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Ficção e Jornal Nacional: tudo a ver

Como o principal telejornal do país constrói a narrativa do impeachment no cotidiano da disputa política nacional. O jogo continuará na gestão Temer.

Por Eduardo Amorim*

O dia 9 de maio de 2016 certamente merecerá muitos estudos. Do ponto de vista político, nada chamou mais atenção do presidente em exercício da Câmara dos Deputados, Waldir Maranhão (PP-MA) ter decidido, no início do dia, anular as sessões que autorizaram o início do rito de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff e anulado sua própria decisão na madrugada do dia seguinte.

Diante do cenário tão nebuloso, parei para tentar entender o que está sendo passado ao grande público sobre esse processo. E, analisando o principal telejornal do País, fiquei com sinceras dúvidas se havia mais noções de jornalismo ou de ficção naquele script.

O primeiro ponto evidenciado naquela segunda-feira do Jornal Nacional foi a tentativa de tirar do deputado federal Waldir Maranhão a sua relevância. A TV Globo cunhou o termo “presidente interino” da Câmara dos Deputados, utilizado diversas vezes nos três blocos do jornal, deixando claro, logo no início, que ele se movimentava “para permanecer na presidência com apoio de governistas”.

Na primeira explicação sobre a decisão monocrática do presidente da Câmara, explicitou as ligações do deputado do PP com aqueles que julga relevantes: afirma que Maranhão voltou de seu estado em um avião com o governador Flavio Dino e se encontrou em Brasília com o ministro da Advocacia Geral da União, José Eduardo Cardozo.

Também chamou atenção o fato de o Jornal Nacional ter ressaltado que o presidente da Casa não abriu espaço para a opinião dos técnicos da Mesa da Câmara. Quem cobriu – como jornalista – o Parlamento brasileiro sabe que as Casas legislativas em Brasília têm realmente corpos profissionais que muitas vezes merecerem elogios.

Mas arrisco afirmar que a TV Globo não questionou este tipo de conduta em momentos como quando, por exemplo, o então presidente Eduardo Cunha mudou o comando da TV Câmara para tentar retirar a autonomia de seus profissionais da TV Câmara.

Quem fala e quem não

Verificar quem e de qual forma é ouvido nas chamadas sonoras do telejornal também é relevante. A presidenta Dilma Roussef deu declarações públicas sobre a decisão de Waldir Maranhão. Para qualquer jornalismo sério, não dar espaço para o seu posicionamento parece impossível. Mas a edição da Globo terminou com a seguinte frase da presidenta: “vivemos uma conjuntura de manhas e artimanhas”, como se Dilma também achasse que o parlamentar não é alguém em quem se possa confiar.

Já o líder do DEM na Câmara, Pauderney Avelino, ganhou espaço ao afirmar que Waldir Maranhão “é subserviente ao terminal governo do PT”. O secretário da Mesa, Beto Mansur (PRB/SP), entrou na narrativa para reforçar que os deputados coletivamente decidiram pelo impeachment, que a Advocacia Geral da União entrou com pedido no dia 25 de abril e que ele foi deixado de lado.

O Jornal Nacional, entretanto, não explicou aos seus telespectadores que o ex-presidente Eduardo Cunha foi o principal responsável por isso.

Já nesse momento, estava claro o “teatro” (com o perdão aos artistas do palco). Enquanto dois deputados têm espaço privilegiado para criticar a decisão de Waldir Maranhão, nenhum dos apoiadores da decisão no Parlamento foi ouvido.

Ivan Valente, líder do PSOL, divulgou a opinião do PSOL minutos depois do líder do DEM. Não apareceu. O também socialista Jean Wyllys também teve seu posicionamento nas redes sociais ignorado. “Vocês precisavam de mais uma prova de que o que está acontecendo é um golpe de Estado? O presidente do Senado, Renan Calheiros, decidiu simplesmente IGNORAR a decisão”, criticou.

À TV Globo, naquele momento, só interessavam os depoimentos que tratavam o “interino” como parlamentar sem expressão.

O JN também teve tempo para falar sobre o filho de Maranhão, que ocupava dois cargos públicos em São Paulo e no Maranhão simultaneamente. E para ouvir mais críticas ao “escárnio institucional” proclamado pelo senador Ronaldo Caiado (DEM).

