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Internautas denunciam personagem racista do programa ‘Pânico na Band’

Exibido na TV aberta todas as noites de domingo, o programa “Pânico na Band” vem fazendo, nas últimas semanas, apologia ao racismo com o novo personagem “Africano”. Interpretado por Eduardo Sterblitch, que é branco e se pinta de preto (black face) para representar um negro, a figura ridiculariza africanos e afrodescendentes com falas, gestos e danças consideradas extremamente preconceituosas e ofensivas.

“Repudiamos a maneira nojenta em que retratam os povos da África a fim de intensificar o mito de que tudo que vem da Africa e todo seu povo não tem educação e merece gargalhadas de escárnio”, escreveram os organizadores do evento “Repúdio ao racismo do personagem Africano no Pânico na Band” no Facebook. Na página, internautas discutem o preconceito exposto e estudam meios para processar o programa e tirar o personagem do ar.

Criado no mês passado, o “Africano” faz parte do quadro “Pânico Chef”, paródia do reallity show de culinária “Master Chef”. Quando aparece, “Africano”, de forma pejorativa, “recebe entidades” – ridicularizando religiões de matriz africana -, não se comunica de forma civilizada, se joga no chão, faz gestos de macaco e em vários momentos é colocado como um ser primitivo. “Planta e colhe”, aparece na legenda de suas “atribuições” como “cozinheiro”.

“A depreciação da imagem do africano e afro-brasileiro está intimamente ligada a um processo de dominação e opressão, a partir do simbólico e da manutenção dos privilégios de uma elite branca e racista. Outro aspecto que merece ser destacado nessa discussão é que as frequências de transmissão dos canais são públicos e as emissoras recebem concessões para explorar esses espaços com o compromisso de zelar pelos interesses públicos. Também é importante destacar que o direito a liberdade de expressão não está acima de nenhum outro direito, sobretudo os direitos humanos e o respeito a dignidade humana”, escreveu, em seu blog, Juninho Palmarino, jornalista e militante do movimento negro no Círculo Palmarino.

Além das redes sociais brasileiras, o preconceito destilado pelo programa atingiu até jornais africanos. O SeneWeb, de Senegal, por exemplo, publicou neste domingo (9), a seguinte postagem seguida de um vídeo do personagem: “O Brasil é um país racista? Vejam como eles riem dos africanos!”

Publicada em Portal Fórum

Programas policialescos: a legitimação da barbárie

Por Bia Barbosa*

 “87% dos brasileiros são a favor da redução da maioridade penal”
Datafolha, 24 de abril de 2015

“A Rocam está em cima! Atira, meu camarada! É bandido!”
Cidade Alerta, 23 de junho de 2015

“Livres para matar: Redução da maioridade penal é rejeitada por cinco votos”
Brasil Urgente, 1º de julho de 2015

“Esses são os estupradores. Dos cinco, três são menores de idade, com 14, 15 e 16 anos”
Brasil Urgente, 3 de julho de 2015

“Brasil tem um linchamento por dia, não é nada excepcional”
El País, 8 de julho de 2015

Já passou da hora de os setores efetivamente democráticos da sociedade repudiarem com seriedade aquilo que, todos os dias, invade nossa casas e nos expõe ao que há de mais bárbaro na programação da televisão brasileira: os chamados programas policialescos. Por horas a fio, ao vivo, durante o dia, assistimos a um desfile de cadáveres, agressões, suspeitos achacados em delegacias, vítimas expostas e, invariavelmente, discursos contrários aos direitos humanos e em defesa da violência policial, dos justiçamentos e, claro, da redução da maioridade penal.

Quem acha que chegamos ao índice de um linchamento por dia ou a 87% da população apoiando o encarceramento juvenil sem a legitimação dessas práticas por tais programas é porque: 1. Não assiste televisão aberta e não sabe como esse tipo de programação domina a grade das emissoras ou 2. Prefere acreditar que o conservadorismo crescente no País não passa por aquilo que se consome cotidianamente na tevê.

