Cultura indígena e os meios de comunicação

[Título original: Cultura indígena e mídia]

Severiá Idiorié nasceu em um antigo território Karajá, próximo ao vilarejo de São José dos Bandeirantes, no Goiás. Aos sete anos de idade se mudou para Goiânia a fim de se dedicar aos estudos. Formada no curso de Letras Modernas, na Universidade Católica de Goiás, aos 25 anos mudou-se para a aldeia Wederã, localizada na Terra Indígena Pimentel Barbosa, em Canarana, Estado do Mato Grosso, onde atua como educadora.

A veiculação da cultura indígena na mídia ajuda a difundir os costumes e ideais do povo?
Sim, há cerca de 20 anos o pessoal da minha aldeia, Wederã, começou a trabalhar com a questão da imagem, do que nós queremos manter vivo por meio de vídeos e documentários que são feitos. Temos videomakers da comunidade que captam imagens do nosso cotidiano, na tentativa de relativizar o diálogo entre os povos. Através de um edital do Ministério da Cultura, que incentiva a nossa própria produção, fizemos umas trilhas e vídeos, como a Nutrição e Saúde Xavante, que é um trabalho que resgata a alimentação da mulher xavante. Há também o “Darini – Iniciação Espiritual Xavante”, de Caimi Waiassé e Jorge Prodoti, que foi selecionado pela 29ª Mostra de Cinema de São Paulo e ganhou o prêmio de melhor documentário indígena na Mostra de Cinema da Cidade do México. Outros documentários foram feitos e em algumas entrevistas o cinegrafista se aproximou mais do povo indígena, mostrando que a única diferença é a cultura, mas que todos querem educação, saúde e alimentação melhor no Brasil.

Por outro lado, de que maneira a aldeia é influenciada pela mídia?
Viver isolado ou não para o meu povo é o seguinte: por mais que a gente quisesse ficar só nas aldeias, já não é mais possível. A Funai [Fundação Nacional do Índio] e outras políticas que estão sendo feitas no Congresso visam preservar a cultura indígena, no entanto por mais que exista essa preocupação, tem alguns momentos que não conseguimos evitar esse acesso. Quando isso ocorre conosco, há o mesmo efeito que nas comunidades não-indígenas. Nossos jovens, por exemplo, vão achar mais interessante ver um filme do que o jornal e maior paciência para ouvir músicas, do que um noticiário no rádio. Dentro da nossa comunidade, levamos para as escolas textos e livros que despertem questionamentos e análise do que vai servir desta nova cultura. A preocupação do cacique é de sempre abrir espaço para esses diálogos e de que os jovens sejam aconselhados pelos mais velhos e professores. A comunidade inteira tenta fazer esse “conselho social”, sobre o que é positivo para nós usarmos.

Isso altera a dinâmica da cultura?
Em alguns lugares, sim. No caso o que acho mais perigoso, é a questão da roupa, a nudez não é um problema, desde que você a observe de um ponto de vista cultural, mas, quando a nudez é vista pelo olhar do fálico, do não-índio, isto é perigoso. Porque a gente não olha para certas partes do corpo do outro, como os seios e as genitálias como objetos de desejo, você acaba introduzindo novos valores. Tem outra questão importante nisto, que é em relação ao individualismo. Em algumas comunidades, o dinheiro já não é mais um bem coletivo, e sim um bem individual. Isso se torna um processo capitalista: se antes a caça e a pesca eram repartidas entre todos, agora, quando o assunto é dinheiro, que não é um bem próprio da comunidade, os índios dão o mesmo valor que o não-índio. Eles pensam que se trabalharam e conquistaram aquilo, vão repartir somente com a minha família e os mais próximos. Isso é perigoso porque o dinheiro levou pobreza a alguns povos. Os índios pensam que todos os brancos são ricos, com cinco ou seis carros na garagem, morando em uma bela casa, com a geladeira sempre cheia e que com estas riquezas eles são felizes.

A introdução destes novos valores traz quais consequências à aldeia?
Há várias histórias de estupros e de raptos que ocorreram ao longo do tempo e fizeram com que a comunidade indígena criasse estereótipos de que os homens brancos são maus. Por exemplo, quando uma criança faz malcriação algumas pessoas da tribo dizem: “se você não ficar quieto, o branco vai vir te pegar e te levar embora”. Daí, nós temos que falar que não são todos os brancos que vão chegar, raptar e levar embora nossos filhos. É uma relação dialética entre os povos. Passa por aquilo que alguns estudiosos chamam de “o caminho do conhecimento”: ele passa pelo pensar, pelo sentir e pela ação. Então como é que você vai fazer isso e de que maneira transmitiremos essa aprendizagem? Falamos para eles observarem as pessoas que nos visitam, que geralmente são funcionários da Funasa [Fundação Nacional de Saúde] ou da Funai, ou é uma pessoa que veio fazer um trabalho de mestrado ou doutorado. Essas pessoas chegam e traem respostas paras os questionamentos deles e os nossos.

Sendo assim é importante registrar e exibir ritos, festas e manifestações do povo indígena?
É importante desde que a comunidade não-indígena deixe claro qual é o objetivo daquele filme, o que eles pretendem mostrar, de que maneira isso será apresentado. Os ritos, que são ritos mesmo, de segredo e tudo mais, não são mostrados, e outros temas que achamos que não serão compreendidos pelas comunidades não-indígenas, nós não gravamos, nem autorizamos sua reprodução. Eu acho que a comunidade tem de ter essa preocupação de conviver com as outras pessoas, pois elas saem enriquecidas com esses trabalhos. Temos alguns cinegrafistas de origem xavante que captam imagens que mostram que nem todo homem branco segue o estereótipo criado pela mídia, este outro lado diminui o nosso preconceito.

Atualmente com essa questão da convivência, do viver junto, as relações entre o índio e o não-índio estão mais estreitas, ou ainda estão muito distantes do ideal?
Para algumas pessoas esta relação está muito próxima, mas para outras não. Então não dá para fazer algo quantitativo. Antes, as pessoas tinham a gente como objeto de pesquisa, como seres de uma realidade muito distante, mas esses núcleos de educadores e de formadores de opinião já não possuem mais esta imagem do índio. De onde eu venho, nós temos uma filosofia de que, se em um diálogo com um grupo de dez pessoas, ao menos um refletir sobre o assunto, já é algo significativo. Dependendo do que ela pensou e foi tocada, ela começa a agir. Por isso, evoluímos em algumas questões e em outras, não. Quando há a conscientização de que todos somos seres humanos, iguais nesta questão do biótipo, mas diferentes somente na visão de mundo, na maneira como educamos nossos filhos, tendemos a gerar uma convivência pacífica. Mas isso não quer dizer que os conflitos acabaram, aliás, o conflito até acrescenta, desde que ele não seja armado, apenas ideológico.

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