Cadinho, domésticas e um mundo sem mulheres

Finalmente, sedimentou-se a imprescindibilidade das mulheres na sociedade brasileira – obviamente, com foco no espaço privado. Para isso, não havia melhores instrumentos e momento para fazê-lo: desde o final de março, o Fantástico exibe, em capítulos, a vivência de núcleos familiares sem a presença da "patroa" em casa durante uma semana.

O quadro “Mundo sem Mulheres” mobiliza, em um só tempo, questões de gênero, de classe e de direitos humanos, confundindo o público como se expusesse uma ode ao protagonismo feminino. Como cenário, a telerrevista que se vangloria ser o show da vida utiliza o formato de "reality show", que tem muito pouca preocupação com a verossimilhança. Na verdade, a intenção é subvertê-la, mas apenas na aparência.

O contexto político é, coincidentemente, a sanção, pela presidenta Dilma Rousseff, da PEC das Trabalhadoras Domésticas, que fundamenta novos direitos da categoria na Constituição – hora extra, FGTS e, vejam só a ousadia, limite de jornada. Só o fato de essas garantias básicas serem inéditas já é motivo de vergonha histórica e escancara o repertório casa grande & senzala ainda remanescente no Brasil, do qual alguns segmentos sociais não querem abrir mão.

Anexam-se a essa conjuntura matérias que emulam uma espécie de Serviço de Atendimento ao Consumidor do Trabalho Doméstico, em que, a título de explicar didaticamente as dificuldades originadas com a PEC, representantes da distinta classe média são apresentados como clientes a tirar dúvidas sobre as empregadas-mercadoria “objetos” de contenda jurídica. Algo similar deve ter ocorrido naquele áureo maio de 1888.

Insuficientes esses entornos simbólicos, os “nossos heróis”, como são classificados os maridos pelos apresentadores, ainda “têm o desafio” – deles, não delas, registre-se – de lidar com o cotidiano da família abdicando dos papeis das mulheres como mães, esposas e, evidentemente, como trabalhadoras domésticas. O enredo do quadro, que se pretende síntese da realidade privada nacional, insiste que a intenção é valorizar a multifuncionalidade feminina.

Complementando a produção ficcional-jornalística, é convocado, para narrar as histórias, o personagem Cadinho, o polígamo personagem de Avenida Brasil ainda encarnado em Alexandre Borges. É a cereja do bolo de uma operação de assujeitamento das mulheres que finaliza com o destino outorgado às homenageadas: o spa – claro, porque, afinal, se existe outro dever intrínseco à condição feminina é o redobrado cuidado com a estética.

A intenção expressa do programa-âncora dominical da Globo em favorecer as mulheres como sujeitos “indispensáveis” tinha um caminho de mais fácil execução e com maior chance de êxito: deixar de veicular, durante tantas ou mais semanas, esquetes do Zorra Total que as estigmatizam; vetar publicidades que fetichizam cervejas como sinônimos de devassos objetos sexuais; ou, ainda, tratar, jornalisticamente, de temas interditados como a descriminalização do aborto com o rigor, a relevância e a seriedade que merecem.

Enquadrar mães-esposas como necessárias ao bem-estar de um lar do macho ou mercantilizar trabalhadoras domésticas não são indicativos de respeito, mas sim de desvalorização de direitos e de violência simbólica.

Daniel Fonsêca, jornalista e membro do Coletivo Intervozes, está doutorando em Comunicação e Cultura (UFRJ).

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