O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), também deu um longo depoimento para explicar sua posição: a de que decisão (agora já anulada) de Waldir Maranhão era extemporânea, e que ele assegurava que nenhuma decisão monocrática poderia se sobressair ao conjunto dos parlamentares. A expressão “brincadeira com a democracia” ganhou o centro das atenções.

Só então, depois de mais de dez minutos de sua imagem escalavrada, o deputado (e “presidente em exercício da Câmara”) Waldir Maranhão teve oportunidade de dizer que não estava “brincando de fazer democracia”.

O elemento Delcídio

A sequência do enredo veio com a explicação de que a continuidade da votação do processo do Senado ainda dependia da prévia votação da cassação do senador Delcidio do Amaral, cujo histórico retratado deu conta apenas de seu período enquanto líder do governo no Senado – sendo esquecidos todos os seus anos de serviços prestados ao PSDB. Na fala do senador acusado: “eu como líder do governo errei, mas peço desculpas”.

O Jornal Nacional conseguiu ainda, naquele momento cheio de incertezas, prever o futuro para fortalecer a narrativa da legitimidade do impeachment. Informou que, no dia seguinte, haveria a votação em plenário para a cassação de Delcídio e, então, a votação do afastamento de Dilma poderia seguir em frente.

Como que para garantir que o rito não seria modificado, a emissora assegurou ainda que, no mesmo dia, haveria reunião do PP para expulsar o deputado Waldir Maranhão do partido.

O primeiro bloco do telejornal ainda seguiria com o presidente do STF, Ricardo Lewandowski garantindo que quem decidirá o rito do impeachment será o Senado; mostrando a queda no mercado financeiro no dia 9 (com uma questionável justificativa de que à tarde diminuíram as incertezas e por isso não teriam sido mais graves os efeitos na bolsa e no câmbio); o anúncio do (já certo?) futuro governo Temer sobre o corte de 10 ministérios e a assertiva da repórter Délis Ortiz: “falta ainda definir os nomes dos ministros, mas a sociedade não aceita mais do mesmo”.

Reflexo internacional

Para rebater as críticas ao processo que seguem na imprensa internacional, o JN, uma vez mais, fez um “giro” no noticiário estrangeiro para mostrar como os jornais de fora estão tratando a crise política brasileira.

A repercussão sobre a cobertura de veículos como o The New York Times (EUA), The Guardian (Inglaterra), Le Figaro (França) e El Pais (Espanha) foi reduzida. O vencedor do Pulitzer – maior prêmio do jornalismo mundial -, Glen Greenwald, alertou pelo Twitter o que disse Damian Wroclavsky, correspondente da France Press – matéria não lembranda peloJN.

“Se Roussef for tirada da Presidência, ela será substituída pelo seu vice-presidente-agora-inimigo, Michel Temer. Temer, um líder de centro-direita, foi acusado de estar envolvido no escândalo da Petrobras, mas não está sendo formalmente investigado. Um tribunal de São Paulo o multou por irregularidades no financiamento de campanha e ele pode ser banido por oito anos dos seus direitos políticos”.

Fica a pergunta: por que tanto esforço para destruir políticos como Waldir Maranhão, que podem estar ligados ao PT, e um quase silenciamento acerca das suspeitas sobre o futuro presidente da República?

A narrativa ficcional certamente irá continuar. E aposto que as Olimpíadas terão papel fundamental para, no já novo governo, ressaltar a união dos brasileiros. Serão tempos de uma certa pujança econômica e de mais silenciamento da crise política.

* Eduardo Amorim é jornalista, mestrando em Comunicação pelo PPGCOM-UFPE e integrante do Intervozes.

‘SEM PLURALIDADE NA MÍDIA, NÃO HÁ LIBERDADE DE EXPRESSÃO’, AFIRMAM DEBATEDORES

A urgência de democratizar a comunicação no Brasil foi tema de debate na abertura do Seminário Internacional Mídia e Democracia nas Américas, nesta sexta-feira (18), em São Paulo. Por videoconferência, Edison Lanza, Relator Especial para Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA), defendeu que diversidade e pluralidade nos meios de comunicação é uma condição fundamental para a garantir a liberdade de expressão.

