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Intervozes lança pesquisa sobre cobertura jornalística das manifestações de junho

Na última quinta-feira, 16 de abril, o bloco dos cursos de Jornalismo e Relações Públicas da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) recebeu o lançamento da pesquisa Vozes Silenciadas Mídia e protestos: a cobertura das manifestações de junho de 2013 nos jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e O Globo. O idealizador da pesquisa, professor doutor Sivaldo Pereira da Silva, concedeu entrevista para a Assessoria de Comunicação – Jornalismo e Relações Públicas detalhando o processo desse estudo que conta com o auxilio de alguns estudantes de Jornalismo e do coletivo Intervozes, organização responsável pela publicação da pesquisa e que trabalha pela efetivação do direito humano à comunicação no Brasil.

Ascom – Jornalismo e Relações Públicas: Como surgiu a ideia de analisar a cobertura dos protestos ocorridos em 2013 e transforma-las em pesquisa?

S.P. – Eu tenho realizado estudos comparativos há algum tempo e também estudos sobre comunicação e política. O Intervozes, organização civil que atua no campo da democratização da comunicação e que publicou o trabalho, também tem desenvolvido estudos em parcerias com pesquisadores neste campo. Assim, a ideia de analisarmos protestos surge justamente porque se trata de um evento importante da história recente do país e queríamos compreender como os meios de comunicação, especialmente o jornalismo, fizeram a cobertura deste evento.

Como se deu a formação da equipe de pesquisa e o processo de apuração?

S.P. – Como se tratava de um grande volume de material, com mais de mil notícias, onde cada texto era analisado e seus dados colocados em uma planilha eletrônica, então precisávamos fazer double checking, isto é, confirmar o mesmo dado duas vezes, por duas pessoas diferentes. Para viabilizar isso, o Intervozes disponibilizou algumas bolsas para estudantes auxiliarem neste processo e assim pudemos contar com a participação de sete estudantes: Ariane Sapucaia, Beatriz Alexandrino, Eduardo Jorge, Filipe Rodrigues, Larissa Vasconcelos, Márcio Anastácio e Uiliana Lima. A maioria fazia parte do Coscentro, projeto de extensão que coordeno ou do GpoliTICs, grupo de pesquisa que também coordeno. Alguns bolsistas participaram no início da coleta, outros mais no final. Quanto ao processo de apuração dos dados, os pesquisadores recebiam informações e treinamento básico para entender as categorias da planilha e como operar a planilha eletrônica. Faziam aplicações testes para verificar se estavam aptos para continuar. E a partir daí, aplicava a planilha em cada matéria respondendo questões qualitativas e quantitativas solicitadas. Ao final do processo de coleta eu reuni as informações de todas as matérias e fiz a tabulação e análise, isto é, cruzamento de dados, identificação de padrões, produção de gráficos e texto com os resultados finais do estudo. Foi um trabalho que durou cerca de 6 meses sendo bastante árduo pelo volume de informações que trabalhamos.

A pesquisa possui um olhar objetivo apenas em função da análise ou toma forma critica a respeito do modo como as coberturas jornalísticas foram feitas na época?

S.P. – A metodologia foi desenvolvida para tentar analisar indicadores que pudessem esclarecer elementos importantes nas matérias, principalmente questões de cunho normativo e qualitativo. Por exemplo, como os manifestantes eram qualificados; se as matérias ouviam os dois lados quando traziam acusações; quem eram as fontes mais ouvidas; quem as matérias apontavam como causador de atos violentos nos protestos… Enfim, uma série de indicadores como esses. Por isso, buscamos fazer uma análise objetiva baseando-nos em números e qualificações objetivas. Justamente pelo fato do jornalismo ter um importante papel na construção da vida social, esses problemas têm impacto político e por isso a pesquisa nos permite tecer algumas críticas neste sentido. Portanto, podemos dizer que é um estudo crítico baseado nos resultados de uma análise objetiva.

Quais foram os resultados obtidos pela pesquisa?