Pesquisa realizada pela Andi, em parceria com o Intervozes: Artigo 19 de Ministério Público Federal revelou os principais tipos de violação de direitos praticados pelos policialescos: desrespeito à presunção de inocência; incitação ao crime, à violência, à desobediência às leis ou às decisões judiciárias; exposição indevida de pessoas e famílias; discurso de ódio e preconceito; identificação de adolescentes em conflito com a lei; violação do direito ao silêncio; tortura psicológica e tratamento desumano ou degradante. Tudo de acordo com a legislação atualmente em vigor no Brasil, com os tratados e convenções internacionais ratificados pelo País – o que falar então do Código de Ética dos Jornalistas… – e com exemplos incontáveis que comprovam a sistemática dessas violações.

Ou seja, não estamos falando de episódios isolados, que geram algum tipo de comoção nacional, como quando a repórter Mirella Cunha, da TV Bandeirantes na Bahia, em 2012, humilhou um suspeito de estupro por ele desconhecer o tipo de exame a ser feito no corpo da vítima. Ou quando a TV Cidade, retransmissora da Record no Ceará, exibiu por cerca de 20 minutos cenas de uma menina sendo estuprada. Ou, ainda, quando, no mês passado, os dois líderes de audiência do gênero – Brasil Urgente, do apresentador José Luiz Datena (Bandeirantes), e Cidade Alerta, do apresentador Marcelo Rezende (Record) – transmitiram uma perseguição policial, ao vivo, que terminou com um PM atirando quatro vezes à queima-roupa em dois suspeitos. Trata-se de uma postura editorial cotidiana, que não tem limites entre canais ou redes de televisão, regiões do País ou horário na grade. Vale tudo, a qualquer momento e em qualquer lugar (mesmo com as crianças na sala), em um modelo de negócios que já se tornou para lá de lucrativo para as empresas de comunicação.

Problema antigo

No fim dos anos 1990 e início dos anos 2000, os programas policialescos eram um “formato a ser explorado”. Restritos a algumas redes de tevê e poucas capitais do Brasil, não chamavam tanta atenção, tampouco geravam o impacto de atualmente. Mesmo assim, traziam em sua origem a tônica da barbárie que carregam até hoje.

Já há mais de dez anos o Ministério Público Federal (MPF) atua para tentar frear suas violações. Em março de 2006, por exemplo, a Procuradoria da República no Distrito Federal moveu uma Ação Civil Pública contra os responsáveis pelo Barra Pesada, então exibido de segunda a sexta-feira à tarde, na TV Brasília. O objetivo era proteger os direitos dos telespectadores de cenas “explícitas e detalhadas” de violência, entre as quais, a exposição de cadáveres.

Em uma das edições do programa, em dezembro de 2005, após narrar a prisão de um assaltante em Taguatinga, na qual o acusado foi inquerido de costas, o apresentador do Barra Pesada, Geraldo Naves, bradou no estúdio:

“Tem que mostrar a cara desse canalha. Esse é um canalha. Tem que mostrar a cara dele pra mim ver. Isso é um covarde. Um viciado, maconheiro! […] Sabe o que eu gosto? Eu gosto quando a polícia pega um palhaço – palhaço não; palhaço dá alegria – um paspalho como esse, entendeu? E coloca a cara […] tem que pegar e virar a cara, pra mostrar pra população. […] esse aí é um maconheiro, entendeu? Ele anda armado, assaltando, precisa de dinheiro, é um incompetente, asno, asno, entendeu? Asno! Inconsequente! Nem bobo não é. É um asno, uma anta ambulante”.

Na ação em questão, o MPF destacou que, mesmo que a legislação brasileira, baseada na premissa da liberdade de informação jornalística, autorize a divulgação de notícias sobre ocorrências criminosas, com a emissão de opiniões a respeito dos fatos, jamais a manifestação do pensamento pode ser incondicional, a ponto de violar a dignidade humana, sobretudo com o intuito puramente sensacionalista. Segundo a procuradora Lívia Tinôco, responsável pela ação, “à medida em que ocorre a difusão da ideia de que o preso não tem nenhum direito, e que não merece qualquer respeito e de que o seu extermínio é necessário […] não ocorre tão só o ferimento nos direitos individuais indisponíveis dos cidadãos […], mas também são atingidos os valores éticos e sociais de toda uma sociedade”.