Ciente da ausência de regulação do setor no Brasil – o advogado e jornalista esteve em Brasília recentemente, reunindo-se com autoridades políticas e entidades da sociedade civil – Lanza criticou a concentração dos meios de comunicação e o falso argumento de que regulação é censura, o que já se tornou uma espécie de ‘mantra’ dos grandes empresários do setor. “Monopólios e oligopólios atentam contra a democracia e a liberdade de expressão”, disse. “É obrigação do Estado garantir este direito a partir da regulação do sistema de comunicação”.

Segundo ele, os governos não devem intervir no que se produz, mas sim facilitar e construir políticas públicas para garantir que haja diversidade de vozes nos meios. Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, explica Lanza, é papel do Estado impedir uma excessiva concentração de meios por grupos privados, o que atenta contra a diversidade de fontes e opiniões. “É fundamental que haja intervenção em um mercado com tendência ao monopólio”, acrescenta.

Os organismos que implementem essas regulações, conforme explica o relator da OEA, têm de gozar de autonomia e independência, tanto do ponto de vista político quanto em relação ao poder econômico. “Estes órgãos não devem ser instrumentos para calar vozes ou beneficiar interesses privados”, pontua.

Mídia brasileira ‘corrompe’ opinião pública

Referência em estudos de mídia e democracia no Brasil, Venício Lima avalia que a urgência em se democratizar a comunicação no país diz respeito a findar um processo sistemático de corrupção da opinião pública. “Se a corrupção ¨C palavra preferida dos grandes meios ¨C é a prevalência de interesses privados e ilegitimos sobre interesses públicos, o que a mídia brasileira é corromper a opinião pública”, diz.

“A própria elite política da América Latina identificou, em uma pesquisa feita há dez anos, que os meios de comunicação são um dos principais obstáculos para a consolidação da democracia no continente”, sublinha o professor. “Se houve alguma alteração nesse panorama, é de que a situação se agravou”.

As condições para que os meios cumpram o papel de formar uma opinião pública democrática não ocorre no Brasil, na opinião do estudioso. “Em primeiro lugar, a legislação está desatualizada”, aponta. “Além disso, até hoje os princípios previstos na Constituição de 1988 [dentre eles a proibição do monopólio e do oligopólio no setor] seguem sem regulamentação”.

Segundo Venício, uma simples folheada nas manchetes dos grandes jornais, em um único dia, escancaram a falta de diversidade e pluralidade. “A narrativa da mídia é tão homogênea que é como se houvesse um super editor que editasse as notícias de todos os meios”, critica. “É essa a impressão que você terá se ler diariamente os grandes jornais, todos com as mesmas pautas e narrativas”.

O único remédio, de acordo com ele, é cobrar do Poder Executivo que saia da armadilha na qual o próprio governo caiu. “Os governos dos últimos 12 anos acreditaram, equivocadamente, que poderia ser feita uma aliança com os oligopólios midiáticos”, afirma. “Por isso, perdemos oportunidades históricas de se fazerem mudanças fundamentais, de fazer o mínimio para sanar os problemas que nos colocam na situação crítica de hoje”.

O Ministério das Comunicações foi representado por Emiliano José, histórico militante pela democratização da comunicação que ocupa o cargo de Secretário de Serviços de Comunicação Eletrônica. Segundo ele, existe a clareza, no MiniCom, de que o debate sobre a regulação é fundamental para o avanço da democracia no país. “O ministro Ricardo Berzoini tem dito que está disposto a desenvolver esse debate, assumindo o compromisso de intensificar esse processo”.

De acordo com Emiliano José, a luta pela democratização da mídia é árdua e, infelizmente, esbarra no cenário político desfavorável ao governo. “Imaginar que haverá alguma proposta concreta de regulação do setor é uma contradição”, admite. “Sabemos a composição e como funciona esse Congresso, e nenhum governo pode prescindir do Congresso”, disse, lamentando a conjuntura desfavorável.