S.P. – Os resultados demonstram uma série de problemas na cobertura dos jornais que envolvem qualidade da apuração jornalística; não cumprimento de princípios normativos e éticos. Por exemplo, cerca de 40% das matérias só ouvem uma fonte, sendo as autoridades governamentais e policiamento as únicas fontes mais ouvidas. Cerca de 77% das matérias trazem acusações, mas não ouvem os dois lados da questão, sendo os manifestantes aqueles que mais são acusados sem serem ouvidos. No geral, em 69% do total das matérias, os manifestantes não são ouvidos. Os números apontam que há um padrão na cobertura dos três jornais analisados: não se trata de casos isolados. Um cenário que implica não apenas na qualidade do texto noticioso, mas tem repercussões na vida real, pois demonstra que há pouca pluralidade de vozes na cobertura e um viés institucionalista no jornalismo brasileiro. Os resultados completos do estudo foram publicados em formato impresso e também em formato digital. Quem tiver interesse, pode baixar gratuitamente em PDF no site do Intervozes.

Link: http://goo.gl/ekiMbG

Entrevista concedida a Diogo Maia, publicada no portal da Universidade Federal de Alagoas – www.ufal.edu.br

Qual é a contribuição da mídia para o debate da redução da maioridade penal?

*Por Natasha Cruz

O debate em torno da redução da maioridade penal voltou à agenda pública nos últimos dias, quando a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados desengavetou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos.

Na pauta da CCJ desde o dia 17 de março, a PEC 171/93 ainda não foi votada. De lá para cá, o debate ganhou destaque na cobertura midiática. De blogueiros à grandes redes nacionais de televisão abordam o tema. Nada mais natural. Mas, qual a real contribuição da mídia para o debate da redução da maioridade penal?

Antes de entrar no assunto, é preciso ter em mente que a atual composição do Congresso Nacional é considerada a mais conservadora desde a redemocratização. A bancada da bala, com seus 55 deputados, nunca antes esteve tão consolidada. De acordo com levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), o número de parlamentares policiais ou próximos desse segmento, como apresentadores de programas de cunho policialesco, cresceu de forma alarmante. Nas pautas defendidas, a revisão do Estatuto do Desarmamento, o recrudescimento penal e a redução da maioridade.

A grande (des)contribuição midiática

“E você? [repórter] Não tenho o que falar não. Não fui eu, não. [jovem acusado e facilmente identificável pela reportagem] Garoto que chega a mandar até alô (…) porque nega qualquer envolvimento, mas o fato é que tratam-se de dois adolescentes, segundo a polícia, de alta periculosidade. Pessoas que apresentam sim risco para a comunidade, que estavam à solta. Infelizmente, por serem menores, o período em que eles vão passar (privados de liberdade) é muito curto. [repórter]”

– Programa Cidade 190 (de Fortaleza, CE), da emissora TV Cidade.

“Ele tem apenas dezessete anos. De aparência franzina, é considerado pela polícia como um adolescente infrator dos mais perigosos do bairro do Guamá, periferia de Belém. Conhecido com Joãozinho é acusado de aterrorizar a população da área e pratica em média quatro assaltos por dia, para ele o tipo de arma usada é o que menos importa. [repórter]

– Programa Barra Pesada, do Diário Online, da emissora RBA.

Os recortes transcritos acima nos dão um claro panorama de como a mídia historicamente aborda notícias relacionadas a adolescentes acusados da autoria de atos infracionais. Nos programas policialescos (ambos os casos citados acima), a abordagem é conhecida e as violações também: discurso de ódio, criminalização da pobreza, exposição indevida e identificação de adolescentes em conflito com a lei, ridicularizarão de vítimas e acusados, julgamento antecipado, incitação à violência.

Os programas policiais, autointitulados jornalísticos, enfatizam uma suposta “alta periculosidade juvenil” e nos bombardeiam com manchetes sobre atos infracionais praticados com alto grau de violência e atentados contra a vida, sem apresentar as reais estatísticas da violência, ou muito menos problematizá-la.

As violações de direitos nestes programas vêm gerando uma maior incidência de órgãos fiscalizadores como o Ministério Público, que ajuizou em diferentes estados Termos de Ajustamento de Conduta e Ações Civis Públicas contra as emissoras responsáveis por sua veiculação.

Mas e quando esta abordagem não é predominante apenas nos programas policias? E quando ela é prerrogativa também dos noticiários locais e nacionais das grandes emissoras de TV? Como esquecer o esdrúxulo comentário de Rachel Sheherazade no SBT Brasil?

E aos defensores dos Direitos Humanos que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: “faça um favor ao Brasil: adote um bandido!”. [âncora, Rachel Sheherazade]

– Programa SBT Brasil, emissora SBT.

