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O olhar da imprensa internacional sobre o impeachment no Brasil

Enquanto a mídia tradicional brasileira mantém discurso de legitimação do impeachment, veículos internacionais dão visibilidade ao risco à democracia.

Por Camila Nóbrega*

Diversidade de narrativas e análises sobre a crise política não faltam no Brasil, mas ela segue engolida pelo monopólio dos veículos tradicionais. Em tom bastante conservador e politicamente localizada à direita, a narrativa que pauta o noticiário do país faz desaparecer boa parte das nuances e oculta personagens e fatos importantes da crise. Neste contexto, a cobertura internacional ganha holofotes e acende o alerta sobre o perigo da concentração da chamada grande mídia brasileira. Protegidos pelo distanciamento e pautados por analistas políticos, pela mídia alternativa nacional e por movimentos sociais, alguns veículos estrangeiros têm chamado atenção por terem mudado seu próprio discurso. Se inicialmente a imprensa internacional acompanhava a ode aos protestos pró-impeachment criada pelos grandes conglomerados da imprensa nacional, houve uma meia-volta significativa. A mudança, que marcou a cobertura da votação na Câmara no dia 17 de abril, tem repercutido.

“O deputado votou ‘sim’ pela abertura do processo de impeachment e disse que fez a escolha pelo futuro do Brasil e por sua esposa e filhos”, traduzia um repórter da BBC Internacional, em flash com imagens diretas da Câmara dos Deputados no domingo 17 de abril, seguido de uma análise sobre a ausência de argumentos relacionados às acusações feitas à presidenta nos discursos dos parlamentares.

“O presidente da Câmara brasileira, Eduardo Cunha, que conduz a votação no dia de hoje, é acusado de corrupção e alvo da Lava Jato”, explicava o canal Euronews. “Milhares de pessoas estão nas ruas, divididas; enquanto há quem comemore, são muitos os brasileiros e brasileiras que denunciam um golpe em curso”, esclarecia a jornalista da Al Jazeera ao vivo, apenas alguns minutos antes da confirmação da abertura do processo.

Durante as cerca de oito horas de votação, o Brasil esteve nas notícias mais importantes (“breaking news”) de centenas de canais de televisão, jornais, rádios e sites de todo o mundo.

E, durante todo este tempo, jornalistas enfrentavam em diferentes sotaques o desafio de explicar o emaranhado de relações de poder e alianças no Congresso brasileiro e a construção de um discurso conservador e autoritário, no caminho que levou à abertura de processo para julgamento de um possível impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Entre os veículos de comunicação que adotaram uma linha mais crítica e apostaram na apuração jornalística própria, especialmente com correspondentes enviados ao Brasil ou até mesmo a partir de escritórios instalados no País, os obstáculos não eram menores.

Afinal, imagine o desafio de explicar que vários dos parlamentares que tinham direito ao voto naquele momento figuravam na lista da operação Lava Jato sob graves acusações de corrupção, incluindo o presidente da Casa.

Se a tarefa de esclarecer a situação é árdua entre brasileiros, imagine o fardo de quem precisa fazer isso para pessoas que não estão sequer familiarizadas com o contexto político do País, apresentando a biografia extensa desses parlamentares que ali vociferavam contra a “corrupção”.

Some a isso a necessidade de traduzir, além de centenas de dedicatórias a filhos e esposas, declarações como a do deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que homenageou Brilhante Ustra, primeiro militar reconhecido pela Justiça Brasileira como torturador.

Em meio às dificuldades – e também às facilidades, é bom lembrar – impostas pelo distanciamento, a cobertura internacional de um dos principais momentos na história recente brasileira marcou grandes diferenças em relação ao que figurou na mídia tradicional nacional. E, acima de tudo, marcou uma virada.

Onde, apenas um mês atrás, veículos descreviam os protestos nas ruas com um certo glamour de luta contra a corrupção, os espaços de questionamento cresceram. Veio à tona o fato de que os motivos para a abertura de um processo de impeachment são, no melhor dos casos, duvidosos, assim como a credibilidade e idoneidade dos deputados que estavam à frente do processo.

A narrativa na imprensa internacional

Enquanto a imprensa brasileira seguiu retratando a votação do impeachment como um jogo de futebol, ficou a cargo da mídia internacional o chamado a reflexões e à garantia de princípios jornalísticos de apuração.

Ganharam espaço detalhamentos sobre o processo da votação em si, o que aconteceria daqui para frente e o fato de que a crise política não se encerraria na votação, independentemente do resultado.

