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Eleições e internet: Os limites da liberdade

O Estadão comeu mosca (“Câmara libera internet na propaganda eleitoral”), o Globo foi ao ponto (“Regras para internet causam polêmica”) e a Folha mandou ver (“Câmara aprova lei eleitoral que limita cobertura on-line”) no noticiário da quinta-feira, 9, sobre a aprovação, na véspera, do projeto que reforma as regras eleitorais no país. O projeto precisa ainda passar pelo Senado.

O erro do Estado foi destacar a autorização dada aos candidatos e partidos em campanha para fazer propaganda em seus sites, blogues, comunidades de relacionamento e ferramentas de envio de mensagens pessoais.

Muito mais importantes são as normas de comportamento estabelecidas pelos deputados a todos quantos publicam na rede – dos chamados provedores de conteúdo a blogueiros e internautas em geral.

Delas se pode dizer, com certeza, que causam polêmica. Ou, menos certamente talvez, que limitam a “cobertura” das campanhas eleitorais.

O ponto mais polêmico, do qual decorrem as limitações, quaisquer que sejam, é a equiparação da internet às emissoras de rádio e TV. Aliás, polêmico é modo de falar. A equivalência não se sustenta.

Emissoras são concessões públicas. O Congresso, portanto, tem o direito de estipular o que podem e não podem fazer durante uma campanha eleitoral. Portais, sites, blogues etc etc são iniciativas que independem de permissão, autorização ou concessão oficial. Assim como jornais e revistas.

Goste-se disso ou não, uma TV não pode promover debates apenas entre alguns candidatos, os mais bem situados nas pesquisas, que atraem o interesse da grande maioria dos eleitores. O formato e o número de debatedores deve ser decidido de comum acordo com todos eles (como ainda é) ou com 2/3 deles (como passará a ser se o projeto votado na Câmara virar lei na forma atual).

Um periódico impresso pode sabatinar ou confrontar quais e quantos candidatos queira – e arcar com o prejuízo para a sua credibilidade se a sua seleção for patentemente facciosa. Assim também deveria ser na internet, não só por uma questão de lógica elementar, mas também porque o Tribunal Superior Eleitoral já decidiu que o que vale para a mídia impressa vale para a internet.

A Câmara resolveu que os candidatos podem fazer propaganda paga em jornais e revistas, até o limite de 10 anúncios. Na internet, não.

A Câmara resolveu que debates online podem ser realizados no período da campanha, que começa no dia 5 de julho dos anos eleitorais. (Outra jabuticaba: as campanhas devem começar quando os políticos quiserem – aliás, é o que sempre fazem; o horário da propaganda gratuita é que tem data para ir ao ar.) Mas os debates têm que obedecer à regra dos 2/3.

“O jornalismo na internet foi e sempre será permitido”, argumenta o deputado Flávio Dino (PC do B-MA), relator do projeto. “O que estamos propondo é que, além da liberdade, haja equidade.”

Vamos nos entender. A exigência de equidade restringe a liberdade de imprensa. Isso pode, ou não, se justificar. Mas que restringe, restringe – assim como toda intervenção do poder público de combate às desigualdades sociais é uma restrição à liberdade econômica absoluta.

A Câmara resolveu implicitamente que a internet pode noticiar, comentar e analisar o desenrolar das campanhas. Mas, explicitamente, abre espaço para os candidatos alegar que a notícia, o comentário e a análise são formas disfarçada de propaganda de seus adversários. Ou ainda, que foram injuriados, difamados ou caluniados por palavras ou imagens, tendo direito de resposta – a que se dará o mesmo tamanho e pelo dobro do tempo no ar das mensagens tidas como injuriosas, difamatórias ou caluniosas que, naturalmente, terão de ser suprimidas.

A Folha entendeu que isso cerceia a “cobertura” online. No bem-produzido quadro “Campanha limitada”, o colunista Fernando Rodrigues escreve que “as medidas terão efeito inibidor da liberdade de expressão na internet, cuja característica principal é o caráter pessoal e irreverente de blogs e sites de pessoas físicas”.

E ainda, sobre o risco de interdição de sites, blogues e redes de relacionamento considerados transgressores, “será impossível haver liberdade de expressão e informação se for necessário evitar humor que possa eventualmente ridicularizar algum político”.