“É bastante difícil separar meu papel no Ministério e meu histórico na luta por uma mídia democrática, causa a qual me dedico há décadas”, diz. “Como militante”, Emiliano opina que a mídia não está ao lado do povo brasileiro. “O suicídio de Vargas, em 1954, quando já estava praticamente consumado um golpe contra ele, vanguardeado pela imprensa, tem relação íntima com o bombardeio midiático sobre a presidenta Dilma”, avalia. “É inegável que os meios têm empreendido um gigantesco esforço golpista”.

O parlamentar listou iniciativas que o Ministério das Comunicações tem tomado. Além do Canal da Educação e do Canal da Cidadania, que fomentam canais educativos e públicos, Emiliano José cita também o Plano Nacional de Outorga de Rádios Comunitárias, que deve desburocratizar o processo de outorgas. “É preciso cavar espaços para amenizar o problema do monopólio. Não se trata de excluir vozes, mas ampliá-las”.

Escrito por Felipe Bianchi
para Barão de Itararé

A violência que cala toda a sociedade

Por Helena Martins*

O assassinato da repórter Alison Parker e do cinegrafista Adam Ward, jornalistas de uma TV afiliada à rede norte-americana CBS, na quarta-feira 26, enquanto faziam uma entrevista ao vivo, chocou o mundo. Mostrou a vulnerabilidade humana, bem como a perversidade de quem, friamente, dispara contra outros humanos sem se esquecer de registrar cada segundo com uma câmera. Afinal, no império da imagem, um “caso” como esse não poderia passar despercebido.

Mas a brutalidade do que ocorreu, cujas circunstâncias ainda não foram totalmente esclarecidas, pode ter a força de suscitar o debate sobre o cotidiano de violência ao qual é submetida a pessoa que trabalha com comunicação.

Tensões, ameaças, conflitos e mesmo mortes são mais comuns do que imaginamos. E os motivos que geram essas situações envolvem, na maior parte dos casos, a defesa do interesse público, a investigação e a denúncia daqueles que controlam o poder – e, muitas vezes, também os meios de comunicação, numa associação que tem sido apontada, no Brasil, como coronelismo midiático.

Também na última quarta, em uma audiência pública que tratou sobre o tema na Assembleia Legislativa do Ceará, o presidente da Associação de Imprensa do Sertão Central do estado, Wanderley Barbosa, foi claro ao relacionar as questões. De acordo com ele, conforme consta na reportagem do jornal O Povo: “No Interior, o rádio é um meio de comunicação muito poderoso e tudo que se fala tem repercussão. A grande maioria das emissoras pertence a políticos, e o radialista está no meio dessa história de rivalidade”.

A audiência foi motivada pelo assassinato do radialista Gleydson Carvalho no estúdio da Rádio FM Liberdade, em Camocim (CE), enquanto trabalhava, no dia 6 de agosto. Na mesma data, o Relator Especial para a Liberdade de Expressão da OEA (Organização dos Estados Americanos), Edison Lanza, estava no Brasil a convite de organizações, entre elas o Intervozes, para debater a garantia dos direitos no País. Ao saber do ocorrido, a relatoria manifestou preocupação com a situação. No Ceará, apenas este ano, quatro radialistas foram assassinados.

Todas as mortes ocorreram em cidades do interior e envolveram discussões políticas, conforme apuração dos órgãos competentes. No caso de Gleydson, a denúncia do Ministério Público é clara. Ela cita como motivo o “desprezível sentimento de intolerância às concepções diferentes e críticas feitas à gestão de Martinópole por mais virulentas que fossem”.

Esse tipo de crime mostra a perpetuação da lógica de resolução de conflitos com a imposição do poder pela força. Fica claro, portanto, que, além de calar uma voz, a violência extrema é utilizada para calar a dissidência, o debate, a livre opinião. E as violações não atingem apenas um indivíduo, mas toda a sociedade que, ou acaba privada do acesso à informação, ou recebe apenas aquilo que não gerará incômodo, muito menos abalará as estruturas do poder.

Essa cultura perversa coloca o Brasil em terceiro lugar na lista de países onde o exercício da profissão de jornalista é mais perigoso na América Latina, segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras. Os números são alarmantes.

