" a juventude que "vive dependurada na internet"; o Senado Federal aprova um projeto de lei que pretende controlar a liberdade existente na internet; o Superior Tribunal de Justiça decide que "não se pode exigir que a mídia só divulgue fatos após ter certeza plena de sua veracidade" e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) concentra seus esforços na exclusão de todos aqueles que não possuem diploma de jornalista do exercício da atividade jornalística.

Riscos da transição

Um dos riscos que se corre, enquanto a transição não se completa, é esquecer que o velho resiste e sobrevive e está mais ativo do que nunca em defesa de seus antigos privilégios. E essa é uma verdade que tem diferentes e matizadas dimensões.

Perder de vista essa realidade significa não só ignorar as lições do passado como adiar possíveis conseqüências que, tudo indica, permitirão que a maioria excluída da população participe do espaço público brasileiro e que tenhamos, afinal, uma mídia mais democratizada.

Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)

A propaganda oficial e a voz do dono

A Folha de S. Paulo publicou no domingo (31/05) uma matéria muito interessante do repórter e colunista Fernando Rodrigues sobre os gastos da propaganda do governo Lula. O que a Folha vê como ponto negativo na política do atual governo este observador avalia ser a melhor novidade dos últimos anos no setor.

A questão é simples: segundo a Folha, com praticamente o mesmo recurso utilizado na gestão anterior, considerando a correção monetária, o governo Lula anunciou em mais de 5 mil veículos de comunicação. Durante o governo de Fernando Henrique, eram apenas 500 os beneficiados.

A matéria da Folha sustenta que essa prática não é condizente com as regras de mercado e cita exemplos da Fiat e Itaú, que publicam anúncios de alcance nacional em menos de 200 veículos. De fato, o governo Lula não obedece às regras de mercado e esta é a melhor notícia que se pode ter na área da distribuição das verbas públicas para publicidade em veículos privados de comunicação.

Sim, porque com a maior distribuição dos recursos de propaganda, na prática o governo fomenta a democratização dos meios de comunicação. Antes, só os grandões levavam o meu, o seu, o nosso dinheirinho, impedindo o crescimento de outras publicações. Agora, jornais regionais e pequenos também levam e podem se tornar competitivos, o que é ótimo para a sociedade de várias formas: dinamiza o mercado de trabalho do setor, possibilita que diferentes vozes tenham meios de expressar suas ideias, enfim, é tudo de bom.

A voz do dono

Dois excelentes colunistas da Folha de S. Paulo – um dos quais o próprio autor da matéria publicada domingo – perderam na segunda-feira (1/6) a chance de ficarem calados. Defenderam a destinação dos recursos oficiais para propaganda apenas aos grandes veículos de comunicação.

O texto de Fernando de Barros Silva, em especial, cairia perfeitamente bem na assinatura do patrão Otavio Frias Filho. Já o de autoria de Fernando Rodrigues é uma análise interessante, mas derrapa nas últimas linhas. Ambos vão reproduzidos ao final desta nota.

A questão, como já se viu acima, é muito simples – simplíssima, aliás –, mas vale repeti-la. Se Lula gasta a mesma verba que FHC gastava com publicidade, poderia fazer duas coisas: manter o padrão de gastos do governo anterior, que privilegiava os grandes meios de comunicação, ou diminuir o quinhão dos grandes e distribuir a verba entre os pequenos.

O governo optou pela segunda forma de distribuir verba e é acusado pelos colunistas da Folha de estar comprando a simpatia dos proprietários de pequenas rádios, jornais e revistas. Ora, se o governo não pode distribuir a verba, resta então a outra hipótese: manter o padrão de distribuição da gestão anterior, na qual praticamente só os grandes veículos tinham acesso aos recursos da publicidade oficial.

Ou seja, os dois Fernandos – mais o Barros e Silva e menos Rodrigues – no fundo defendem mais um capilé para a Folha de S.Paulo e nada para o Diário de Cabrobó do Mato Dentro. Justo? Talvez, mas a verdade é que seria muito mais elegante se o próprio Otavio Frias Filho defendesse a tese, em artigo assinado ou em editorial. Quando jornalistas decidem ser mais realistas que o rei, em geral o vexame é grande.

Confecom: um inédito confronto na arena da comunicação

Se alguém tinha alguma dúvida de que as coisas estão realmente mudando na comunicação, a evidência definitiva poderá ser a realização em Brasília, no início de dezembro, da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (CONFECOM), um evento nacional onde pela primeira vez governo, empresários e sociedade civil vão discutir, olho no olho, o futuro da mídia brasileira.