De novo, vamos nos entender. Quando for o caso e na dose certa, a cobertura da maioria dos fatos pode conter humor e irreverência. Mas, diferentemente do que se aplica às manifestações pessoais na internet, nem uma coisa nem a outra são “características” de uma reportagem – a expressão por excelência do que se entende por cobertura.

Daí a dúvida se, por isso, a lei eleitoral em tramitação no Congresso tolhe o acompanhamento jornalístico de uma eleição, como sustenta a Folha.

Já no Globo, o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) se insurge contra a regulamentação do tratamento das campanhas no que considera “território livre, anárquico, sem Estado”. Ele observa que “as sanções aos provedores resultarão em censura dos conteúdos”.

Eles serão responsabilizados, por exemplo, se um internauta atacar um candidato ou levantar a bola de outro.

Aí entra a pergunta que retoma a questão das fronteiras da liberdade na internet: ela deve ser irrestrita?

Muitos sites e blogues, como este, filtram os comentários recebidos, conforme critérios que são do conhecimento dos comentaristas e que basicamente tratam de preservar padrões elementares de civilidade no debate online. O Observatório da Imprensa, por exemplo, adverte:

“Este é um espaço de diálogo e troca de conhecimentos que estimula a diversidade de idéias e pontos de vista. Não serão publicados comentários com xingamentos e ofensas ou que incitem intolerância ou crime. Os comentários devem ser pertinentes ao tema da matéria e aos debates que naturalmente surgirem. Evite vulgaridades e simplificações grosseiras. Não escreva em maiúsculas: isso dificulta a leitura do texto e, na linguagem da internet, é interpretado como gritos. Mensagens que não atendam a estas normas serão deletadas, e os comentaristas que habitualmente as transgredirem poderão ter interrompido seu acesso a este fórum.”

Em outros países, vale tudo – embora a tendência seja de barrar os golpes abaixo da linha da cintura sob a forma de palavras que, por isso mesmo, devem se tornar impublicáveis. Sem falar nas incontroláveis alegações sem um fio de comprovação de que fulano(a) é isso ou aquilo, e que se propagam, em sentido metafórico e literal, à velocidade da luz.

A lama que rolou na blogosfera americana na última campanha presidencial – com tiradas racistas e a invencionice de que Obama é um muçulmano enrustido – foi qualquer coisa de pornográfico.

Campanhas eleitorais estão entre os eventos que notoriamente favorecem o transbordamento do esgoto humano. Sendo assim, a censura que o projeto de reforma eleitoral induzirá os provedores de conteúdo a adotar e para a qual o deputado Miro Teixeira alerta parece justificada.

Nem tudo que se pensa se deve escrever. Nem tudo que se escreve deve ser publicado. Nem tudo que se publica deve ficar impune. No caso particular de uma eleição, há mais: deixado à solta na internet, o rancor das disputas políticas rebaixa a democracia e faz crescer a incivilidade que degrada as sociedades.

* Luiz Weiss é jornalista, pós-graduado em Ciências Sociais pela USP, onde lecionou Sociologia da Comunicação; escreve no Observatório da Imprensa e no jornal O Estado de S.Paulo.

Correio Braziliense e GDF, relações suspeitas

Num domingo, 8 de março de 2009, o Correio Braziliense, principal jornal do Distrito Federal, dedicou duas páginas (uma delas a capa) do seu caderno "Cidades" a ampla matéria na qual encampava publicamente a posição de porta-voz do Governo do Distrito Federal (GDF) contrária à anunciada greve dos professores da rede pública de ensino. Os professores reivindicavam o cumprimento de um acordo salarial (ver aqui e aqui).

O título principal da matéria era "Greve sem causa" e uma coluna encimada pela retranca "Visão do Correio", intitulada "Crime de lesa-futuro" fazia, dentre outras, as seguintes afirmações: que a ameaça de greve era descabida; que o reajuste salarial ultrapassava os limites do bom senso; que não se apelava ao idealismo dos professores, mas ao profissionalismo e concluía:

"Há muito o GDF deixou para trás a idéia ultrapassada de que o magistério é sinônimo de sacrifício. Não é. Trata-se de atividade essencial para formar cidadãos, preparar mão de obra qualificada e dotar o país de elite indispensável para a construção do futuro. A responsabilidade da função impõe direitos e deveres. São os deveres — exigidos de qualquer trabalhador — que os professores querem ignorar. É crime de lesa-futuro."