A eficiência midiática em provocar uma sensação de pânico na população é incontestável! Os adolescentes são retratados como os algozes, responsáveis pela onda de violência no País. Quando e se apreendidos, são logo liberados pela “aberração que é o Estatuto da Criança e do Adolescente”, que serve apenas para “proteger os delinquentes juvenis”. “Vão para a engorda”, eles bravejam. Legitimar uma alteração na legislação vira tarefa fácil nessa conjuntura…

Mas, quando vemos a mídia debater com profundidade a conflitualidade e a violência, ou retratar ou dados sem distorções ou omissões?

O que a mídia omite sobre a redução

A maioria dos atos infracionais que levam a medidas de privação de liberdade de adolescentes não envolve crimes com alto grau de violência e atentados contra a vida. Pesquisa do Conselho Nacional de Justiça, de 2012, revela que os delitos cometidos por adolescentes são predominantemente de roubo, furto e tráfico (aproximadamente 80% do total).

Os adolescentes, na realidade, são mais vítimas do que autores de violência. O último Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), realizado em 2012 nas cidades com mais de 100 mil habitantes, estimou que mais de 42 mil adolescentes poderão ser vítimas de homicídios até 2019.

De acordo com os dados, para cada grupo de mil pessoas com 12 anos completos em 2012, 3,32 correm o risco de serem assassinadas antes de atingirem os 19 anos de idade, taxa que representa um aumento de 17% em relação a 2011. A IHA mostrou ainda que adolescentes negros ou pardos possuem aproximadamente três vezes mais probabilidade de serem assassinados do que adolescentes brancos. De acordo com os dados das pesquisas: “Mapa da Violência 2012 e de 2013” em 2011, a vitimização dos jovens negros também aumentou substancialmente, de 71,7%, em 2002, para 154%, em 2010.

O Brasil já possui a quarta maior população carcerária do mundo e o investimento de nossas políticas públicas segue na linha de mais recrudescimento. O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sianse) é absolutamente violador de direitos básicos fundamentais. Exemplo disso é uma recente denúncia formulada pela Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced), Fórum Permanente das ONGs de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes do Ceará (Fórum DCA) e Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca), denunciando o Estado Brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos por graves violações nas Unidades Socioeducativas do Ceará. Relatos de torturas sistemáticas no interior das Unidades Socioeducativas, superlotação em todas as Unidades, denúncia de estupro cometido por agente público e até episódios de dopagem coletiva.

Finalmente, não há atualmente qualquer estudo que comprove que o recrudescimento de sanções aplicadas a adolescentes diminuiria os índices de violência no Brasil ou mesmo geraria uma maior sensação de segurança para a população. O que está em risco com a aprovação da PEC 171/93 é um imensurável retrocesso para a sociedade brasileira, que sequer chegou a conseguir implementar integralmente o ECA e a lei 12.594/2012 (que institui o Sinase).

Para engrossar o caldo: interesses em jogo

Vale lembrar que vários dos programas policiais que se arvoram na defesa do rebaixamento da idade penal são comandas por parlamentares que integram a bancada da bala. Mais uns tantos deputados e senadores são concessionários do serviço público de rádio e TV, muito embora o artigo 54 da Constituição Federal proíba isso. São muitos interesses em jogo. Basta ver o ataque à qualquer tentativa de debater a necessidade de avançarmos na regulamentação da comunicação no Brasil, à exemplo do que já fizeram tantos outros países.

Quem acompanhou as sessões da CCJ que tiveram como pauta a PEC 171/93 deve ter percebido como o debate sobre a redução da maioridade em si foi escanteado. Não bastasse a superficialidade e as distorções midiáticas, os parlamentares não chegaram a fazer um debate aprofundado sobre o tema. Nada perto disso. A coisa toda acabou virando uma grande queda de braço entre oposição X situação. O acirramento da polarização em curso no País pode chegar a uma concretude em breve: um gigantesco e imensurável retrocesso para os direitos humanos dos adolescentes.

*Natasha Cruz é jornalista e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

O Ministério das Comunicações vai punir a Band?

Por Bia Barbosa*

Nesta quarta-feira 4, o Intervozes encaminhou mais uma denúncia de violação de direitos humanos praticada pela Rede Bandeirantes ao Departamento de Acompanhamento e Avaliação do Ministério das Comunicações. Desta vez, sobre o caso Alexandre Frota, que alimentou inúmeros debates e manifestações de repúdio na última semana nas redes sociais.