É uma ocasião única porque uma conjuntura muito particular colocou os três blocos numa situação em que um precisa do outro para sobreviver à crise dos modelos convencionais de comunicação num país onde a tradição é o monólogo nesta matéria.

A coincidência de um processo eleitoral, da crise de um modelo de negócios e do crescimento do caráter social da internet fez com que o Estado, a iniciativa privada e a sociedade civil passassem a apostar na comunicação como a principal ferramenta para alcançar seus respectivos objetivos estratégicos.

Cada um dos três protagonistas tem seus próprios objetivos: o governo quer romper o cerco imposto pelos interesses corporativos privados na área da informação, enquanto as indústrias da comunicação buscam condições mais favoráveis para absorver as mudanças impostas pela era digital. Já as organizações sem fins lucrativos e não estatais querem ampliar o espaço público na produção e disseminação de informações.

Os objetivos são tão amplos e diversificados que dificilmente a CONFECOM poderá ser avaliada pelos seus resultados concretos. É utópico pensar que burocratas estatais, executivos privados e ativistas sociais consigam resolver suas divergências nos três dias de conferência, cujo público é estimado em aproximadamente 300 pessoas.

Mas a inédita decisão de sentar-se à uma mesma mesa já dá esperanças de que os protagonistas tenham entendido que o histórico monólogo na abordagem da questão comunicacional no país precisa ser substituído por um diálogo, por mais frágil que seja. Se este estado de espírito for alcançado ele será muito mais importante do que os comunicados finais, geralmente inócuos e suficientemente vagos para acomodar posições diametralmente opostas.

A posição do governo está facilitada pelos dilemas dos principais grupos privados na área de comunicação no país. Os grandes conglomerados da imprensa estão debilitados pelas incertezas em torno do futuro do seu negócio e pela pressão das operadoras de telefonia móvel, interessadas em entrar para valer na área de produção de conteúdos audiovisuais.

As empresas apostam tudo na manutenção do laissez faire total na área de comunicação, denunciado tanto supostas — como reais — intenções estatizantes do governo ao mesmo tempo em que vêem com desconfiança o renovado ativismo de organizações sociais, cujo poder de fogo foi ampliado pela internet.

O setor não governamental e não lucrativo é o maior interessado na CONFECOM porque é a sua estréia como protagonista de peso no debate das políticas de comunicação no país. Por menores que sejam os resultados do evento, ainda assim as organizações sociais têm grandes chances de cantar vitória porque elas finalmente terão sido reconhecidas como ator político relevante na arena informativa.

As estratégias setoriais ainda estão sendo elaboradas, mas boa parte delas ainda passa ao largo da grande questão: como o cidadão da rua poderá ser ouvido. Eventos desta natureza normalmente acabam sendo monopolizados pelos líderes e articuladores, enquanto o cidadão comum fica relegado à posição de espectador passivo.

O argumento é que a sociedade civil é essencialmente desorganizada, mas agora o quadro mudou. A internet oferece a possibilidade de as pessoas comuns falarem um pouco mais alto e grosso, usando os weblogs, comunidades, correio eletrônico, Twitter etc etc para expressar suas opiniões. Comparado ao total de população, os incluídos digitalmente ainda são uma minoria, mas comparado ao índice de 1999, houve um vertiginoso aumento no número de atores digitais.

Só que eles não usam o jargão dos políticos e lideranças. A voz da rua e dos blogueiros, por exemplo, é bem menos sofisticada. Ela assusta e, muitas vezes, se expressa através de demandas que nem sempre podem ser chamadas de politicamente corretas.

Mas se a cidadania é considerada uma parte obrigatória no funcionamento de uma comunicação livre, então ela terá que ser aceita em seu estado bruto. Caberá aos demais protagonistas entender e contextualizar a participação social como ela é, e não como gostariam que fosse. 

Carlos Castilho é Professor de Jornalismo Online no curso de Mídia Eletrônica, Faculdades ASSESC (Florianópolis), autor do capítulo Webjornalismo no livro No Próximo Bloco – Editora PUC-Rio -2005, cursando pós graduação em Mídia e Conhecimento no EGC/UFSC. 
-Reside em Florianópolis (SC) e-mail ccastilho@gmail.com.

Existe jornalismo independente?

A Reitoria da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) promove na quarta-feira (27), um seminário sobre "Jornalismo Independente" no contexto do debate em torno da liberdade de imprensa, do direito à informação e da democracia no Brasil. A velha questão está mais atual do que nunca: a Lei de Imprensa do período autoritário foi revogada, estamos em ano pré-eleitoral e a mídia tradicional passa por profundas transformações provocadas pela revolução digital. O tema merece, portanto, reflexão renovada. Esboçamos algumas linhas mestras para ela, nos limites deste pequeno artigo.