O leitor atento certamente terá notado, à época, que contrariamente às regras elementares e básicas do jornalismo, a longa matéria opinativa do Correio Braziliense, além de defender um dos lados, isto é, não ser isenta, omitia inteiramente o "outro lado" envolvido na disputa: os professores não foram ouvidos, simplesmente não aparecem na matéria para explicar ou defender sua posição.

Notícias (?) em sala de aula

Menos de quatro meses depois, no dia 22 de junho, o mesmo Correio Braziliense anuncia também em seu caderno "Cidades", página 23, sob a retranca "Educação" e o título "Notícias em sala de aula" (a matéria foi reproduzida no sítio do próprio GDF sob o título "SEDF e Correio lançam projeto para incentivar leitura e escrita na rede pública", ver aqui ), que 7.562 exemplares do jornal serão distribuídos todos os dias, "até o fim de 2009", a professores e alunos de 199 escolas urbanas e rurais da rede pública de ensino do DF.

Em sugestiva resposta a pergunta feita pelo jornal, o secretario de Educação do GDF informa:

Se o senhor fosse professor, o que faria com o jornal em sala de aula?

Eu olharia o caderno de `Cidades´ e tentaria identificar nas notícias o que tem a ver com a cidade do aluno e o que dali é possível demandar. Seguramente, esse é o primeiro ponto, por causa da proximidade. Estou tratando de uma coisa que está muito próxima de mim. E depois de pegar o cotidiano de todo o DF, podemos analisar o do Brasil e do mundo."

A matéria – seria possível chamá-la de "notícia"? – no entanto, omite informações fundamentais. Por exemplo: não se sabe se teria sido realizada uma licitação; qual o valor do acordo (contrato?); e se os professores e/ou os alunos da rede pública foram ouvidos. E mais: se houve alguma discussão sobre a conveniência pedagógica de acordo (ou contrato?) desse tipo.

Os professores da rede pública do GDF, por outro lado, por meio de seu sindicato, reagiram à assinatura do convênio e perguntam no seu site (ver aqui):

"Como podemos confiar na opinião do mesmo jornal que, no dia 8 de março deste ano, na abertura do mesmo caderno `Cidades´, publicou como visão do Correio um minieditorial com o indignante título de `crime de lesa-futuro´. Crime esse que nós, professores, cometeríamos se tomássemos a atitude `descabida´ (sic) de entrar em greve para fazer valer nossos direitos?"

Interdependência histórica

As relações históricas de interdependência entre o Estado e a mídia no Brasil são por demais conhecidas. Elas se materializam através de subsídios, empréstimos bancários, financiamentos oficiais, isenções fiscais, publicidade legal obrigatória ou publicidade oficial. Uma manifestação mais recente dessa interdependência é exatamente a compra volumosa – e sem licitação – de material considerado didático.

Compras desse tipo, agora em ano pré-eleitoral, já foram detectadas nos estados de São Paulo e Goiás e na prefeitura do município de São Paulo (ver "Globo e Abril agradecem ", na Revista do Brasil nº 34, de abril de 2009; e, neste Observatório, "A privatização subjetiva da educação pública "). Há, inclusive, uma representação feita junto ao Ministério Público questionando os contratos firmados entre o estado de São Paulo e o Grupo Abril (ver aqui ).

O acordo (contrato?) agora anunciado entre o GDF e o Correio Braziliense significa que cerca de 16% da tiragem média do jornal em dias úteis estão vendidas "até o fim de 2009" (cf. números do Instituto Verificador de Circulação de março de 2009). Não se conhece o valor total envolvido no acordo (contrato?). O site do Sinpro-DF informa que…

"Ainda não conseguimos ter acesso ao valor total do convênio (…) mas somente do Fundeb serão gastos mais de R$ 2,9 milhões para pagar ao CB, conforme pode se ver pela nota de empenho do Governo do Distrito Federal (clique aqui para ver). Também descobrimos que há outra nota de empenho do Fundeb em favor da revista Veja, no valor de R$ 442.462,50 (clique aqui para ver )."