Já o relatório do Grupo de Trabalho “Direitos Humanos dos Profissionais de Comunicação no Brasil” do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), hoje Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), mostra que entre 2009 e 2014 ocorreram pelo menos 321 casos de violações de direitos. As situações são diversas e envolvem agressões, ameaças de morte, atentado a veículo de comunicação, assédio moral, cerceamento da atividade profissional, detenção arbitrária, hostilização, perseguição, sequestro e assassinatos – que chegaram a 18 no período citado.

Importante salientar que o “envolvimento de autoridades e policiais locais na violência contra comunicadores é uma das evidências mais importantes apreendidas dos depoimentos apresentados” ao grupo, de acordo com o relatório. A essa conclusão também chegou a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que contabilizou 190 casos de detenção ou violência contra jornalistas em protestos ocorridos entre maio de 2013 e junho de 2014. Do total, 88% dos casos foram provocados por policiais. Em quase metade dos casos (44%), a violência foi intencional.

É fato que, assim como outras muitas violências que vemos cotidianamente, essa é difícil de ser enfrentada por se tratar de um problema estrutural, organicamente relacionado à arquitetura de poder político e econômico historicamente constituída em nosso País. Não obstante, é preciso desenvolver medidas para romper com essa lógica e assegurar o direito à liberdade de expressão, à comunicação e à vida dessas pessoas. E o pontapé inicial disso é tirar os casos de agressão da invisibilidade.

Nesse sentido, as organizações que participaram do Grupo de Trabalho “Direitos Humanos dos Profissionais de Comunicação no Brasil” apontaram a necessidade de constituição do Observatório da Violência contra Comunicadores. O órgão, segundo a proposta apresentada pelo grupo, deveria ser consolidado por meio de cooperação com o Sistema ONU, o Ministério da Justiça e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Sua gestão deveria ser feita por meio de um Comitê Gestor tripartite, composto por organizações da sociedade civil que atuem na área de combate à violência contra comunicadores, setores do Estado considerados estratégicos para o tema e o Sistema ONU. A proposta é que o observatório conte com unidade de recebimento de casos, sistema de indicadores e, a fim de desenvolver medidas efetivas, mecanismos de proteção. Hoje, a demanda está sendo discutida pelo CNDH e deve voltar à tona com o início dos trabalhos da Comissão sobre Direito à Comunicação e Liberdade de Expressão do conselho, a qual foi criada recentemente.

Além disso, outras medidas podem ser efetivadas por diversos sujeitos – das empresas de comunicação ao Estado brasileiro. A adoção de equipamentos de proteção, a criação de linhas específicas para comunicadores em programas que objetivam proteger defensores de direitos e a elaboração de um protocolo padronizado de atuação das forças de segurança pública no âmbito das manifestações sobre aplicação do princípio da não violência em circunstâncias como manifestações e eventos públicos são algumas delas. Urge tratá-las com prioridade e envolver a sociedade na luta pela vida e contra todas as formas de violência.

*Helena Martins é jornalista e representante do Intervozes no Conselho Nacional de Direitos Humanos.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

“Um dos pressupostos da democracia é a diversidade de vozes”

A elevada concentração da propriedade dos meios de comunicação na América Latina e no Caribe está na mira da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que recentemente abriu uma consulta pública para conhecer melhor a legislação de cada país e propor mecanismos para evitar ou reverter a formação de monopólios ou oligopólios.

“Um dos pressupostos da democracia é o pluralismo político, a diversidade de vozes”, explica o advogado e jornalista uruguaio Edison Lanza, relator especial para a Liberdade de Expressão da entidade. Em passagem pelo Brasil, Lanza conversou com CartaCapital e criticou a letargia do País em criar medidas concretas para assegurar a diversidade na mídia.

CartaCapital – Por que rediscutir os marcos regulatórios das comunicações?

Edison Lanza – Na América Latina e no Caribe, há um elevado grau de concentração da propriedade dos meios. Poucas mãos controlam a maior parte das frequências, sobretudo dos meios audiovisuais, mas também há monopólios e oligopólios nos escritos. Isso tem implicações no processo democrático, pois um dos pressupostos da democracia é o pluralismo político, a diversidade de vozes. A Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão, aprovada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2000, diz claramente que a formação de monopólios ou oligopólios de comunicação atenta contra a democracia.

