Afigura-se enorme o grau de sexismo que ronda a próxima disputa eleitoral – em que três candidaturas à Presidência da República, situadas, em gradações variadas, à esquerda do espectro político, podem vir a ser representadas por mulheres: Heloísa Helena (PSOL), Marina Silva (PV) e Dilma Rousseff (PT).
Com mais de um ano de campanha pela frente, três episódios recentes parecem justificar tais temores – sobretudo por, como veremos a seguir, não serem desferidos pelas forças mais conservadoras da sociedade, mas por comentadores culturais mais ou menos liberais.
O primeiro foi a publicação de um post por Marcelo Coelho em seu blog, intitulado "Lina Vieira, Dilma Rousseff", no qual a análise sobre o caso envolvendo as duas figuras públicas limita-se a um contraste sexista entre a "feminilidade de Lina Vieira e a dureza de Dilma". Num episódio que se tipificou, na "grande imprensa", pela inversão do princípio consagrado do Direito segundo o qual o ônus da prova cabe ao acusador, Coelho promove outra inversão: entre acusadora e acusada. Assim, acrescenta miopia política e abordagem tendenciosa a um sexismo à la anos 1950: Lina, após ter sido, segundo ele, "massacrada no Senado por Romero Jucá, líder da base governista", "tornou-se frágil, delicada, do jeito que todo homem espera de uma mulher. Triste e bonito destino".
Machismo proustiano
Não se sabe de onde o cultivado Coelho tirou essa ideia de que "todo homem" espera que uma mulher se torne "frágil e delicada" após ser "massacrada", mas começar pelo Marquês de Sade talvez seja uma boa opção.
Já contra Dilma, o crítico cultural da Folha brada as acusações de sempre: autoritarismo, "ausência de charme", falta de feminilidade – só falta chamar de marimacho. Em relação a Marina Silva, Heloísa Helena e Marta Suplicy, ele pergunta, em tom de acusação: que mulheres são essas?
Sob o pretexto de responder à pergunta-acusação, elenca preconceitos em série: Heloísa Helena, embora "pudesse ser atraente", "representa, na verdade, a mesma dureza que Dilma encarna, numa versão mais burguesa. Por que, indago, não ser simplesmente uma mulher?" É mais uma das muitas platitudes chauvinistas de um texto recheado de pérolas do tipo "o grande problema de uma mulher combativa é o de não parecer histérica" e no qual a inclusão inexplicada de Marta Suplicy – sobretudo se analisada face à exclusão de qualquer outra política da direita nacional (algumas com maior evidência do que a petista), como Yeda Crusius, Roseana Sarney, Rosinha Garotinho ou Kátia Abreu – é significativa das antipatias político-ideológicas do colunista, que ao sexismo vêm se somar.
A grosseria maior de Coelho é direcionada a Marina Silva, que segundo ele não tem nenhum charme e contra a qual, como um machão de pornochanchada dos anos 1970, comete a agressão suprema de afirmar que ela "não é desejável sexualmente". Educação refinada, a do moço.
Embora Coelho tenha tido, ao menos, a decência de, com rapidez e de forma clara, sem subterfúgios, reconhecer que errou e pedir desculpas – procedimento raríssimo nas cercanias da Alameda Barão de Limeira –, fica a pergunta: que ódios tamanhos teriam levado um crítico cultural de autoproclamados laivos proustianos, da melhor estirpe uspiana, que sempre se caracterizou por análises equilibradas e detalhadas, a descer tão baixo?
Liberais chauvinistas
O segundo episódio deplorável veio à tona através de um tweet [mensagem de no máximo 140 caracteres transmitida via Twitter] enviado, na segunda-feira, 24/08, às 23:09h, pelo jornalista Jorge Pontual: "Se você receber um email intitulado `Fotos nuas de Dilma Rousseff´, não abra! Pode realmente conter fotos de Dilma Rousseff nua."
O impacto, capilarizado pelo efeito-cascata do Twitter, foi grande, para o que contribuiu o contraste entre a imagem vendida pelo correspondente da Globo em Nova York – que busca associá-lo à urbanidade e ao liberalismo – e uma piada tão infame e sexista.
Pode-se argumentar, como exercício de defesa, que Pontual provavelmente agiu por ingenuidade: achou a piada engraçada e resolveu divulgá-la, achando que o máximo que provocaria seria um ataque de risos – sem se dar conta nem da temperatura da disputa pré-eleitoral nem do conteúdo machista derrisório à imagem de qualquer mulher – quanto mais de uma candidata popular – imediatamente detectado por parte dos seguidores de Pontual na rede. Porém, por mais que a dinâmica própria do Twitter faça com que uma mensagem não se circunscreva necessariamente ao âmbito da representação "institucional’ (leia-se, "jornalista da Rede Globo") e ceda espaço à expressão do universo pessoal, uma declaração dessas atinge, a um tempo, o ser humano e o jornalista enquanto profissional – pondo em questão, ante parcela do público, tanto sua imparcialidade para lidar, de agora em diante, com tudo que se refira à candidata em questão, quanto, de forma mais ampla, seu sistema de valores enquanto mediador de sentidos (inclusive morais) para milhões de telespectadores.
A demora em se retratar e, sobretudo, a arrogância implícita não apenas em seu pedido de desculpas (que, debochando de Aloízio Mercadante, afirma que "trata-se de decisão irrevogável" não mais divulgar mensagens do tipo), mas nos tweets seguintes – orbitando em torno das temáticas da sexualidade e da repressão – angariou mais reações contrárias.