No último dia 25 de fevereiro, o programa Agora É Tarde, apresentado pelo comediante Rafinha Bastos e veiculado todas as noites pela Band, reprisou uma entrevista com Frota, datada de 22 de maio de 2014, na qual o ator revela – em tom de gozação e deboche – que teria praticado sexo com uma mãe de santo contra a sua vontade, ou seja, que a teria estuprado. A vítima teria desmaiado durante o crime.

Na entrevista, Frota narra os detalhes do crime entre encenações e gargalhadas do apresentador do talk show e da plateia. O fato, que teria acontecido já há alguns anos, foi descrito da seguinte maneira:

Fui pro terreiro da mulher. (…) A mãe de santo chegou pra mim e falou: “você está carregado, não tem luz própria, eu vou ter que fazer uma limpeza em você”. Aí ela virou, malandro. Eu fiquei olhando e falei: “meu irmão, essa mãe de santo tem um jogo, dá pra pegar, dá pra comer, morô?” (…)

Aí falei pra ela: “eu não acredito nessas paradas que você faz, mas queria te dar um pega. E aí, tem jogo?”. Ela não falou nada. Aí eu virei e botei a mãe de santo de quatro (…) levantei a saia dela e agarrei pela nuca. Botei o boneco pra fora e comecei a sapecar a mãe de santo. Aí estou pegando a mãe de santo e minhas amigas bateram na porta.

Fui mandando, fui mandando, e as mulheres batendo na porta. Brother, eu tava a fim de gozar, e aí eu fiz tanta pressão na nuca da mulher que ela dormiu, ela apagou, igual no ultimate, finalizei. Aí parei e falei: “levanta aí, ô mãe! Ô, filha da… , levanta aí!”. E ela apagou. Aí eu fui lá, abri a porta, as amigas entraram e perguntaram dela. Eu falei: “num sei, ela ficou aí nessa posição já há algum tempo, e não fala nada. Acho que ela teve um troço. Recebeu… está apagada”. Elas perguntaram: “como ela apagou?”. E eu: “eu juro que não sei”.”

O episódio terminou com o apresentador Rafinha Bastos pedindo “uma salva de palmas para essa história maravilhosa”. Assim como o apresentador do programa, a plateia reagiu com risadas e aplausos.

A reprise foi ao ar em fevereiro numa série com os “melhores momentos” do Agora É Tarde, preparatória à nova temporada do programa, que estreou nesta terça, dia 3. A íntegra do programa também está disponível no Youtube, onde já foi assistida por mais de 368 mil pessoas –assista ao final deste texto.

Na representação ao Ministério das Comunicações, o Intervozes destaca uma extensa relação de normas em vigor para a radiodifusão e demais leis do ordenamento jurídico brasileiro e pede a responsabilização da Band pelo ocorrido.

Entre elas, o Código Brasileiro de Telecomunicações (lei nº 4.117/62) que diz que constitui abuso no exercício de liberdade da radiodifusão o emprego dos meios de comunicação para a prática de crime ou contravenção previstos na legislação em vigor no País, inclusive a incitação à desobediência às leis. Também o Decreto Presidencial 52.795/63, que proíbe as concessionárias de “transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico”.

Já a Constituição Federal veda a veiculação de conteúdos que violem os direitos humanos e façam apologia à violência. Seu Art. 221 afirma que a programação das emissoras deve privilegiar “as finalidades educativas, culturais, informativas e artísticas”, assim como “os valores éticos e sociais da pessoa e da família”.

O documento enviado pelo Intervozes ao ministério lembra ainda a lei 7.716/89, que determina pena de reclusão de um a três anos e multa para quem “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Em 2010, o Estatuto da Igualdade Racial definiu que “o poder público adotará as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores, especialmente com o objetivo de coibir a utilização dos meios de comunicação social para a difusão de proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas”.

Diversos tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil também trazem elementos que permitem condenar tal tipo de conteúdo veiculado pela Rede Bandeirantes. A Convenção Internacional pela Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (2001) insta os Estados a incentivarem os meios de comunicação para evitarem os estereótipos baseados em racismo, discriminação racial, xenofobia e a intolerância correlata. E a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (1994) afirma que os Estados-partes concordam em “estimular os meios de comunicação a elaborar diretrizes adequadas de difusão que contribuam para a erradicação da violência contra a mulher em todas as suas formas e a realçar o respeito à dignidade da mulher”.