Os recursos do Fundeb, como se sabe, são destinados ao financiamento da educação básica (creche, pré-escola, ensino fundamental, ensino médio e educação de jovens e adultos) e sua aplicação é fiscalizada por um Conselho de Acompanhamento e Controle Social que tem como função principal acompanhar e controlar sua distribuição, transferência e aplicação no âmbito das esferas municipal, estadual e federal (ver aqui).

Notícias, dinheiro público e transparência

Em tempos de crise da mídia impressa (salvo dos jornais populares e gratuitos), colocando em risco a própria sobrevivência no mercado de alguns jornalões, mais ainda do que em época de normalidade, não seria ético e salutar que jornais como o Correio Braziliense – além de zelar pela credibilidade fazendo jornalismo de notícias e não de matérias opinativas – praticassem, para si mesmos, aquilo que corretamente têm exigido de outras esferas de poder (exceto, aparentemente, do GDF)?

Ou o critério da transparência na destinação do dinheiro público não se aplica quando beneficia a própria grande mídia?

Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)

Queda do diploma: vitória da lógica e da democracia

Não é mais preciso de canudo para ser jornalista no Brasil. Em uma decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal julgou na sessão de quarta-feira (17/06) a questão da obrigatoriedade de diploma específico para o exercício da profissão de jornalista. Foram oito votos contrários e apenas um favorável à exigência. Trata-se de uma vitória do jornalismo e da democracia brasileira, reafirmando as teses da liberdade de expressão e do livre pensamento, garantidas pela Constituição Federal.

Este observador já se manifestou sobre o assunto (aqui e aqui , entre outros tantos comentários neste OI ou no blog Entrelinhas) e sempre apoiou o fim da obrigatoriedade do diploma. Antes que alguém pergunte, cabe logo o esclarecimento: jornalista desde 1995, quem assina este texto não tem o diploma específico, é formado em História pela Universidade de São Paulo e abandonou, no terceiro ano, o curso de Administração Pública na Fundação Getulio Vargas para abraçar a profissão (opção esta que acarretou algum prejuízo material, certamente).

É preciso, portanto, desde logo esclarecer que não se trata aqui de advogar em causa própria, pois ao longo desses quase 15 anos a falta de diploma jamais foi óbice para o trabalho em veículos tão diferentes quanto a Folha de S. Paulo, Correio da Cidadania, PanoramaBrasil, DCI, Valor Econômico, além, é claro, deste Observatório, desde o ano 2000.

A questão da exigência do diploma para exercício do jornalismo é na verdade até simples: a profissão de jornalista dispensa a formação universitária específica porque não existe nenhuma técnica, norma ou regra que não se possa aprender nas redações, trabalhando, ou seja, fora das salas de aula. Há diversas profissões com as mesmas características, além da de cozinheiro, citada ironicamente pelo ministro Gilmar Mendes. Publicitários, músicos, artistas, escritores são alguns assemelhados: é perfeitamente possível realizar o trabalho sem ter aprendido a teoria na escola.

Tudo que um bom jornalista precisa é de talento, curiosidade e vontade de aprender a exercer a profissão, seja na universidade ou no dia a dia de seu trabalho. E de preferência manifestar esta vontade ao longo de toda a sua vida, continuamente.

Salvo exceções, os melhores profissionais acabarão sendo os mais bem formados e para isto só há uma coisa a fazer: estudar bastante. Este observador recomendaria a um jovem que deseja ingressar na profissão que curse qualquer faculdade – pode ser Direito, Economia, Engenharia, qualquer das Ciências Humanas ou até mesmo Medicina, Química ou Matemática. Uma pós-graduação em Comunicação complementaria maravilhosamente a formação, mas isto não é uma necessidade imperiosa.

O fim da exigência do diploma acaba com uma barreira corporativista tacanha, levantada por um sindicalismo medíocre, e não significa em absoluto o fim das escolas de jornalismo. De fato, o fim da exigência não impedirá que muitos jovens continuem cursando jornalismo para ingressar na profissão. Atualmente existem excelentes faculdades de Publicidade e Marketing, embora o diploma não seja obrigatório para o exercício da profissão. Muitos profissionais que se destacam neste meio são recrutados nas universidades.