Em uma sociedade democrática, devem conviver atores públicos, comunitários e privados. E o Estado tem legitimidade para criar instrumentos para garantir isso. Há uma clara necessidade de incluir mais vozes. O impasse é que os países do continente tentam regular um sistema que existe desde o surgimento do rádio e da televisão, entre os anos 1930 e 1950. Com uma peculiaridade: esse sistema se estruturou de forma desregulada, favorecendo o setor privado.

C.C. – É inevitável, portanto, contrariar interesses nessa reordenação.

E.L – Quando se tenta regular um sistema que já existe é natural haver conflitos. Mas vivemos um momento de transição dos meios analógicos para os digitais, e isso é uma grande oportunidade para garantir maior diversidade. Onde antes só poderiam existir quatro ou cinco canais, hoje é possível haver dezenas de outros. Agora, diante de uma situação consolidada de concentração de meios, que medidas são legítimas? É válido restringir a propriedade dos meios em poucas mãos? É válido coibir a propriedade cruzada, quando o mesmo grupo é proprietário de rádios, tevês e impressos? Muitos países buscaram regular melhor essas questões. Outros não fizeram muita coisa, preferiram manter como está.

C.C – No Brasil, os proprietários dos meios de comunicação usam o argumento da censura para se opor a qualquer forma de regulação.

E.L – Se o Estado não intervir em nada, prevalece a lei do mais forte. Basta ter dinheiro para acumular frequências, controlar um maior número de veículos, o que implica em concentração de poder. Na Guatemala, para citar um exemplo, um só ator, Ángel González, é proprietário de quatro emissoras da tevê aberta e 30 frequências de rádio. É um empresário com influência política enorme, tanto no governo quanto no Parlamento. Isso, de fato, torna mais complexa a discussão na América Latina.

Na Europa, primeiro foram estruturados os meios públicos, para depois regular a atuação privada. Mas também há propostas de regulação que ultrapassam a questão da propriedade e interferem no conteúdo produzido. Temos criticado várias imposições da nova lei do Equador. Sob a justificativa de regular o setor, os parlamentares criaram brechas para punir os meios de comunicação por seu conteúdo com multas, inclusive o conteúdo crítico ao governo. É um tema realmente delicado. A regulação pode servir tanto para incluir mais vozes, com espaço aos meios públicos e comunitários, quanto para criar mecanismos de censura disfarçados.

C.C – Quais são os melhores exemplos de regulação dos meios?

E.L. – No Reino Unido, na França, na Suécia, há excelentes serviços públicos de comunicação, com autonomia e financiamento adequado. Essas nações também têm instrumentos legais para garantir o acesso dos meios comunitários. Também há os grupos privados, mas eles estão submetidos a certas regras para garantir a diversidade. Na América Latina, as iniciativas são mais recentes e fragmentadas. A nova legislação da Argentina tenta criar uma estrutura parecida com essa que descrevi, com a participação dos setores público, comunitário e privado, além de impor limites para a concentração dos meios por particulares.

C.C. – A Suprema Corte da Argentina validou a cláusula antimonopólio, mas até hoje o governo Kirchner é acusado de perseguir o grupo Clarín.

E.L. – Questiona-se que a legislação tem sido utilizada contra um único meio de comunicação. A regra deveria valer para todos, sem qualquer tipo de discriminação. Estamos monitorando de perto essa situação. No Uruguai, o Parlamento acabou de aprovar uma lei, após cinco anos de debates sobre o tema. É basicamente uma regulação da estrutura da propriedade, com mecanismos mais transparentes para a concessão de outorgas. Também há disposições para fomentar a produção de conteúdos de base nacional e para incluir os meios comunitários, além de uma regulação mínima de conteúdo, apenas para garantir a proteção integral dos direitos das crianças e dos adolescentes e punir discursos de incitação ao ódio.

C.C. – Nesse cenário, o Brasil está muito atrasado, não?