Primeiro, para que a reflexão não caia no idealismo abstrato recorrente, é necessário registrar que o jornalismo é uma atividade exercida por profissionais, em empresas de mídia, sejam elas de jornalismo impresso – jornais ou revistas – ou de jornalismo eletrônico – o serviço público de rádio e televisão – podendo estas pertencer aos sistemas privado, público ou estatal (não vamos discutir aqui o "jornalismo" das assessorias de imprensa e nem o jornalismo da internet). Outro ponto de partida é que, na expressão "jornalismo independente", o adjetivo "independente" significa "livre de qualquer sujeição, autônomo".

Considerando que existe entre nós uma hegemonia histórica do sistema privado de mídia, tanto impresso como eletrônico, poderíamos, então, formular a seguinte questão: o jornalismo praticado nas empresas privadas brasileiras de mídia é independente, autônomo? A pergunta remete imediatamente a outra: independente, autônomo, em relação a que, ou, mais precisamente, a qual poder?

O Estado como ameaça única

Talvez por um vício de origem do embate sobre a liberdade de impressão – que não é idêntica à liberdade individual de expressão e nem à liberdade de imprensa – ainda nos tempos do absolutismo político e religioso europeu, geralmente se equaciona independência e autonomia do jornalismo em relação ao poder do Estado.

No caso brasileiro, é verdade que o nosso jornalismo, desde os poucos anos em que existiu durante o Brasil Colônia, ao longo do Império e desde a proclamação da República, sempre manteve uma relação de interdependência com o Estado. Esta interdependência se materializa através de subsídios, empréstimos bancários e financiamentos oficiais; de isenções fiscais, publicidade legal obrigatória ou publicidade oficial e, mais recentemente, até mesmo pela compra volumosa – e sem licitação – de material didático.

Por óbvio, essa interdependência histórica, muitas vezes fez com o jornalismo se submetesse aos interesses do Estado, sobretudo nas relações da mídia regional e local com os governos estaduais e municipais.

Por outro lado, é verdade também que, em diferentes momentos, floresceu um jornalismo de combate ao Estado autoritário e defesa das liberdades democráticas como, por exemplo, aquele da chamada "imprensa alternativa" dos anos 1970 e 80; ou da campanha pelas "Diretas Já" em 1984-85 ou da campanha pelo impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992.

Outras poderes

Mas constituiria o Estado, de fato, a única ameaça à independência e autonomia do jornalismo? No debate público que a mídia propõe de questões como liberdade de imprensa ou qualquer forma de regulação do setor de comunicações, afirma-se que sim. O Estado é sempre identificado como único poder que ameaça – por sua própria natureza – as liberdades individuais e, por extensão, a liberdade do exercício do jornalismo.

No mundo contemporâneo, todavia, há fartas evidências de que as ameaças à independência e autonomia do jornalismo podem vir tanto do Estado como do poder econômico, como dos próprios conglomerados empresariais dos quais alguns grupos de mídia fazem parte. Essas ameaças podem vir, inclusive, da autocensura praticada pelos próprios jornalistas profissionais que internalizam regras empresariais de atuação – não necessariamente escritas – formuladas no interesse dos proprietários dos grupos de mídia.

No caso brasileiro, há se acrescentar ainda a ameaça a independência e à autonomia do jornalismo que decorre da imbricação histórica existente entre as oligarquias políticas regionais e locais com as concessões de radiodifusão, agravada por dispositivos da Constituição de 1988 que fazem de alguns parlamentares, ao mesmo tempo, poder concedente e concessionários desses serviços públicos.

Subcultura e rotinas produtivas

Há ainda que se registrar que os estudos sobre linguagem, a sociologia do jornalismo e sobre a construção da notícia (newsmaking), o enquadramento (framing) e o agendamento (agenda setting), apesar de diferenças significativas, revelam que a prática do jornalismo profissional ocorre no contexto de uma subcultura própria; de rotinas produtivas que se transformam em normas; e de interferências editoriais – explícitas ou não – que tornam sem sentido qualquer pretensão à existência do mito da objetividade jornalística ou de uma prática jornalística neutra e isenta.

Como se vê, a questão do jornalismo independente é complexa e comporta um amplo leque de considerações que, embora apenas indicadas neste texto, apontam para a impossibilidade da existência de uma prática jornalística inteiramente livre de constrangimentos – vale dizer, um jornalismo que pairasse acima das disputas de poder que existem no seio da sociedade. Pode-se, no entanto, afirmar com segurança que as limitações à independência e autonomia do jornalismo não se originam apenas no Estado, mas estão presentes, inclusive, no interior dos grupos de mídia e no próprio exercício da profissão de jornalista.