Enquanto isso, na Esplanada dos Ministérios…

O Ministério das Comunicações, responsável por regular a radiodifusão no que diz respeito ao conteúdo veiculado, alega que tem muito pouco a fazer diante de tais violações, e que o Brasil precisaria de normas específicas para punir as emissoras por esse tipo de programa.

Como já relatamos neste blog, a maior multa aplicada a um programa policialesco foi de pouco mais de 23 mil reais – justamente para a TV Cidade, de Fortaleza, que já tinha antecedentes infracionais e, por isso, recebeu um acréscimo em sua sanção. Atualmente, as multas que podem ser aplicadas pelo Ministério das Comunicações em casos como este têm como teto o valor de 89 mil reais, que está longe de ser dissuasivo para os canais.

Na próxima semana, o Intervozes entrará com representação junto ao Ministério Público Federal, solicitando que o mesmo emita recomendação ao órgão brasileiro para responsabilizar as emissoras e seus patrocinadores, assim como suspender programas que desrespeitem sistematicamente a legislação brasileira em vigor. E nós, vamos ficar só assistindo?

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Intervozes denuncia Veja ao MPF por violação de direitos

Coletivo Brasil de Comunicação Social entrou com representação junto à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo contra a Revista Veja que, na edição lançada no início desta semana, enfoca a maioridade penal e atenta contra o Estatuto da Criança e do Adolescente ao permitir a identificação dos/as adolescentes expostos na matéria de capa. Além disso, o conteúdo ignora o princípio de presunção de inocência apresentando os “envolvidos” numa situação de conflito com a lei como culpados antes mesmo de serem julgados.

Logo na capa, a revista apresenta fotos embaçadas de quadro adolescentes suspeitos de terem participado de estupro e tentativa de homicídio em Castelo do Piauí, no interior do Estado. Acompanham as fotos, as iniciais dos nomes de todos eles seguidas da frase: “Eles estupraram, torturaram, desfiguraram e mataram. Vão ficar impunes?”.

No interior da publicação, as fotos e as iniciais dos nomes dos adolescentes também são apresentadas, possibilitando a fácil identificação dos mesmos. O título sugere impunidade: “Justiça só para maiores”. A chamada da matéria antecipa o julgamento e a condenação: “Os jovens que participam do estupro coletivo no Piauí que terminou na morte de uma jovem ficarão, no máximo, três anos internados. Isso é justo?”

No entendimento do Intervozes, a revista violou direitos em pelo menos dois aspectos. Primeiro, apesar da distorção nas fotos e do uso de iniciais, há clara identificação dos adolescentes que podem estar em conflito com a lei, o que é vedado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Segundo o parágrafo único do artigo 143 da norma: “Qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco e residência”. Já o parágrafo primeiro do Artigo 247 aponta que será punido quem exibir “total ou parcialmente, fotografia de criança ou adolescente envolvido em ato infracional, ou qualquer ilustração que lhe diga respeito ou se refira a atos que lhe sejam atribuídos, de forma a permitir sua identificação, direta ou indiretamente”. O parágrafo subsequente destaca que “Se o fato for praticado por órgão de imprensa ou emissora de rádio ou televisão, além da pena prevista neste artigo, a autoridade judiciária poderá determinar a apreensão da publicação”.

Outra violação presente nas reportagens é o julgamento antecipado. Os indivíduos envolvidos no caso que ocorreu no Piauí são tratados não como suspeitos, mas como culpados, conforme apontam os trechos citados. A Constituição Federal estabelece, no Artigo 5°, que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Já a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) estabelece, ao tratar, em seu Artigo 5, do Direito à Integridade Pessoal, que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”. Ignorando tais normas e princípios do nosso ordenamento jurídico, a matéria de VEJA julga e condena, ela própria, os adolescentes.

A publicação das matérias se dá no momento em que o Congresso Nacional discute propostas de alteração da maioridade penal, especialmente a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93, que teve tramitação aprovada pela Comissão de Constituição de Justiça da Câmara em março deste ano. O relatório da Comissão Especial criada para analisar a medida possivelmente será votado nesta semana. A revista trata a norma vigente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como “um dos mais lenientes conjuntos de leis do mundo destinados a lidar com menores infratores”. A mudança no ECA é apontada como “única esperança de que se chegue a uma abordagem efetiva dessa tragédia. Enquanto isso, as Daniellys continuarão a ser estupradas, mortas a pedradas, jogadas de precipícios, sob o olhar leniente da Justiça”.