E.L. – De fato, o Brasil postergou a adoção de medidas concretas. Pelas denúncias que recebemos da sociedade civil, o País tem um sistema muito concentrado, sobretudo na tevê aberta. Há muitas rádios controladas por políticos e o setor comunitário permanece excluído. A legislação para as rádios comunitárias é deficiente, pois impõe limites de alcance e restringe o financiamento pela publicidade. O Brasil poderia avançar mais por meio de políticas públicas, que assegurem, por exemplo, a inclusão dos meios comunitários. Há um contrassenso na perseguição às rádios sem licença quando o objetivo é incluir mais vozes. Com a transição da televisão digital, também não há desculpa para não ampliar o número de atores, pois nem sequer é preciso mexer nos já existentes.

C.C. – A internet assegurou a inclusão de vozes alternativas aos meios tradicionais. Por outro lado, vemos a emergência de um forte discurso de ódio, sobretudo nas redes sociais.

E.L. – A internet foi construída para ser uma rede descentralizada, e logo se converteu num importante instrumento para a liberdade de expressão. Uma das características da rede é o enorme pluralismo, com barreiras de acesso muito baixas. Tanto que vimos a emergência de dessas vozes alternativas aos meios tradicionais. Temos de ser muito cuidadosos ao falar de regulação da internet para não interferir no projeto original da rede, marcada pela descentralização e diversidade. Se há a necessidade de regular algum conteúdo, precisa haver regras muito precisas. As normas internacionais já proíbem discursos de incitação ao ódio. O artigo 13.5 da Convenção Interamericana diz, textualmente, que “a lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”.

As Nações Unidas têm uma metodologia para identificar essas expressões que incitam o ódio. Precisamos aprimorar os padrões de proteção aos direitos das mulheres, dos povos indígenas… Mas os Estados têm a obrigação de educar seus cidadãos, inclusive na promoção de valores na cultura digital. Não adianta só apostar na repressão, é preciso educar as pessoas para o exercício ético e responsável da liberdade de expressão.

Entrevista concedida a Rodrigo Martins, publicada em Carta Capital – www.cartacapital.com.br

Ministro do STF: “Regulação da mídia é necessária à liberdade de expressão”

Por Helena Martins*

O julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 4679, 4747, 4756 e 4923, ajuizadas contra a Lei do Serviço de Acesso Condicionado (12.485/2011) teve nesta quinta-feira 25 um capítulo importante, não só para os atores diretamente envolvidos no mercado de TV por assinatura, mas para a defesa da regulação democrática dos meios de comunicação como um todo.

Movidas pelo DEM e por associações comerciais como a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), a Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra) e a Associação Brasileira de Televisão por Assinatura em UHF (ABTVU), as ações questionam principalmente dois aspectos da lei, que em 2011 colocou em vigor um novo marco legislativo para todos os serviços de TV paga no País: o impedimento de que uma mesma empresa seja produtora e distribuidora de conteúdo, e a determinação de cotas de conteúdo nacional na programação dos canais.

O relator da matéria, ministro Luiz Fux, não apenas invalidou praticamente todas as alegações das autoras, considerando a quase totalidade dos artigos da lei como constitucionais, como proferiu um voto que mostra, de forma inequívoca, a validade – e mesmo a necessidade – da regulação da mídia para a garantia da liberdade de expressão, diversidade e pluralidade no sistema de comunicação do País.

Algumas passagens do voto merecem ser rememoradas, pois lançam luz sobre um debate feito em geral de forma enviesada pela própria mídia brasileira. Segundo Fux, os dispositivos da lei “respaldam, a toda evidência, uma postura não meramente passiva do Estado na regulação da TV por assinatura, viabilizando (e porque não dizer: reclamando) verdadeira atuação positiva do Poder Público na promoção dos valores constitucionais pertinentes ao setor”.

Indo, inclusive, além do debate sobre a estruturação do mercado de tevês pagas, o ministro do Supremo destacou a necessidade de se estabelecer mecanismos que garantam a diversidade nos meios de comunicação. Referindo-se às cotas para conteúdo nacional e independente garantidas na lei, afirmou que “o mercado audiovisual – deixado por si próprio – é incapaz de promover a diversidade de conteúdo e o pluralismo que se espera dos meios de comunicação de massa” – conforme previsão da Constituição Federal de 1988.