Por outro lado, gente com talento especial e até sem educação formal alguma poderá exercer o jornalismo sem os constrangimentos dos defensores de um canudo que no fundo só servia para a manutenção de seus próprios feudos no meio sindical. Ou alguém imagina, em sã consciência, um sindicato dos escritores lutando pela exigência de diploma específico para a profissão de escritor; um sindicato dos atores tentando impor a frequência em escolas de arte dramática para que seus pares subam nos palcos?

É claro que a Fenaj e as faculdades privadas (ou seriam fábricas de diplomas?) não vão dar a batalha por perdida, certamente vem aí algum projeto de lei estapafúrdio como o do Conselho Federal de Jornalismo para reinventar a obrigatoriedade do diploma. Afinal, ninguém larga a rapadura assim de graça, portanto esta briga ainda vai longe, muito longe.

Tudo somado, porém, a verdade é que o STF tomou a decisão mais acertada. Não que a questão do canudo seja central na discussão sobre mídia e imprensa no país hoje, mas o fim do diploma obrigatório foi bom para o Brasil, bom para o jornalismo, bom para os leitores. O futuro vai mostrar a correção da decisão tomada em uma fria quarta-feira de junho.

USP: TV reproduz versões e se exime de apurar

A cobertura televisiva da mobilização na USP – em especial, do ataque da Polícia Militar a estudantes, funcionários e professores ocorrido na terça-feira (9) – é exemplo de uma prática jornalística que se resume à reprodução de "aspas", em que os jornalistas abdicam de apurar e ser testemunhas mesmo havendo estado lá.

Essa tendência não é exclusiva da mídia eletrônica. Verifica-se um fenômeno semelhante na imprensa. Porém, na televisão, em que as imagens cumprem um papel central, a ausência de apuração causa uma espécie de curto-circuito: os apresentadores e repórteres não são capazes de dar conta das cenas transmitidas em seus próprios programas. Satisfazem-se em veicular "versões" (muitas vezes de um só dos "lados"), mesmo quando essas são desmentidas pelo que se vê.

Abdicando de informar

Em depoimento ao SPTV 2ª edição (9/6), da Rede Globo (ver aqui ), o comandante da operação da PM, Cláudio Longo, afirma: "Existe uma ordem pra prender alguns lideres que estão incitando essa greve".

A frase chama a atenção por dois motivos. Por um lado, indica que a ação da PM foi premeditada. Por outro, revela que não se visava garantir o propalado direito de ir e vir ou o cumprimento de mandato de reintegração de posse, como sustentam, em uníssono, a reitora e o governador do estado. Tratou-se, sim, de repressão ao direito constitucional à greve. O repórter, contudo, não compartilha do assombro; Longo não é interpelado a respeito do que dissera e a declaração não recebe o devido destaque. Posteriormente, a Globo passa a aceitar outras versões da PM, em clara contradição com essa. Apurar para quê?

Nos programas veiculados nas diferentes emissoras da TV aberta, há confusão generalizada sobre o grau de adesão à greve, as datas em que cada categoria ou unidade aderiu à mobilização e, especialmente, em relação à pauta. A edição do Jornal Nacional de segunda-feira (15/6) se esforça por apresentar de modo "didático" as reivindicações, que, segundo o telejornal, "incluem até o fim do ensino à distância". Ora, ao que saibamos, a Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp) sequer começou a funcionar.

O tratamento conferido pela mídia a essa pauta específica torna evidente a abdicação do papel de informar. Os veículos afirmam, em coro, que os estudantes são contra "a criação de cursos à distância pela universidade".

Essa simplificação torna a informação incorreta. Os estudantes não são contra o ensino à distância em todas as suas manifestações, mas sim contra um projeto específico, com características específicas. O projeto que os estudantes colocam em questão, porém, foi escondido, pelas emissoras, do telespectador. O termo Univesp sequer é citado.