Para o Intervozes, o conteúdo veiculado pela VEJA está em desacordo com dispositivos legais adotados no Brasil, além dos padrões internacionais que buscam assegurar a efetivação de tais direitos. Nesta perspectiva, o Coletivo aciona a justiça na esperança de que a Editora Abril seja responsabilizada e que a ação seja exemplar no sentido de salvaguardar o respeito aos direitos humanos nos meios de comunicação.

Populismo penal e midiático pela redução da maioridade penal na revista Veja

*Helena Martins

No momento em que o Congresso Nacional discute propostas de alteração da maioridade penal, especialmente a proposta de emenda constitucional (PEC) 171/93, cujo relatório da Comissão Especial criada para analisar a medida possivelmente será votado nesta semana, a revista Veja usa um caso extremamente chocante – tortura e estupro de quatro adolescentes no Piauí, que inclusive culminaram com a morte de uma delas – para praticar mais uma vez o populismo midiático em defesa da redução da maioridade penal.

Ao longo das páginas do chamado “Especial Maioridade Penal”, a revista apresenta a proposta de redução como única saída possível para responder a casos como esse. Para não deixar que a memória traia os leitores, por pelo menos três vezes julga antecipadamente os quatro adolescentes acusados de, ao lado de um adulto, terem praticado aquelas violações.

“Os jovens que participam do estupro coletivo no Piauí que terminou na morte de uma jovem ficarão, no máximo, três anos internados. Isso é justo?”, diz um trecho da matéria. Em outro, ela indica a pena que o adulto poderá obter caso seja condenado. No caso dos adolescentes, nem sequer essa ponderação é feita. O tiro é direto: “Os quatro adolescentes serão encaminhados a centros de correção, onde ficarão internados por um prazo máximo de três anos e de onde sairão como réus primários”.

A prática constitui clara violação de direito, pois o julgamento não é de responsabilidade da revista e sim do Poder Judiciário, que  acompanha o caso com atenção no Piauí e em âmbito nacional. No entanto, ao longo de toda a publicação, os indivíduos envolvidos no caso que ocorreu no estado são tratados não como suspeitos, mas como culpados, inclusive com suposta fama de praticarem atos violentos, embora a fonte de tal acusação não seja citada.

E essa violação não é a única cometida. A identificação de adolescentes que podem estar em conflito com a lei é proibida pelo Estatuto da Criança do Adolescente (ECA), mesmo que total ou parcialmente – como faz a revista, que usa fotos borradas e iniciais dos nomes dos acusados.

Isso fere não só o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas também a Constituição Federal e pactos internacionais ratificados pelo Brasil, como o Pacto de São José da Costa Rica. Isto motivou a denúncia feita pelo Intervozes à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo na terça-feira 16.

No pedido, o coletivo requer que sejam tomadas as providências legais pertinentes à responsabilização da Editora Abril, que edita a revista Veja. A violação de direitos fundamentais – prática recorrente na imprensa brasileira – não pode ser naturalizada.

Aqueles e aquelas que defendem a proteção integral de crianças e adolescentes, tal qual estabelece a Constituição Federal, não podem desconsiderar ainda o alcance dessas violações. Apenas esta última edição de Veja teve 1.100.983 exemplares impressos. Neles, o que se vê é o uso de um jornalismo pautado pela espetacularização das notícias, pelo tratamento descontextualizado de dados e pesquisas, isso com o objetivo não de promover o debate sobre um tema de interesse público junto à sociedade, mas sim de impor a sua visão de mundo aos leitores.

Tanto é que, ao longo de toda a matéria, intitulada sugestivamente de “Justiça só para maiores”, não se vê uma única contraposição à tese da redução da maioridade penal como resposta ao problema da segurança que atinge o Brasil. Não há a problematização do que ainda não foi executado do ECA, o que poderia contribuir para a promoção de direitos em nosso País.