Reconhecendo o impacto dos meios de comunicação de massa no combate ou perpetuação da violência contra a mulher, a própria Lei Maria da Penha faz menção à importância de se coibir papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar nos meios de comunicação de massa.

Reincidência

O episódio em questão não é violento apenas para a mulher vitimada diretamente na história, mas para todas as mulheres. E não há dúvidas sobre o impacto que conteúdos como este podem ter na naturalização, legitimação e perpetuação da violência contra a mulher em nosso país. Veiculado desde junho de 2011, o Agora É Tarde alcançou, em 2012, segundo o Ibope, a segunda maior audiência da Rede Bandeirantes. O formato do programa, portanto, tem se mostrado lucrativo para a emissora.

Vale lembrar também que não é a primeira vez que o apresentador Rafinha Bastos brinca com a violência contra as mulheres na grade da Band. Em 2011, ao comentar a gravidez da cantora Wanessa Camargo, durante edição do CQC, ele disse que “comeria ela e o bebê” ao mesmo tempo. Bastos também foi chamado a depor sobre a declaração feita em sua peça de teatro de que mulher feia devia ver o estupro como “oportunidade” e não “crime”.

Questionados sobre o ocorrido, Rafinha uma vez mais argumentou que tudo não passa de piada. Já Alexandre Frota, declarou ao Portal IG que “a mãe de santo é fictícia, por isso não menciono nome porque não existe. A história fez parte do meu stand up, no ano passado. É uma história contada em forma de piada, com humor”. “Não vou me desculpar de nada porque nada fiz de errado. Temos liberdade de criar e roteirizar, e é isso. Repeito as mulheres, sou muito bem casado e essa onda é falta do que fazer”, acrescentou.

É impressionante que, num país onde uma mulher é estuprada a cada 12 segundos, seja considerado possível rir de narrativas como esta. Mais impressionante ainda que uma concessionária de serviço público continue autorizada a levar ao ar cenas lamentáveis e criminosas como esta. Neste caso, a Band não apenas veiculou o programa como o retransmitiu em busca de maior audiência, praticando, com isso, uma dupla violência contra os direitos das mulheres.

Em 2013, a mesma Band foi multada em mais de R$ 12 mil por exibir na programação de sua retransmissora na Bahia e também em cadeia nacional uma “entrevista” com um jovem suspeito de estupro. O caso, que também ganhou repercussão nacional, consistiu na humilhação de um suspeito pela repórter Mirella Cunha. Durante a “entrevista”, realizada no programa Brasil Urgente, o rapaz, detido em uma delegacia, negou a acusação que lhe era feita pela repórter e argumentou que um exame pericial poderia inocentá-lo. Não soube, porém, precisar o nome do procedimento, o que bastou para que a repórter zombasse do detido, ridicularizando-o num claro exemplo de linchamento público via TV. A ampla repercussão do episódio levou o Ministério das Comunicações a multar a TV Bandeirantes, que recorreu da sanção aplicada. Por conta dessa estratégia da empresa, o processo administrativo até hoje não é público.

Agora, a Band volta a violar direitos humanos em busca de aumentar sua audiência. Em função da reincidência e com base na legislação em vigor, o Intervozes pediu a aplicação da pena de suspensão do Agora É Tarde pelo ministério. Esperamos que, desta vez, a punição aplicada pelo órgão seja efetiva a ponto de impedir que violências como esta continuem sendo praticadas – em nome do lucro e a despeito de suas brutais consequências – por uma concessionária do serviço público de radiodifusão.

*Bia Barbosa é jornalista, especialista em Direitos Humanos, mestra em Políticas Públicas e integrante da coordenação do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

No carnaval, mídia promove violência contra as mulheres

*Por Mabel Dias

Em pleno carnaval, onde se registra um aumento nos casos de violência, a cerveja Skol resolveu lançar uma campanha publicitária que trata as mulheres – mais uma vez – sem opinião própria e à mercê dos homens. A campanha trazia frases como “Esqueci o não em casa”, “Topo antes de saber a pergunta”, entre outras, espalhadas em outdoors na cidade de São Paulo.

As frases chamaram a atenção da publicitária Pri Ferrari e da jornalista Mila Alves, que, com um olhar crítico e atento, observaram o incentivo à perda de controle, em um período onde já se registra um alto índice de estupros. Elas decidiram então fazer intervenções nos materiais, acrescentando outras palavras aos outdoors para reforçar o respeito às mulheres e o não à violência.