Tal expediente abre espaço para estigmatizar o movimento estudantil como elitista e contrário a ampliação de vagas da universidade, ao mesmo tempo em que poupa os veículos de apresentarem ao público as críticas concretas formuladas pelos estudantes ao projeto do governo do estado de São Paulo.

Ao mesmo tempo, proliferam erros pontuais: no SPTV 2ª edição, o comandante Cláudio Longo vira Cláudio Lobo; no Em cima da hora, também da Rede Globo, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas se transforma em Instituto de Filosofia e Ciências Humanas… Para evitar o enfado, nos furtamos de elencar um a um.

YouTube x televisão

Nenhum canal de televisão foi capaz de mostrar ao telespectador uma das cenas mais importantes dos acontecimentos da terça-feira (9/6): o momento exato em que teve início a repressão policial contra os estudantes. Só tiveram acesso a essas imagens aqueles que assistiram, no YouTube ou em outros espaços semelhantes na internet, aos vídeos produzidos pelos próprios estudantes.

Os cinegrafistas das emissoras de TV que estavam no local não captaram esse momento? Se esse tiver sido o caso, não era possível reproduzir as imagens independentes? Ao não fazê-lo, as emissoras deixaram de transmitir uma informação relevante a sua audiência.

As imagens mostram com clareza que o início do "confronto" foi, na verdade, uma ação unilateral da força policial. No momento em que a polícia jogou a primeira granada contra os manifestantes (como registrado aqui), não havia policiais cercados ou sob ameaça – e, muito menos, qualquer agressão dos estudantes contra eles.

Na falta de imagens, os veículos da grande imprensa abdicaram da busca pelos fatos, optando por apresentar como possíveis as diferentes versões sobre o início – ainda que algumas delas, como a apresentada por Longo, pudessem ser postas abaixo pelas imagens que a televisão deixou de exibir.

Para militantes e apoiadores do movimento grevista, a veiculação de vídeos pela internet converteu-se em valioso instrumento informativo e de disputa da opinião. Celulares, câmeras fotográficas e de vídeo foram amplamente utilizados. As imagens, que se proliferaram rapidamente, constituem um registro muito mais abrangente e diversificado que o veiculado pela televisão comercial (a não ser, é claro, pelas imagens aéreas, uma exclusividade da grande mídia).

A televisão parece perder o bonde em meio a tal efervescência. Crescem os acessos aos vídeos de imagens por vezes desfocadas, trêmulas, reveladoras. Que formalmente trazem as marcas de sua fatura: imagens feitas entre golpes. Quando a câmera repentinamente aponta para o chão é o cinegrafista-estudante a apanhar da polícia. "Ô, louco, pra que isso irmão?! Cobertura [jonalística]!"

"A verdade é que, ao que parece…, né?"

Cabe especial atenção à cobertura dada aos acontecimentos pelo programa Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes, conduzido por José Luiz Datena (disponível no site da Bandeirantes).

O apresentador reservou mais de 20 minutos de seu programa (9/6) para cobrir, ao vivo, a ação policial na USP, e contou para tanto com um helicóptero, que sobrevoava o campus Butantã, e uma equipe de reportagem no solo. O aparato permitia uma visão privilegiada da movimentação no campus, possibilitando um acompanhamento dinâmico e detalhado da situação. Ainda assim, Datena foi incapaz de transmitir aos espectadores as informações básicas sobre o ocorrido.

O que se revela é a completa dissociação entre a rua e o estúdio; o comentário do apresentador e as imagens colhidas ao vivo não se concatenam. Enquanto as imagens aéreas mostram as fileiras da Força Tática posicionadas na Cidade Universitária, em um longo e repetitivo monólogo Datena vaza suas opiniões pessoais, alternando momentos exaltados ("o pau vai comer", "vai ter porrada" etc.), com aconselhamentos conciliatórios, em tom paternalista, aos estudantes.

Ao lembrar a ocupação da reitoria da USP ocorrida em 2007, Datena comenta: "Da outra vez até que o governador Serra demorou demais pra intervir". Para ele, Serra "teve até paciência extrema", foi "condescendente demais". Com a linguagem que lhe é peculiar, Datena afirma que, violado o direito de ir e vir, os "princípios democráticos são arranhados" e "o couro come".