Ao contrário, o ECA é apontado pelos jornalistas que assinam a reportagem como “um dos mais lenientes conjuntos de leis do mundo destinados a lidar com menores infratores”. Segundo eles, a mudança no estatuto é a “única esperança de que se chegue a uma abordagem efetiva dessa tragédia. Enquanto isso, as Daniellys continuarão a ser estupradas, mortas a pedradas, jogadas de precipícios, sob o olhar leniente da Justiça”.

Ao praticar populismo penal, apresentando a privação de liberdade em um sistema penal falido, a revista priva a sociedade de ter acesso a uma informação plural, contextualizada e completa. Ela ignora, por exemplo, o fato de o Brasil ocupar hoje o patamar de terceiro País com a maior população carcerária – posição que galgou, sobretudo, nos últimos dez anos, quanto também vimos o crescimento da violência, o que deixa claro que a saída proposta é absolutamente equivocada.

A revista também ignora o fato de que as instituições do sistema socioeducativo, embora possuam muitos problemas, como superlotação, dificuldades para garantir acesso à saúde e educação e mesmo violência, ainda assim conseguem números de reincidência menores que os constatados no caso das pessoas que passaram por presídios. Aliás, a crítica ao sistema penal aparece, no especial da Veja, em uma matéria com tom opinativo que não dialoga com as demais.

Esse tipo de ausência tem impactos claros. O crescimento do punitivismo se expressa com o frequente aumento de penas, com novos crimes tornados hediondos, sem que ao menos haja uma problematização sobre os impactos dessa política. E, o que é absolutamente grave, sobre os grupos sociais que são os atingidos por ela.

A edição em questão é mais uma vez elucidativa desse mecanismo perverso. Ao indicar os adolescentes como praticantes de crimes bárbaros – embora em apenas um trecho da reportagem citada pondere que apenas 2,5% dos internos na Fundação Casa praticaram crimes considerados hediondos – constrói a imagem de que esses são os sujeitos perigosos que devem ser excluídos, extirpados do convívio social. Talvez por práticas como essa é que o verdadeiro extermínio de jovens negros no País cause espanto nas pesquisas, mas pouca comoção e engajamento da sociedade.

Não é o debate franco de ideias que interessa aos grupos de comunicação hegemônicos. Como mostrou a pesquisa A mídia brasileira e as regras de responsabilização dos adolescentes em conflito com a lei, elaborada pela ANDI – Comunicação e Direitos, ao valer-se de casos de grande apelo midiático, os veículos nacionais indicam a redução da idade penal como principal mudança para conflitos que envolvem aqueles sujeitos.

A pesquisa comprova ser esse um noticiário reducionista, que alimenta a sensação de que a solução para a problemática é simples, negligencia o debate sobre o sistema socioeducativo e catalisa o medo coletivo.

O que mais uma vez fica claro é que não há como lutarmos por direitos sem enfrentarmos o tema da comunicação, já que a mídia se tornou um dos principais espaços de construção de sentidos e de hegemonia na sociedade contemporânea. Se nós duvidamos disso, os grupos dominantes não perdem tempo com essa questão e se organizam para usar todo o aparato que têm para impor sua visão de mundo, mesmo que para isso tenham que infringir leis.

Urge, portanto, estranharmos o que aí está, criticarmos abertamente, exigirmos um jornalismo responsável e buscarmos outras narrativas que tenham o objetivo não de ludibriar a população, mas de realmente informá-la.

*Helena Martins é jornalista e representante do Intervozes no Conselho Nacional de Direitos Humanos.  

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Na tevê e nas ruas, gatilho contra jovens negros é disparado todo dia

Por Ana Carolina Westrup*

Neste momento em que se discute o aumento da violência e possíveis soluções para enfrentar esse cenário, uma importante publicação traz à tona informações que elucidam quem são as reais vitimas das mortes violentas e em quais circunstâncias esses fatos ocorrem.

Lançado na última quinta-feira (14), o Mapa da Violência no Brasil 2015: mortes matadas por armas de fogo traduz a cruel realidade escondida como migalha embaixo do tapete, longe das reuniões de pauta dos grandes meios de comunicação: o crescimento do número de mortes por armas de fogo na população em geral e, de forma alarmante, da juventude brasileira entre 15 a 29 anos, sobretudo quando se trata de pessoas negras.