A reação e intervenção de grupos feministas conseguiu constranger a referida marca de cerveja, que se viu obrigada a retirar a campanha das ruas paulistas. Foi uma vitória das mulheres, ainda que o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) não tenha sequer se manifestado a respeito.

A máxima no imaginário popular e machista é que, quando uma mulher diz “não”, ela está querendo dizer “sim”. Isso é usado como justificativa para os crimes de violência, entre eles o de estupro, que acontecem com mais intensidade no carnaval.

Outra violência frequente no período são os beijos forçados nos blocos. Mesmo assim, a afiliada da Rede Globo na Bahia lançou uma enquete em um de seus telejornais perguntando se o beijo forçado deveria ser proibido ou não. Não é possível aceitar este tipo de posicionamento vindo de um veículo que forma opinião.

A enquete também chegou às redes sociais e repercutiu negativamente. A deputada federal Jandira Feghali (PC do B-RJ), por exemplo, afirmou que “este é o tipo clássico de jornalismo que só ajuda a agravar mais o machismo da sociedade e a visão da mulher como posse do homem”.

Sobre a intervenção na campanha da Skol, Pri Ferrari postou a ação em seu perfil no Facebook, que teve mais de 20 mil curtidas e quase 8.000 compartilhamentos. A iniciativa chegou até a Ambev, responsável pela fabricação da cerveja. O diretor da empresa ligou para a publicitária informando que iria montar uma força tarefa para retirar todas as peças publicitárias de circulação.

Porém, os estereótipos construídos pelas propagandas de cervejas não têm só na Skol seu exemplo. Já é incontável a quantidade de ações de grupos feministas contra o machismo nas peças publicitárias. A marca Itaipava, desde o mês de janeiro, traz explicitamente a mulher como mercadoria em sua propaganda. As cenas são as clássicas do machismo: uma mulher que pouco fala, dona de um bar, vestida com roupas minúsculas, servindo cerveja aos homens e que tem o nome de “Verão”, em uma alusão à estação do ano.

No texto “A cerveja e o assassinato do feminino”, a doutora em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), Berenice Bento, afirma que “nesses comerciais não há metáforas. A mulher não é “como se fosse a cerveja”: é a cerveja. Está ali para ser consumida silenciosamente, passivamente, sem esboçar reação, pelo homem. Tão dispensável que pode, inclusive, ser substituída por uma boneca de plástico, para o júbilo de jovens rapazes que estão ansiosos pela aventura do verão”.

Berenice Bento considera que, mesmo com a luta do movimento feminista, que pauta a violência contra as mulheres como uma das piores mazelas, a estrutura hierarquizada das relações entre os gêneros ainda é muito presente. Ela revela as múltiplas fontes que alimentam o ódio ao feminino.

As campanhas publicitárias das cervejas no Brasil retratam bem isso. E não se pode dizer que isso é natural ou uma “brincadeira”. É o retrato do machismo que mata mulheres e meninas. Retrato de uma sociedade que precisa ser transformada, e que atitudes como as de Pri Ferrari e Mila Alves, ou de iniciativas como as da Rede Mulher e Mídia, sempre atenta e combativa às violações à imagem da mulher nos meios de comunicação, precisam sem ampliadas e divulgadas.

*Mabel Dias é jornalista e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Direitos Indígenas: Territórios e Comunicação

Por Thais Brito*

A defesa do princípio de que a comunicação é um direito humano implica na luta para garantir que todos e todas tenham não apenas a liberdade de expressão, mas também o acesso aos meios de produção e veiculação de informação e às condições técnicas e materiais para se comunicar. Há, ainda, um longo caminho a percorrer para que o direito humano à comunicação seja apropriado e exercido pelo conjunto da sociedade. Uma sociedade diversa, em que os distintos grupos possuem acesso em graus diferenciados aos meios.

No caso dos povos indígenas, o genocídio e o etnocídio sofridos ao longo da história faz com que o usufruto dos direitos fundamentais seja ainda mais difícil. Sem o direito aos seus territórios, a vida dos povos indígenas fica ameaçada. Então, esse é o primeiro desafio da questão indígena – demarcar os territórios e garantir a autonomia desses povos sobre suas terras.