A falação é interrompida apenas quando novas imagens surgem na tela, captadas pela equipe no solo. Um homem caído. Por quê? Datena especula: teria ele desmaiado, nervoso com o clima de tensão? Em uma passagem símbolo da extrema dissociação entre os fatos e o comentário, vemos uma mulher que, ao lado do homem caído, gesticula e grita diante da câmera. Uma imagem muda. Em lugar de suas palavras, que poderiam trazer elementos sobre as circunstâncias nas quais o homem passou mal, ouvimos o falar de Datena, que segue aventando hipóteses.

Ora, o homem era uma vítima visível de spray de pimenta. Contudo, até esse momento, Datena não se dera conta de que a ação da polícia já acontecera. A cobertura tivera início quanto o "confronto" já estava em sua fase final, isso é, quando estudantes e funcionários estavam refugiados no prédio da História e Geografia, depois de terem sido perseguidos pela polícia por mais de 1 quilômetro.

"Parece que a PM até agora não agiu", diz Datena. Ele fala em "desobstruir ruas", quando o que se vê é um grande vazio. Por mais surreal que possa parecer, Datena – apresentador de um telejornal, ou seja, aquele na posição de informar – simplesmente desconhece o que acabara de ocorrer.

Quando, em seguida, surge a imagem de um estudante com a perna ferida por uma bala de borracha, Datena se dá conta, no ar, de que a polícia já agira. Aos 8 minutos de reportagem, conclui: "A verdade é que, ao que parece, o local já foi desobstruído, né?". A altura da coluna de fumaça focalizada na sequência apenas reafirma o atraso da cobertura.

Uma vez constatado que a operação já ocorrera, vão ao ar imagens frias, de horas antes, que Datena identifica como "o momento em que o pau quebrou". As imagens, contudo, se referem ao início do ato pacífico diante do portão da USP, que ocorrera mais de uma hora antes do "confronto". Em meio a esses tropeços, amplo espaço para a versão da PM, uma ode ao "Estado de direito" e o encampar irrestrito da tese de que a polícia só agiu porque foi provocada com pedras.

Bruno Mandelli e Daniela Alarcon são jornalistas formados pela ECA-USP.

Direitos humanos: a pauta sempre neglicenciada

No último fim de semana passado estive em Vitória (ES) participando do II Seminário de Educação em Direitos Humanos promovido pela Prefeitura de Vitória. Evento bem organizado, participantes motivados. Coube-me o tema "Mídia e Direitos Humanos", que foi apresentado na abertura do seminário – primeiro dia, primeiro tema, primeira apresentação, primeiro debate. E também primeira preocupação: não participaram profissionais do ramo como jornalistas, radialistas e gente ligada à televisão. Daí já comecei a pensar como o tema direitos humanos é relegado ao ostracismo quando da feitura das pautas.

Evento dessa amplitude em um mundo turvado por violações dos direitos humanos a torto e a direito, à esquerda e à direita, um mundo que conviveu com os campos de extermínio em Auschwitz, Treblinka e Sobibor, sob o império dos nazistas na Segunda Guerra Mundial, e também mais recentemente com os horrores da prisão de Abu Ghraib, em Bagdá, não poderia passar batido ao menos na mídia local. Mas passou. E continuará passando. É como se existisse um pacto solene dos meios de comunicação para ignorar a temática enfeixada sob o título direitos humanos.

Espaço precário

Algumas ideias preconcebidas (poderíamos chamar preconceitos) tomaram consistência ao longo dos anos e continuam vigindo nos anos recentes em que o Brasil reconquistou o estado de Direito e a democracia. Uma dessas é especialmente perniciosa: direitos humanos é o mesmo que "direitos dos bandidos". Ora, essa leitura torcida da realidade somente se explica pelos vinte anos em que o Brasil mergulhou nas trevas do arbítrio, na ditadura militar iniciada com o golpe de 1964.

Naqueles anos, quem ousasse clamar por liberdade, justiça e seus derivativos reunia os predicados para engrossar a população carcerária. Os cidadãos e cidadãs presos eram sumariamente rotulados como bandidos. E não importava se o preso era o professor de filosofia da USP ou da Unicamp, bandido era. Milhares de universitários tinha o relógio de suas vidas parado. Parte ingressava nos presídios, boa parte passava para a clandestinidade. Mundos paralelos existem quando países são (des)governados por ditadores.