Segundo a pesquisa, a arma de fogo mata quase cinco pessoas por hora, no Brasil. Apenas em 2012, foram 42,4 mil pessoas vítimas de homicídios, suicídios ou acidentes. Coordenado pelas Secretarias da Juventude da Presidência da República e da Igualdade Racial, em cooperação com a Unesco e com apoio da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flacso) e do Centro Brasileiro de Estudos Latino Americanos (Cebela), o mapa é desenvolvido desde 1998 com o objetivo de contribuir com dados sobre as formas de violência.

Atualizado, ela agora disponibiliza um panorama geral sobre a incidência de morte violenta nas diferentes regiões do país, com recortes de gênero, raça e faixa etária, até o ano de 2012.

O estudo aponta o crescimento de 556% no número de homicídios provocados por arma de fogo na população total, entre 1980 a 2012, sendo a juventude a maior vítima desse aumento. passando de 4,5 mil vítimas no ano de 1980 para 24.882 em 2012.

Outra situação reveladora está relacionada às taxas de mortalidade por arma de fogo, quando analisado a faixa etária entre 0 a 70 anos. O maior número de vitimização se dá, justamente, nas idades de 17, 18, 19 e 20 anos, tendo como pico os 19 anos de idade, com quase 63 mortes para 100 mil jovens, sendo 95% do sexo masculino.

Aterrorizadores, os números destacam a existência de um recorte racial claro. Enquanto as taxas de homicídios de brancos por armas de fogo caíram de 14,5 para 11,8 em 100 mil brancos no período analisado, as taxas de homicídios de negros aumentaram de 24,9 para 28,5.

O mesmo ocorre com o público feminino, em que as taxas de mulheres brancas vítimas caem 18,7% e as negras aumentam 14,1%. Também no caso das mulheres, a incidência de 95% dos casos recai sobre as jovens.

Em síntese, os números relatados no Mapa da Violência 2015 são claros no diagnóstico: a população jovem e negra é a maior vítima das mortes por armas de fogo, um cenário que não coincide com o que vemos, de forma sistemática, nos programas “policialescos” na grade de programação da TV aberta de todo o Brasil.

Basta assistirmos a cinco minutos de qualquer tipo de programa deste calibre – sem ser redundante – para termos a definição de cor, classe e faixa etária daqueles apontados como marginais e assassinos.

Não é difícil ouvir um discurso como o propagado por um programa em Fortaleza, capital do Ceará, ainda em 2011: “três bandidos armados, entre eles um pivete com um 38, mataram um policial rodoviário que ia ser pai dentro de poucos dias. O que fazer com esses bandidos? Hotel e três refeições por dia? Não precisa prender, é só cegar, principalmente o menor. Duvido que ele mate mais alguém”.

Ou mesmo o conhecido caso da repórter do Brasil Urgente, veiculado na TV Bandeirante da Bahia, em 2014, que, entre outras coisas, constrange um jovem negro, acusado de ter praticado estupro, que é condenado, ao vivo, sem direito a julgamento, e ainda por cima, em meio a uma série de humilhações.

São os programas policialescos responsáveis por reproduzir os jargões mais preconceituosos que acabam entrando no gosto popular, virando piadas e formas de abordagem que não só reproduzem o preconceito, mas, de forma proposital, distorcem a realidade de violência que jovens negros e negras vivenciam diariamente.

São também os programas policialescos a mercadoria cada vez mais interessante para as empresas de comunicações, dado o nível de audiência alimentado pela abordagem sensacionalista. Isso, por si só, já explica a proliferação deste tipo de programação em todas as regiões do Brasil, com formato e horários praticamente iguais. A fórmula está pronta, basta aplicar e lucrar com ela.

Diante desse cenário, não é difícil termos, como fruto de programas “policialescos” e da mediação que constroem com o público, a pauta da redução da maioridade penal como uma das principais discussões envolvendo a juventude brasileira, ao invés de estarmos discutindo como aplacar a nítida seletividade de promoção da violência no Brasil. Ou seja, na televisão e nas ruas, a arma já está apontada para os jovens negros brasileiros. E o gatilho é disparado todo dia.

* Ana Carolina Westrup é integrante do Intervozes, jornalista e mestranda em Comunicação Social pela UFS.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.