Foram órgãos de mídia internacionais também os responsáveis por pautarem e explicarem os motivos que levam uma grande parcela da população brasileira a denunciar um golpe em curso.

Assim seguiu a semana com uma cobertura mais equilibrada vinda dos meios de comunicação estrangeiros. Entre os impressos, o jornal britânico The Guardian, após o resultado da votação na Câmara, optou por reportar a situação dando espaço à fala do líder do governo na Câmara, José Guimarães, que pediu aos brasileiros e brasileiras contrários ao golpe que permaneçam mobilizados.

O jornal é um dos poucos a dar nome e sobrenome ao processo. Afirmou abertamente que há uma ansiedade da oposição em conseguir o impeachment de Dilma Rousseff a fim de instalar no Brasil o primeiro governo de centro-direita em 13 anos.

O periódico é um dos que também tem feito questão de ressaltar as acusações nas costas do presidente da Câmara.

Aliás, se a ficha de Cunha está longe de ganhar destaque no Brasil, ela é considerada elemento central por muitos veículos da mídia internacional. A versão brasileira do jornal El País também ressaltou na última semana o preço que a oposição aceitou pagar para que o impeachment passasse, em referência à aliança com Cunha e à ocultação de seus milhões não declarados no discurso que passou a apontar apenas a presidenta e o ex-presidente Lula como focos dos escândalos.

Os mesmos questionamentos também ganham espaço nos três principais jornais norte-americanos, de linha liberal: The New York TimesThe Wall Street Journal e The Washington Post, que têm destacado as suspeitas de corrupção contra vários parlamentares à frente do impeachment.

Já a revista alemã Der Spiegel, apesar de manter em seu site um vídeo da votação mostrando apenas as manifestações verde-amarelas, descreveu o processo de votação como “a insurreição dos hipócritas”.

Na América Latina, a cobertura dos jornais hermanos também têm tido um papel importante. O colombiano El Espectador ressaltou a falta de argumentos dos deputados durante a votação, apontando que falas com cunho religioso e até mesmo contra “o comunismo” foram feitas de forma absolutamente descontextualizada.

O La Nación, da Argentina, afirmou que a crise política está longe de acabar e apontou que o País tem uma presidência “na porta da saída de emergência, um Congresso que festeja com euforia a crise política que divide o País e um novo eventual mandatário também suspeito de corrupção”.

Agências independentes de notícias como a PressenzaInternational Press Agency, que tem foco na América Latina – ficam a cargo de análises mais aprofundadas e questionamentos que posicionam a crise política no cenário e de interesses econômicos internacionais.

A crítica internacional à mídia brasileira

A emissora do Catar Al Jazeera trouxe como alvo de questionamentos a própria mídia brasileira, fazendo crescer a discussão sobre o cenário de concentração dos meios de comunicação no Brasil e tocando no calcanhar de Aquiles dos principais veículos do País.

A Al Jazeera foi uma das primeiras a utilizar com mais clareza a palavra “golpe”, explicitando o posicionamento crítico de grande parcela da população em relação à tentativa da oposição de centralizar acusações e investigações sobre o Partido dos Trabalhadores e sobre a presidenta, passando por cima de processos e instituições democráticas e protegendo um número considerável de parlamentares envolvidos nos escândalos da Lava Jato.

A publicação online norte-americana The Intercept também têm colocado a mídia nacional em xeque, principalmente por meio das reportagens do jornalista Glenn Greenwald, que mora no Brasil e se tornou conhecido após publicar reportagens sobre os documentos revelados por Edward Snowden.

No último mês, Greenwald publicou textos no The Intercept sobre a concentração da mídia brasileira e o papel dos veículos do País na construção do discurso conservador contra a corrupção e a favor da retirada de Dilma Rousseff.

O The Intercept também apontou, na última semana, a possível investida do vice-presidente Michel Temer em angariar apoios de setores nos Estados Unidos, por meio de uma viagem de um senador Aloysio Ferreira Nunces (PSDB-SP) ao País.

Por esses exemplos e outros mais, a cobertura internacional tem desempenhado um papel importante nesse momento da história brasileira e tem ganhado status de mais equilibrada, contundente e aprofundada.

A situação, porém, está longe de ser ideal. Os casos relatados acima ganharam repercussão aqui no Brasil exatamente por conterem informações ocultadas pela mídia brasileira. No entanto, a maior parte do que é divulgado sobre a crise política no País ainda se limita a reproduzir fragmentos de agências internacionais e a superficialidade da cobertura dos canais nacionais.