Vasta documentação iniciando com o projeto "Brasil – Tortura Nunca Mais" dão conta desse período, época em que para os governantes de plantão falar em direitos humanos era apenas falar em direitos dos bandidos. Alguns filmes retratram à perfeição os anos 1964-1984: O que é isso, companheiro?, Pra frente Brasil, Lamarca, Angel, Batismo de Sangue. Advogados talentosos sobressaíram: Heleno Fragoso, Raymundo Faoro, Evaristo de Morais Filho, Helio Bicudo, Gilson Nogueira, Marcio Thomaz Bastos, Herilda Balduíno representaram dezenas de presos políticos, os bandidos daqueles anos de chumbo.

O fato é que a pecha ficou. E continua em nossos dias. Direitos humanos, direitos dos bandidos. Mantendo a tradição de lutar pela liberdade de opinião quando os principais luminares do pensamento dito de esquerda se encontravam encarcerados, é fato que ainda hoje muitos defensores dos direitos humanos fazem a ronda regular nos presídios para denunciar a prática da tortura contra aqueles sob a proteção do Estado. E assim, uma vez mais, a sociedade deixou de distinguir o trabalho em favor da promoção dos direitos humanos como sendo o trabalho em favor dos criminosos que superlotam nossas penitenciárias.

Fazer tal confusão não é uma raridade, se até bem há pouco acompanhávamos neste Observatório da Imprensa a discussão jurídica – e não apenas de semântica – suscitada pela Folha de S.Paulo quando aludiu à ditadura brasileira como sendo uma "ditabranda", se comparada com a ferocidade de outras ditaduras ao largo e ao longo da América do Sul. Um dos muitos crimes gerados pelo estado de exceção foi o de confinar a visão dos direitos humanos ao pequenino espaço em que estão as pessoas apenadas resultante dos processos legais contra estas instaurados.

Minuto a minuto

A mídia também ignora os direitos humanos em outras instâncias. Quando, por exemplo, organizações da sociedade civil promovem discussão sobre políticas públicas para elevar a dignidade humana, contra o trabalho infantil, contra o trabalho escravo, contra a exploração sexual de crianças e adolescentes, contra a violência doméstica, contra a violência policial e em especial se as vítimas são moradores de rua ou meninas e meninos de rua.

Chama a atenção observar o enfoque dado por parte da mídia nacional em seu esforço para criminalizar movimentos sociais com o dos trabalhadores rurais sem terra. A mídia mostra todo o seu corporativismo ao ser seletiva na expressão de indignação contra a violação dos direitos humanos de celebridades como a atriz Daniela Perez (dezembro/1992), o jornalista Tim Lopes (junho/2002), o apresentador de televisão Luciano Huck (outubro/2007), a atriz Suzana Vieira (dezembro/2008), apenas para mencionar alguns.

Esta seletividade obedece a critérios como raridade, ineditismo e infelizmente na maioria dos exemplos mencionados as pessoas tiveram o relógio de sua vida parado com requintes de crueldade. A honrosa exceção está para Luciano Huck, que foi capa da revista Época e ocupou espaço privilegiado na Folha de S.Paulo para desaguar seu desabafo com o roubo de seu relógio Rolex.

Não precisaríamos pesquisar muito para ver que nas datas citadas ocorreram lamentavelmente inúmeras tragédias, chacinas com grande número de vítimas e, também infelizmente, com "a marca da maldade". Agora mesmo estou empenhado em um projeto que visa analisar o espaço que a mídia brasileira concede ao tema direitos humanos e, pelo que já vi, trata-se de espaço diminuto se comparado com as pautas sobre estilo de vida, show-business, novas tecnologias e… futilidades.

A alternativa a este cardápio vem a ser a cobertura minuto a minuto das grandes tragédias humanas: tsunamis, terremotos, quedas de avião. Nesses casos, o vilão é invariavelmente alguma força da natureza. Quando o vilão é o próprio homem, o tema passa batido nas redações.

Washington Araújo é mestre em comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo.