Mídia avança sobre “A Voz do Brasil”

O Projeto de Lei nº 595, de 2003, que estabelece a flexibilização da transmissão do histórico programa radiofônico A Voz do Brasil (VB) encontra-se à beira da aprovação pelo Congresso Nacional. Após um silencioso trâmite, a versão atual do projeto, de autoria da deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC), permite que a VB seja veiculada entre as 19 e 22 horas – e não mais somente às 19 horas – pelas rádios privadas. As emissoras de órgãos públicos seguem com a antiga obrigação, com exceção aberta às transmissões ao vivo do plenário das casas legislativas. 

“A VB foi importante no momento em que a rádio era o único meio de comunicação. Mas, com a internet, com a notícia em tempo real, não faz mais sentido impor ao cidadão o que ouvir. Quem está no trânsito às 19 horas quer notícias do momento. E 19 horas em Brasília não são19 horas em qualquer lugar do Brasil. Às vezes são 16 horas no Acre”, afi rma a deputada acreana, que diz não ser contra a VB e vê em seu projeto um incentivo para o programa se renovar. A parlamentar utiliza uma pesquisa encomendada pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), de 2008, para afi rmar que a audiência das rádios cai de 19,42 para 2,44% quando a VB entra no ar.

Interesse comercial

Interessada em explorar comercialmente o horário que atualmente é ocupado pela VB, a Abert joga todas as suas fi chas para combater o que considera autoritarismo. A entidade gravou uma declaração da deputada Almeida que será veiculada em mais de 400 rádios para dar prosseguimento a sua campanha em defesa da mudança. Para a deputada, não há contradição nesta aliança com os donos dos grandes meios de comunicação. “Acho que a gente não tem que ter medo das alianças desde que elas sejam para democratizar a informação”, salientou.

Entretanto, há diversas críticas que apontam que o projeto só reforça a histórica predominância do interesse comercial, em detrimento do interesse público, na área da comunicação brasileira.

“Quem tem feito um lobby forte são os donos dos meios de comunicação, com uma predominância da região sudeste, que querem que a audiência se adeque aos interesses de sua programação. Eles não se submetem a nenhuma fiscalização e tudo é pretexto para dizer que se atenta contra a liberdade de expressão, da qual eles nunca foram defensores, a não ser a liberdade deles. Mas esse é um serviço público e não pode depender do mercado. É um dos programas de caráter mais democrático e universal desse país. Eu sou do nordeste e sei bem”, rebate a deputada e coordenadora da Frente Parlamentar em Defesa da Liberdade de Expressão, Luisa Erundina (PSB-SP).

De acordo com a pesquisa Hábitos de Informação e Formação de Opinião da População Brasileira II, disponível no site da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), realizada em dezembro de 2010, 75,9% da população afi rma ser ouvinte de rádio, dos quais 56,3% consideram importante ou muito importante a veiculação da VB e 22,7% (mais de 31 milhões de pessoas) costumam acompanhar o programa.

Quanto à obrigatoriedade de sua transmissão, a maioria, 47,4%, discorda. Entretanto, há uma grande discrepância entre as regiões do país. No Norte, 60,1% concordam com a obrigatoriedade, no Nordeste 49,8%, no Centro-Oeste 50,8%, no Sul 36,1% e no Sudeste 31,4%. Ou seja, quanto mais rica a região, menor o interesse, como sugeriu Erundina.

O deputado Valmir Assunção (PT-BA), oriundo das lutas do campo, vai na mesma linha: “Para quem vive no interior, no meio rural, nos assentamentos da reforma agrária, esse programa, exatamente no horário veiculado, é praticamente a única forma de ter notícias de Brasília, do poder público. As concessões de rádio e TV são públicas e a sociedade tem o direito de manter esse instrumento no horário que lhe é pertinente.”

O pesquisador associado do Núcleo de Mídia e Política da UnB, Chico Sant’Anna, alerta que é falso pensar que a alteração do horário da VB só nas cidades resolveria a questão. “São as grandes rádios transmitidas de São Paulo que são ouvidas de Porto Alegre a Manaus. As rádios nos pequenos municípios não têm potência. E se passar um programa às 21 ou 22 horas no interior já é tarde”, explica.

Serviço público

O jornalista e presidente da TV Comunitária Cidade Livre, do Distrito Federal, Beto Almeida, destaca o papel que só a VB cumpre hoje: “Você sabe que os seringueiros sabem o preço da borracha pela VB? Assim como o prefeito, os Conselhos de Educação Municipais ficam sabendo da liberação da verba do FNDE [Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação], assim como os pescadores ficam sabendo dos recursos para os períodos de defeso. É serviço público, um instrumento de transparência, que pode ser aperfeiçoado. Já a imprensa comercial transmite informações contra os poderes públicos, contra os programas de saúde, contra projetos sociais”.

Apesar de afetar diretamente os interesses do governo, a Secom – procurada diversas pela reportagem – não enviou qualquer posicionamento sobre o projeto.

Beto Almeida lembra ainda a importância do programa para a diversidade de informação no país: “Durante todo o período da ditadura militar o único veículo que não foi submetido a censura prévia no Brasil foi a VB. Ali as oposições podiam falar aquilo que a imprensa tradicional não falava, porque ou estava censurada ou pactuava com o poder. Ao contrário do que dizem seus críticos, a VB tem muito mais pluralidade do que o noticiário do Jornal Nacional.”

Risco de extinção

Um manifesto lançado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), a Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e a Federação Interestadual de Trabalhadores em Empresas de Rádio e TV (Fitert) alerta que a fl exibilização da VB pode ser o primeiro passo para sua extinção, “considerando a inexistência de qualquer capacidade fiscalizadora dos órgãos competentes”.

Para Sant’Anna, a Abert pretende diminuir a audiência do programa, preparando o terreno para pedir sua extinção no futuro, se eximindo da última das três obrigações contratuais – contrapartidas da concessão pública – que as emissoras de rádio tinham que cumprir no Brasil. “A primeira foi o Projeto Minerva, um programa de 30 minutos de educação à distância, transmitido depois da VB. A Abert conseguiu trocar uma obrigação legal por spots de TV para fazer a campanha institucional do MEC. A outra contrapartida abolida foi a veiculação de campanhas de caráter social, que todas as emissoras de rádio e TV tinham que fazer durante 20 minutos por dia. Hoje, para fazer uma campanha de vacinação do sarampo, por exemplo, o governo é obrigado a gastar milhões. Assim, as emissoras foram pouco a pouco deixando de cumprir seu papel social”, concluiu.

Versão inicial previa transmissão na TV

A primeira versão do Projeto de Lei (PL) 595, da deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC), apresentado à Câmara dos Deputados em 1º de abril de 2003, tinha como foco “estender a obrigatoriedade de transmissão da Voz do Brasil às emissoras de televisão”. “Para tornar factível a proposta” – dizia o texto do PL – a flexibilização de seu horário de exibição foi prevista para o período das 19:30 às 00:30 horas.

Em 2004 e 2005 mais dois PLs (o 4.250 e o 5.123) que também pretendiam a afrouxar as regras sobre a VB foram acrescidos a este trâmite. Ainda em 2005, o relator do trâmite na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), José Rocha (PR-BA) condensou estes PLs, desconsiderando a extensão da obrigatoriedade para a TV, tratando apenas da flexibilização: agora a VB poderia ser transmitida das 19 às 22 horas. “Não vemos necessidade de ampliar a veiculação da Voz do Brasil, uma vez que, nos últimos tempos, foram criados outros mecanismos de divulgação das ações dos Poderes da República, tais como a TV Câmara, a TV Senado e a TV Justiça, sem falar que a Radiobrás já dispõe de canais de televisão há muitos anos”, justifi cou o relator.

No ano eleitoral de 2006, o PL foi aprovado pela CCTCI, em 10 de maio, e pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), em 11 de julho. Este período é conhecido como “recesso branco” no Congresso Nacional, uma vez que muitos deputados já estão tratando de suas reeleições.

Para evitar que o projeto passasse diretamente ao Senado, o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) apresentou o requerimento 303, solicitando a apreciação da matéria pelo plenário da Casa, com a assinatura de 62 deputados – de acordo com o regimento interno, eram necessárias 51, ou seja, um décimo da Câmara. Entretanto, antes de ser considerado pela Mesa Diretora, 13 deputados solicitaram a retirada de suas assinaturas, inviabilizando o requerimento. De acordo com uma fonte de dentro do Congresso Nacional, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) utilizou todos os seus mecanismos de pressão e sedução em ano eleitoral para convencê-los, com atuação destacada de sua ala sulista. Destes 13 deputados, seis eram do Rio Grande do Sul e Santa Catarina: Alceu Collares (PDT-RS), Enio Bacci (PDT-RS), Érico Ribeiro (PP-RS), Luis Carlos Heinze (PP-RS), Pastor Reinaldo (PTB-RS) e Zonta (PP-SC).

Até o fechamento desta edição, três Requerimentos de Inclusão na Ordem do Dia – cujo objetivo é colocar a matéria na pauta de votação do plenário – foram apresentados. Jaime Martins (PRMG) apresentou o primeiro requerimento em 28 de agosto deste ano, Eliane Rolim (PT-RJ) fez o segundo em 22 de setembro e Jerônimo Goergen (PPRS) o terceiro, em 5 de outubro. Georgen e Martins salientam em seus requerimentos que tal projeto “conta com a chancela das emissoras de rádio e televisão do meu Estado” e “de todo o Brasil”. De acordo com a autora do projeto, a deputada Almeida, o presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS), prometeu votar o texto até o próximo dia 20 de outubro.

 [publicado no Jornal Brasil de Fato ]

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