A agência Press Trust of India, principal daquele país, limitou-se, por exemplo, a falar da votação. A leitura descontextualizada não dá sequer a dimensão da divisão de opiniões.

A cobertura restrita se repete também nas agências de notícia russas, que só agora começaram a falar do tema, após semanas de silêncio. A Russian Information Agency só deu espaço ao caso no Brasil após a votação do impeachment na Câmara.

Logo após, o jornal Russia Today publicou uma matéria intitulada “As Olimpíadas serão um sucesso, independentemente do impeachment”, tentando apaziguar os ânimos para os jogos.

Alguns russos têm interpretado o silêncio da imprensa local sobre o que se passa no Brasil como uma tentativa de não trazer ao debate público um caso de impeachment em um dos BRICS – e assim não inspirar críticos de Putin.

Fugindo das armadilhas

Nessa análise sobre cobertura internacional, é importante não cair em algumas armadilhas. Os elogios à cobertura internacional devem ser ponderados, para não resultar em mais retrocessos. Uma coisa é sabida por todo correspondente internacional: é sempre mais fácil falar dos problemas alheios.

É natural que a mídia local tenha mais dificuldades de falar de problemas do próprio território. Com menos relações diretas com poderes locais, às mídias estrangeiras sobra mais liberdade.

Isso não significa, entretanto, que essas mesmas mídias poderão chegar a fazer associações mais amplas, questionando as relações de seus países de origem com escândalos em outras nações, como o que ocorre no Brasil, por exemplo.

Segundo ponto: não faltam exemplos de como a globalização no campo da comunicação também traz prejuízos às narrativas. Nesse olhar geral de contexto mundial faltam, entre outros aspectos, espaço para o esclarecimento sobre o que aconteceu com o Brasil nas décadas que sucederam a ditadura militar e que mantiveram no poder parlamentares que lá estão desde então, assim como as características de coronelismo, que permanecem.

A falta dessas perspectivas a partir de uma mídia brasileira não será suprida por veículos e jornalistas internacionais. Não nos iludamos.

Por fim, um dos maiores erros é olhar para a cobertura internacional como uma idealização em termos de técnica jornalística. As mídias independentes que têm surgido no Brasil são uma boa imagem disso. Se aqui não há espaço para uma boa cobertura, isso nada tem a ver com um padrão de jornalismo. Colocar as coisas nesses termos seria aceitar um enquadramento realizado de fora para dentro, fazendo com que nosso olhar acabe se rendendo a uma análise eurocêntrica.

O que falta no Brasil nesse sentido é uma mudança política, que vem sendo pautada há muito tempo pelos movimentos pela democratização da comunicação. O desafio é a alteração do cenário atual, que viola o direito à comunicação e aos diferentes lugares de fala, absolutamente necessários em um país como o nosso, onde a mídia atribui aos discursos pesos políticos absolutamente desiguais e desproporcionais à composição da população.

* Camila Nóbrega é jornalista e integrante do Intervozes.

“Os efeitos da midiatização na vida das crianças são múltiplos”

Oscar Traversa, professor especialista em Semiótica, Comunicação Social, Estética e Discursividade Social do Departamento de Ciências Sociais da Universidad de San Andrés, da Argentina, faz um alerta: “Os efeitos da midiatização na vida das crianças são múltiplos. Para compreender sobre as suas variações é preciso estar atento ao funcionamento dos adultos, já que são eles os indutores dos padrões de comportamento”.

O Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz publicou entrevista com Traversa sobre imagem, corpo e obesidade infantil. Temas que discutirá em workshop no dia 09 de novembro, no Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde do ICICT.

Leia entrevista completa em espanhol:

O senhor falará sobre os limites da midiatização em relação à obesidade infantil. Que limites seriam esses?

Las relaciones entre la obesidad infantil (y también la de los adultos) constituye un problema que ha sido tratado con ligereza, entre tantos otros, por la OMS (Organização Mundial da Saúde) y otros organismos. Se ha descuidado pensar que los medios dan lugar a configuraciones discursivas complejas que operan con audiencias no menos complejas. Los niños pequeños y los adultos establecen entre sí vínculos singulares y, a su vez, unos y otros se relacionan con los discursos mediáticos de manera heterogénea. Si esa trama de relaciones se desconoce – o se deja de lado – poco se puede esperar de las campañas de salud aconsejadas por la OMS, por caso.

Por que o corpo é tão presente na imagem midiática?

La imagen del cuerpo si esta presente hoy en los medios no lo estuvo menos, de modos distintos, en la Grecia clásica o en el Renacimiento. Desde siempre ha sido una representación (o presentación) conflictiva. Al punto que ha sido objeto de prohibición por diversos credos en distintos momentos, tanto en occidente como en oriente, en tanto que el cuerpo, como tal, es el lugar de manifestación del placer como del dolor y los mayores padecimientos. El crecimiento de la capacidad de mostración mediática que nos ha dado la técnica a partir del siglo XIX (fotografía y cine) y las expansiones del XX, han sido los principales factores del crecimiento de la presencia del cuerpo. Cuestión, por otra parte, imposible a partir de las características de esas técnicas a dejarlo de lado, el caso mas elocuente es la TV, donde todo es cuerpo o, al menos, buena parte.

Qual a relação entre corpo e alimento na imagem midiática?

La gran presencia pública de la asociación entre medios-cuerpo y alimentación comienza en las revistas semanales de la década del 30, en el siglo XX. Varias son las razones que concurren a la emergencia de ese fenómeno (no en todos los países ocurre lo mismo, en el mismo momento, me refiero especialmente a la Argentina), por una parte el trabajo femenino y los consecuentes cambios en el funcionamiento de la vida doméstica en las ciudades. Decrecimiento de la elaboración de alimentos en el hogar y la progresiva – y creciente – adopción de alimentos elaborados y semielaborados dan lugar tanto a la publicidad como al desarrollo de un verdadero género literario: la receta de cocina en los diarios y revistas. Hoy, la TV, a maximizando esas presencias.

Ao mesmo tempo em que a imagem vendida pela mídia é de um corpo saudável, magro e atlético, porque incentivar o consumo de alimentos que podem implodir a imagem desse corpo, tornando-o obeso?

Con las modas suele ocurrir que los tipos mediáticos se encuentre en colisión con lo que ocurre efectivamente en la sociedad. Soy lector de revistas, masculinas y femeninas, ni yo ni mi mujer, tampoco mis hijos, nos vestimos como las figuras que allí se presentan. O, todos nosotros, lo hacemos solo parcialmente. Los cuerpos varían con el tiempo, incluso en periodos bastante cortos, yo he escrito un par de libros al respecto, especialmente referidos al siglo XX. El cuerpo de poco antes de la primera guerra mundial, cambia en poco tiempo después de su finalización, cambia de aspecto pero cambia también la concepción general de la relación con el cuerpo. El cuerpo de hoy es, posiblemente “un cuerpo en trance”, marcha a un lugar que se nos hace difícil de imaginar.

Nas TVs americanas e latinas há uma grande quantidade de propagandas sobre alimentos para crianças e medicamentos. Até onde vão os limites da midiatização nas vidas das crianças?

Los efectos de la mediatización en la vida de los niños son múltiples, para saber acerca de sus variaciones es necesario estar atento al funcionamiento de los adultos, dado que ellos son los inductores de las pautas de conducta. La respuesta sería, seguramente, muy larga, en torno a todo eso discutiremos en el workshop.

Os pais estão indefesos diante da midiatização de alimentos e de corpos? O que pode ser feito?

No esta indefenso si presta atención al aporte que puede prestar la investigación y el estudio de los problemas, en principio y, por supuesto, pone en obra los resultados. Pero es crucial que cambie y oriente la investigación con el suficiente grado de pertinencia y continuidad en la acción. Más que nunca se hace necesario – dada la complejidad de las circunstancias – realizar esfuerzos para el mejor conocimiento de los fenómenos, tanto naturales como sociales y culturales, para poder dar lugar a políticas públicas adecuadas a las condiciones, para nada simples, que debemos enfrentar.

Entrevista concedida a Graça Portela, publicada no portal do ICICT/Fiocruz – www.icict.fiocruz.br

No 7 de Setembro, gritemos por uma comunicação democrática

Por Paulo Victor Melo*

Denunciar a manipulação e a violação de direitos pela mídia e anunciar a necessidade de democratização dos meios de comunicação. Essa é a síntese do tema da comunicação no Grito dos Excluídos deste ano, que tem como lema “Que país é esse, que mata gente, que a mídia mente e nos consome?”.

Ao chegar a sua 21ª edição, o Grito dos Excluídos – manifestação popular realizada anualmente desde 1995 – evidencia que o debate sobre comunicação é atual, diz respeito ao caráter da democracia brasileira e, por isso, deve ser amplo, com a participação de todos e todas.

E nada melhor que os setores que organizam o Grito dos Excluídos – movimentos sociais, organizações populares e coletivos de direitos humanos – para protagonizar esse debate nas ruas de todo o País, durante o 7 de Setembro. Afinal, são esses segmentos que, dia após dia, têm seus direitos violados pelos meios de comunicação, em especial pela televisão.

Assistida cotidianamente por 94% da população, segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo, a televisão brasileira tem como um dos seus pilares justamente a propagação de conteúdos que violam direitos de mulheres, jovens, idosos, negros e negras, indígenas, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência e população LGBT.

Dois formatos são emblemáticos nesse sentido: os programas de auditório que exploram conflitos pessoais e abusam da exposição das mazelas de pessoas em situação de vulnerabilidade psicológica e social; e os programas policiais, que, com base no discurso de ódio e do preconceito, incitam o crime e a violência, criminalizam a pobreza, invadem domicílios e desrespeitam, de todas as formas, a dignidade humana.

Somam-se a esse cenário comentaristas e apresentadores que, utilizando-se de espaços públicos (é sempre importante lembrar que rádio e televisão são concessões públicas), estimulam a “justiça com as próprias mãos” como saída para resolução dos nossos conflitos sociais, comemoram ao vivo o extermínio da juventude negra e defendem a redução da maioridade penal. Exemplos não faltam: José Luiz Datena, Marcelo Rezende, Rachel Sheherazade, Luiz Carlos Prates e tantos outros pelo País afora.

E cabe frisar: essa realidade de permanente violação de direitos humanos pelos meios de comunicação tem como aliadas a omissão e a conivência do Estado brasileiro. O mesmo Estado que, como diz o lema do Grito dos Excluídos, “mata gente”. Omissão e conivência que são verificadas, por exemplo, no fato de o Ministério das Comunicações quase não se manifestar diante das constantes violações ou no fato da legislação estabelecer 89 mil reais como valor máximo para pagamento de multas pelas emissoras que violem direitos, uma cifra irrisória para as principais redes de TV do País.

Mas não encerram por aí a omissão e conivência do Estado que mata gente com a mídia que mente. A permissão para que políticos com cargo possuam propriedade de radiodifusão, desrespeitando o artigo 54 da Constituição Federal; a permissão do oligopólio, também em oposição ao que diz a Carta Magna; a ausência de regulamentação da complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal; e a negativa em garantir o conteúdo regional e independente na programação do rádio e da TV são outros exemplos de como a relação entre Estado e meios de comunicação se constituiu ao longo da nossa história.

Diante disso, não restam dúvidas que, no dia em que se celebra a independência oficial do Brasil, é preciso denunciar a mídia que mente e viola direitos e ampliar, nas ruas, o coro dos que gritam por uma comunicação democrática. Só assim a diversidade de vozes, cores e ideias existentes na sociedade, e que caracteriza o Grito dos Excluídos, será refletida nos meios de comunicação.

*Paulo Victor Melo é jornalista, doutorando em Comunicação e Política na Universidade Federal da Bahia e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

O caso Frota, a cultura do estupro e os limites à liberdade de expressão

Por Sâmia Bomfim*

Quando recebi a notificação para depor no 2º DP de Cotia, custei a acreditar que fosse verdade. Mas era isso mesmo: Alexandre Frota havia entrado com uma denúncia contra mim por calúnia e difamação. Em maio, criei um evento no Facebook para reunir as pessoas que estavam indignadas com a declaração que ele havia dado no programa Agora é Tarde, da Band, quando afirmou que fez sexo sem consentimento com uma mãe de santo. Segundo Frota, eu inventei que ele estuprou uma mulher e isso gerou uma série de problemas pessoais e profissionais para ele. Na época, ele me procurou no Facebook para me intimidar, mas jamais pensei que ele iria tentar me incriminar diante desta situação.

O vídeo pode ser visto aqui. Qualquer um pode ter acesso a seu conteúdo e tirar suas próprias conclusões. Não fui a única, tampouco a primeira, a se indignar e pedir algum tipo de punição para Frota na época. Uma série de páginas, ativistas, coletivos, personalidades, parlamentares e veículos de comunicação se manifestaram também.

Essa situação é muito absurda. Ele quer sair do papel de culpado para o papel de vítima. Quer criminalizar quem se indignou com seu relato em rede nacional. Estupro é crime, denunciar é um direito.