Como apontou a blogueira Marjorie Rodrigues, não passaria pela cabeça de ninguém ridicularizar publicamente a masculinidade de José Serra (e nem de Lula, acrescentaria eu para "despartidarizar" a questão). Para além do fato de a masculinidade dos candidatos estar a salvo dos questionamentos da imprensa – o que, como se sabe, não ocorre com as mulheres que se candidatam –, talvez seja prudente enfatizar que o machismo socialmente arraigado no Brasil vai bem mais longe.
A masculinidade dos principais políticos, se heterossexuais, tende a só ser tematizada se sob viés positivo (já em se tratando de homossexuais, o machismo tende a dar lugar à homofobia). Isso fica evidente, por exemplo, na recorrente abordagem do comportamento de Aécio Neves, sobre quem há toda uma boataria quanto ao seu currículo sexual ("As loiras do Aécio", como se lê jocosamente nas colunas sociais), expressiva dessa forma particularmente curiosa de machismo que é o orgulho pela conquista alheia. É precisamente essa assimetria no tratamento da questão de gêneros que a aparentemente ingênua piada sobre Dilma "twitada" por Jorge Pontual a um tempo oculta e repisa.
O machismo feminino
O terceiro e último fato sexista da semana foi a inacreditável coluna em forma de blog de Ruth de Aquino em Época, intitulada "Abaixa esses dedos em riste, Dilma". O tom imperativo do título é um indicativo da truculência verbal que está por vir – truculência esta que Aquino acusa em Dilma Rousseff, como parte dos esforços para "colar", pela enésima vez, o rótulo de autoritária na pré-candidata do PT. Dessa vez, até um expert é chamado para dar bases pseudocientíficas à operação.
A coluna é de uma baixeza e de um ódio figadal que a tentativa de afetar imparcialidade soa não apenas canhestra, mas parece evidenciar ainda mais a má-fé. A colunista distorce os dados relativos às pesquisas de intenção de votos em Dilma, pintando, a partir dessa leitura distorcida, um quadro político-eleitoral inverossímil, baseado sempre no "ouvi-dizer", sem citar uma única fonte passível de checagem; acusa, por vias transversas, Dilma de mentirosa por, entre outras coisas, ela ter negado o encontro com Lina (como se esta tivesse produzido uma prova sequer de que ele de fato ocorrera); e, por fim, apresenta até "informações" equivocadas (como a de que a ministra não teria concluído o mestrado, quando na verdade o fez; o que ela não concluiu foi o doutorado).
Mas o pior é a crítica sexista que domina o artigo, perpetuada através do contraste da figura de Dilma com uma imagem idealizada do feminino como docilidade e "bons modos" – como se estivéssemos em plena Inglaterra vitoriana. Para tanto, Aquino utiliza-se de uma série de fotos que captam flagrantes ocasionais de Dilma apresentando-se em público, sem apresentar a mínima contextualização e imbuindo-as de uma significação predefinida de um modo tão tosco que uma criança que nunca ouviu falar em análise do discurso desconstruiria tal leitura em poucos segundos. Assim, para tentar reforçar a pífia argumentação, a colunista chama um "psicanalista", Francisco Daudt.
Daudt é aquele mesmo que, no dia posterior ao acidente com o avião da TAM em Congonhas, declarou à Folha de S.Paulo que "gostaria imensamente de ter minha dor amenizada por uma manchete que estampasse, em letras garrafais, `Governo assassina mais de 200´". Ou seja, demonstra não ter nem equilíbrio emocional nem isenção política para opinar no caso (o que as investigações sobre o acidente comprovaram, desmentindo-o). Trata-se de mais um desses pseudo-experts sempre à disposição da mídia para referendar seus ataques de baixo nível.
Trechos da entrevista falam por si:
** "Dilma fez plástica porque a cara que ela tinha antes da plástica era assustadora, era a cara de uma pessoa agressiva, autoritária, impositiva, de dar medo" – alguma coisa dr. Daudt e Danuza Leão têm em comum, como se vê.
** Pergunta: "O que representa esse dedo erguido, a mão crispada?" Resposta: "Há vários tipos de dedo em riste (…) O dedo cujas costas da mão estão viradas para o interlocutor, enquanto os outros estão fechados, é um gesto stalinista, reflete o desejo de impor uma opinião (…) O dedo erguido é quase um lembrete: olhe, a anágua está aparecendo."
Armadilhas de gênero
Como essa "taxonomia do dedo" de ares lombrosianos, exata em sua cientificidade e fina em sua expressão, demonstra com brilho, o artigo de Aquino é um engodo. Serve, porém, como um alerta para as armadilhas das questões de gênero, com o ataque sexista mais pesado à Dilma vindo da lavra de outra mulher, uma semana após a coluna extremamente agressiva escrita por Danuza Leão.
A leitura do texto da colunista da Época, contrastada à relativamente alta audiência do blog, choca como retrato da dieta "cultural" a que é submetida uma legião de leitores – e, no caso de Aquino, de leitoras, sobretudo –, inocentes do produto de baixo nível que lhes é oferecido e, não poucos, como se lê nos comentários abaixo do texto da colunista, crentes que aquilo é bom jornalismo.
Por fim, convém lembrar que Aquino, responsável por um texto ética e jornalisticamente tão abaixo do nível mínimo que se espera de um produto associado a uma grande revista semanal, é nada menos do que a diretora da revista Época no Rio. Numa triste ironia, trata-se de uma mulher que se alçou a uma alta posição ocupada majoritariamente por homens – realizando, assim, um dos objetivos básicos do feminismo de resultados –, mas que se utiliza de sua posição para desferir ataques sexistas e infundados à candidata presidencial com mais chances, na história do Brasil, de ser a primeira mulher a assumir a presidência.
* Maurício Caleiro é jornalista, cineasta e doutorando em Comunicação pela UFF.