Nesse cenário, o direito à comunicação é também um direito essencial e colabora na luta por outros direitos. É tendo acesso aos meios de comunicação que a diversidade de povos e culturas indígenas pode se manifestar. É também por esses meios que eles podem compartilhar suas reivindicações e visões de mundo.

Com as novas tecnologias de comunicação e a ampliação do acesso às mídias, os olhares indígenas passam, também, em alguma medida, a produzir sentidos próprios na contemporaneidade. Etnojornalistas e cineastas indígenas realizam filmes, produzem conteúdos na internet, rádio e televisão, comunicando-se com outras sociedades e dando aos dispositivos a função de comunicação dentro de uma aldeia e entre aldeias. Comunicação que também contribui para a memória, ao tempo em que reafirmam o lugar central da oralidade nessas sociedades.

Há experiências com mídias indígenas em diversos lugares pelo mundo. No Canadá, a Nacional Indigenous Media Association of Canada reúne estações de rádio e televisão, companhias de telecomunicações e provedores de internet cuja propriedade e controle estão nas mãos de empresas ou indivíduos indígenas.

Na Austrália, há uma rede de comunicação indígena que inclui a Central Australian Aboriginal Media AssociationIndigenous Remote Communications AssociationAustralian Indigenous Communications Association, além da ABC Australia Indigenous Media, com conteúdo aborígene na web, e, ainda, duas televisões: a Imparja e aNITV, National Indigenous Televison canal de televisão aberto.

Na América Latina, a Coordinadora Latinoamericana de Cine y Comunicación de los Pueblos Indígenas reúne indígenas e não-indígenas numa rede de colaboração e intercâmbio em comunicação e promove capacitação, produção e difusão do cinema e do vídeo indígena.

Há países com experiências mais avançadas como a Argentina, onde a Ley de Medios, que regula a mídia no país, a qual prevê concessões de rádio e televisão para comunidades indígenas. Como consequência da lei, desde 2012 é transmitido o canal mapuche Wall Kintun TV. Já na Bolívia, a Agencia Plurinacional de Comunicación é um mecanismo de interconexão entre os meios indígenas. Ela coordena as ações e intercambio de conteúdos.

No caso do Brasil, diferente dos outros países, não há nenhuma concessão de canais de comunicação, rádio ou televisão para comunidades indígenas. Nem mesmo um programa com essa temática específica, apesar da vasta e reconhecida produção de conteúdos de autoria indígena.

A comunicação desses povos é um processo realizado, geralmente, em parceria com pessoas e organizações mediadoras, bem como com alguma colaboração do Estado, principalmente no que se refere à infraestrutura, como acesso aos serviços de internet e formação de núcleos de produção audiovisual.

Uma das experiências mais significativas no país é o Vídeo nas Aldeias, projeto precursor na área de produção audiovisual indígena que tem como objetivo apoiar as lutas desses povos para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais, por meio de recursos audiovisuais e de uma produção compartilhada.

Na apresentação do livro sobre os 25 anos do Vídeo nas Aldeias, o indigenista e idealizador do projeto, Vincent Carelli, afirma que é “sonhar alto” pensar em ter, a médio prazo, uma rede nacional de cineastas indígenas alimentando seu espaço próprio na TV pública brasileira. Carelli defende a concretização de um veículo de comunicação indígena, vindo de um aprendizado coletivo e colaborativo entre índios e não-índios.

Enquanto isso não se concretiza, a produção de comunicação pelos povos indígenas gera uma diversidade de conteúdos que não tem espaço na comunicação brasileira.

Sem ouvir a voz dos indígenas, torna-se ainda mais difícil garantir o direito ao território e tomar conhecimento de projetos como a Proposta de Emenda Constitucional 215 (PEC 215) que transfere a prerrogativa de homologar Terras Indígenas (TIs), Unidades de Conservação (UCs) e territórios quilombolas para o Poder Legislativo. Torna-se ainda mais difícil trazer à tona o fato de seis índios terem sido presos, supostamente em flagrante, após protesto contra essa proposta que, na prática, representaria a paralisação de todos os processos de criação dos territórios indígenas.

Para que isso ocorra, é preciso que a sociedade brasileira reconheça a importância da diversidade de povos que a constitui e lute para que todos eles não apenas estejam representados como tenham espaço nos meios de comunicação.

* Thais Brito é jornalista, doutoranda em Antropologia e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.