Na época, várias entidades entraram com um pedido de investigação no Ministério Público. Tivemos uma primeira conquista. Nesta quinta-feira 13 acontece sua audiência no Ministério Público de São Paulo. Frota terá de responder por incitação ao crime e violência de gênero. Feministas organizam um ato para pedir sua punição e em repúdio ao processo que ele está movendo contra mim.

No Brasil, uma mulher é vítima de violência sexual a cada 12 segundos. A mídia em geral cumpre com um papel muito negativo de naturalização da violência contra a mulher. É hábito no País a exibição de cenas em novelas e programas de TV com mulheres sendo assediadas e agredidas. Não são raros apresentadores e “comediantes” que fazem supostas piadas com conteúdo opressor. O próprio apresentador do programa Agora é Tarde, Rafinha Bastos, é um exemplo desta prática.

O caso de Alexandre Frota é emblemático do absurdo da cultura do estupro no Brasil e do debate que precisa ser feito no País sobre limites à liberdade de expressão. Frota recebe palco, aplausos e exibição em horário nobre nos meios de comunicação de massa para relatar um estupro e ainda de sente no direito de abrir processo criminal contra pessoas que se indignam com seu relato. É uma completa inversão de papeis.

O processo é individual, contra mim, mas considero uma tentativa de ataque coletivo às feministas. No último período, o feminismo se ampliou e se fortaleceu. Muitas mulheres em todo o mundo têm usado as redes para promover campanhas e debater política, e têm saído às ruas para denunciar o machismo e lutar por mais direitos. Os machistas, dentre eles artistas e políticos, que estão sendo denunciados e percebendo que há um forte movimento que não aceita mais tanta violência, querem que as mulheres sintam medo e parem de reivindicar seus direitos, mas não vão conseguir.

Espero que o caso recebe a devida punição do Estado, que eu não tenha que responder por um crime que eu não cometi e que toda essa história sirva de exemplo para as emissoras e artistas que tratam estupro como piada.

* Sâmia Bonfim é servidora da USP, integrante do coletivo Juntas! e da Secretaria de Mulheres do Sintusp (Sindicato dos Trabalhadores da USP).

Em tempo: o Intervozes também denunciou o caso ao Ministério Público Federal e ao Ministério das Comunicações, pedindo a responsabilização da Rede Bandeirantes pelo episódio. Esperamos o posicionamento dos órgãos sobre o ocorrido.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

MPF processa Editora Abril por matéria de Veja considerada discriminatória

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região acolheu um recurso do Ministério Público Federal (MPF) revertendo uma sentença de primeira instância que declarava prescrita ação movida pelo órgão contra a Editora Abril, por conta de uma reportagem considerada discriminatória contra minorias étnicas publicada em maio de 2010 na revista Veja.

A ação por danos morais coletivos, ajuizada pelo MPF em agosto de 2014, foi movida por conta da reportagem intitulada “A farra da antropologia oportunista” e pede pagamento de indenização mínima de R$ 1 milhão, que seriam destinados aos povos tradicionais do estado de São Paulo.

De acordo com o MPF, o texto de Veja “baseou-se em informações distorcidas e expressões injuriosas para criticar o processo de demarcação de reservas destinadas a grupos indígenas e quilombolas”. O texto buscou caracterizar a criação de novas reservas como “fruto do conchavo entre ativistas que sobreviveriam dos sucessos das demarcações, agentes públicos e antropólogos cujo trabalho não teria nenhum rigor científico, mas simplesmente viés ideológico de esquerda”.

A publicação ainda utiliza termos depreciativos que incitam o preconceito contra as comunidades indígenas e outras minorias, qualificando, por exemplo, os tupinambás como “os novos canibais”, relacionando-os a invasões, saques e outras práticas delituosas. Para a procuradora da República Suzana Fairbanks Oliveira Schnitzlein, autora da ação e do recurso, tais declarações não podem ser toleradas a pretexto de liberdade de expressão/imprensa, direito fundamental que não pode ser confundido com “o puro e simples discurso de ódio camuflado de reportagem jornalística”.

A decisão que extinguia o processo se baseou no prazo prescricional de três anos estabelecido no Código Civil para pedidos de reparação civil, mas o desembargador federal Carlos Muta, do TRF-3, afirmou que o prazo-limite para o ajuizamento de ação civil pública em matérias que envolvem direitos coletivos é de cinco anos.

Publicada no Portal Fórum