Ratificou, ainda, que a lei ora questionada atende à concretização não apenas do que dispõe a Constituição, mas também a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, promulgada pela Unesco e ratificada pelo Brasil. O tratado internacional diz que “cada parte poderá adotar medidas destinadas a proteger e promover a diversidade das expressões culturais em seu território”. Entre as medidas, a convenção cita aquelas destinadas a “fornecer às indústrias culturais nacionais independentes e às atividades no setor informal acesso efetivo aos meios de produção, difusão e distribuição das atividades, bens e serviços culturais.”

O posicionamento de Fux, como ele mesmo afirmou, considerou o papel crucial da comunicação social e sua enorme capacidade de influenciar a opinião da população.

Contra o abuso de poder

Durante a quase uma hora de apresentação de seu voto, Luiz Fux defendeu a lei, diante dos olhares inquietos dos representantes das empresas – que esperavam encontrar ali acolhida para seus argumentos contrários à legislação e a marcos regulatórios equivalentes estabelecidos nos mais diferentes países do mundo. O ministro do STF foi categórico ao afirmar que a 12.485 contribui para a diversificação do conteúdo e “tende a evitar que o mercado de TV por assinatura se feche, ampliando as fontes de informação disponíveis e o espaço para a manifestação de novos entrantes”.

A afirmação encontra eco nos dados apresentados pela Advocacia-Geral da União (AGU) no julgamento da quinta 25. Segundo o órgão, após sua entrada em vigor, com a previsão de reserva de 3 horas e meia por semana nos canais de espaço qualificado para conteúdos brasileiros (dos quais metade é produzida por produtoras independentes), o mercado de TV por assinatura deu um salto significativo.

O número de canais que veiculam mais de 21 horas de programação nacional passou de 7 em 2010, para 22 em 2015. A quantidade de séries produzidas e veiculadas no País também cresceu. Eram 73 em 2011 e, no ano passado, somaram 506 produções.

Os advogados do mercado repetiram o mantra habitual do setor empresarial. Consideram a lei inconstitucional porque, a seu ver, ela fere a livre iniciativa, a “propriedade intelectual dos canais” e a liberdade de expressão.

O argumento foi questionado por Bráulio Araújo, representante do Intervozes, que participou do julgamento na figura de amicus curiae. Ele sustentou que a livre iniciativa e a livre concorrência não são normas absolutas e que, ao Estado, é necessário atender ao interesse público e aos princípios constitucionais em sua ação – tanto no estabelecimento de limites à concentração dos meios quanto em relação às normas de promoção da diversidade, por meio do incentivo à produção regional e independente.

“A eficiência dessa técnica e sua adequação ao ordenamento jurídico é comprovada pela experiência internacional, haja vista que uma série de países – tais como França, Alemanha, Itália, Reino Unido, Holanda, Austrália, EUA e Argentina – adotam regras que impõem limites fixos à concentração de poder econômico sobre os meios de comunicação”, destacou o Intervozes.

“A comunicação é o único setor econômico em que a Constituição Federal proíbe expressamente o monopólio e o oligopólio, porque ela reconhece que os meios de comunicação não são apenas bens econômicos; são espaços fundamentais para a democracia”, afirmou Araújo. Nesse sentido, o prejuízo à democracia causado pela concentração midiática é maior do que qualquer benefício econômico que essa situação passa vir a gerar.

O julgamento das ações foi paralisado logo após a leitura do voto do relator Luiz Fux. Além de Fux, nenhum ministro se manifestou sobre o caso, que deve voltar ao plenário do STF no segundo semestre. Até lá, fica a esperança de que seja aberto, no Judiciário, um novo capítulo do debate sobre as comunicações no País, hoje marcado pela desinformação e pela manipulação do discurso.

É hora de o Brasil se alinhar aos demais países democráticos que reconhecem a centralidade de uma comunicação plural e diversa para as sociedades contemporâneas. E, com isso, romper com o histórico de omissão do Estado em sua regulação e de privilégio do exercício da liberdade de expressão por poucos, com o total silenciamento das maiorias sociais.

Leia aqui a íntegra do voto do ministro Luiz Fux.

*Helena Martins é jornalista, doutoranda pela Universidade de Brasília e integrante do Conselho Diretor do Intervozes. 

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.