Não poderia ser diferente. A décima edição do Fórum Internacional de Software Livre (Fisl), realizado em Porto Alegre durante a semana passada, dedicou boa parte das suas discussões às chamadas leis de prevenção e controle de cibercrimes que se multiplicam mundo afora e também no Brasil. A maior preocupação é que estas leis abram espaço para o policiamento de conteúdos e a criminalização de atividades corriqueiras na rede mundial de computadores.
Projetos de lei que impõem diversas formas de controle sobre o uso da internet já estão em discussão em alguns países como Canadá, Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia, Suécia, dentre outros. A França foi o primeiro país europeu a aprovar, em maio deste ano, uma lei que estabeleceu a suspensão do acesso à rede para pessoas reincidentes em “downloads ilegais”. A lei foi parcialmente modificada pelo Tribunal Constitucional francês, que impôs a obrigatoriedade de o processo que leva à suspensão passar antes pela Justiça.
No Canadá, um projeto de lei apresentado na última quinta-feira (25) visa obrigar os provedores a colaborarem com o armazenamento de dados sobre atividades feitas pelos usuários.
Para os ciberativistas, o conjunto destas propostas e também o crescente número de processos por “download ilegal” contra indivíduos e também contra empresas, como o caso do grupo sueco Pirate Bay, representam uma ofensiva mundial contra a liberdade na internet. Segundo Marcelo Branco, coordenador geral do 10º Fisl, em entrevista à agência de notícias do próprio evento, essa ofensiva teve início há oito anos com a assinatura da Convenção de Budapeste sobre o Cibercrime. Curiosamente, ressaltou Branco, a convenção aconteceu em um período marcado pelo medo, dois meses após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001.
Segundo Oona Castro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, a ofensiva na criminalização dos usuários de internet que realizam downloads é mundial e precisa ser contida. “Em todo o mundo, há setores querendo criminalizar usuários que fazem download e em diversos países estão conseguindo num primeiro momento. Temos que lutar para impedir que propostas como essa, revestidas por qualquer capa bonita que seja, sob justificativas as mais puritanas, ganhem legitimidade.”
O Brasil não está entre os 40 países signatários da Convenção de Budapeste, o que não isenta os usuários brasileiros da internet de ameaças à livre navegação. Tramitam no Congresso Nacional dois projetos de lei que tratam da tipificação dos cibercrimes. O mais recente é o PL 5361/09, de autoria do deputado Bispo Gê (DEM-SP). Ainda em estágio inicial de tramitação, o projeto é claramente inspirado na Lei Sarkozy e praticamente criminaliza todo tipo de download. O PL teve um relator recentemente indicado na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI).
Urgência
Mas os ciberativistas centram fogo no PL 84/99. Em estágio avançado de tramitação, a versão feita pelo senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) foi aprovada no Senado e voltou à Câmara dos Deputados, onde avaliado por três diferentes comissões em regime de urgência. O “PL Azeredo” trata de diversos outros aspectos que não só os “downloads ilegais”. Questões como o armazenamento de dados do usuário pelos provedores por três anos (tempo muito superior ao acordado, por exemplo, na Convenção de Budapeste) ou a criminalização de quem baixa música na internet, na opinião dos ciberativistas, pode representar um risco à liberdade dos usuários da rede, ao invés de promover a segurança.
Relator do projeto na CCTCI, o deputado Júlio Semeghini (PSDB–SP) afirmou ao site Tele.Síntese que há a possibilidade de o texto que veio do Senado ser abandonado. Segundo o deputado, há questões – como a guarda de logs pelos provedores – que precisariam receber nova redação. Como um projeto aprovado no Senado não pode ser modificado pela Câmara, a saída seria apresentar um novo PL.
Dias antes destas declarações, Semeghini afirmou à Agência Câmara que parte substancial do PL Azeredo está sendo objeto de acordo e o projeto deverá ser encaminhado para votação ainda em agosto. Segundo o relator, seriam motivo de polêmicas, além da questão dos logs, a tipificação de crimes como acesso não autorizado a sistemas informatizados e a difusão e inserção de códigos maliciosos, com o objetivo de causar danos ou obter informações sigilosas das pessoas.
Lula diz ser contra
A disposição do Congresso em aprovar um PL de natureza restritiva ao acesso à internet contrasta com as declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no 10º Fisl. Lula, que foi o primeiro chefe de Estado a participar de uma edição do Fórum, agradou os participantes do evento ao iniciar sua fala afirmando que “neste governo, é proibido proibir”.
Ainda segundo o blog Circuito Integrado, Lula teria dito que “a lei que está aí [referindo-se ao PL 84/99] não visa proibir abuso de internet. Ela quer fazer censura”. O presidente defendeu modificações no Código Civil para tipificar questões que envolvem o mundo digital e não “sair fazendo condenações”, porque “esse interesse é policialesco”. Lula ponderou ainda que a maioria dos usuários não pode ser prejudicada por atitudes isoladas de uma minoria.
Os participantes do Fisl fizeram questão de ressaltar que não há complacência com crimes cometidos através da rede mundial de computadores. Sérgio Amadeu, professor da Faculdade Cásper Líbero e um dos mais ativos organizadores dos atos contra o PL Azeredo, defendeu em Porto Alegre a criação de uma legislação para internet que dê conta de compreender a complexidade desse espaço e que, portanto, não provoque cerceamentos. A lei defendida por Amadeu é uma lei de “cidadania digital”, que assegure o direito à comunicação sem vigilância. “A internet não é terra sem lei. Na internet o código é a lei. Uma lei sem vigilância é ideal para que a rede funcione dentro dos princípios de neutralidade e imputabilidade de um terreno de liberdade”, disse Amadeu à agência de notícias do Fisl.
Liberdade e segurança
“Pelo Correto Equilíbrio entre Liberdade e Segurança” [leia na íntegra ] é também o título de um documento produzido por diversos ativistas das comunidades de Cultura Livre e Software Livre. No texto, o PL é considerado um AI-5 digital – em referência ao período mais repressor da Ditadura Militar brasileira. De acordo com documento, os artigos 285-A, 285-B, 163-A, 171 e 22 implantam uma situação de vigilantismo sem impedir a ação dos crackers e, ao mesmo tempo, abrem espaço para violar direitos civis básicos, reduzir as possibilidades da inclusão digital e transferir para toda a sociedade os custos de segurança que cabem aos que lucram com a eficácia proporcionada pela rede.
Ainda segundo o documento, os referidos artigos “não tratam do combate somente à pedofilia, os vírus, os spammers, as intrusões em bancos de dados e o ‘roubo’ de senhas. Visam outros objetivos, por isso, são tão confusos, permitindo várias interpretações. É necessário retirar da Lei sobre Crimes na Internet toda e qualquer possibilidade de seu uso para coibir o avanço da liberdade de expressão e de criação”, diz o manifesto.
A jornalista Mariana Tamari, membro do Coletivo Epidemia, diz que o objetivo velado do substitutivo do senador Azeredo seria tornar suspeitas as redes P2P (intermediadores para troca de arquivos), impedir a existência de redes abertas e reforçar o DRM (Gerenciador Digital de Direitos, na sigla em inglês). “Esse substitutivo, caso seja aprovado, tornará crime inúmeras de nossas práticas virtuais cotidianas. Ele atende fundamentalmente a interesses de bancos que têm sofrido prejuízos com fraudes pela internet e a reivindicações da indústria de direito autoral dos Estados Unidos, que exige a criminalização da quebra de travas tecnológicas”, afirma Tamari artigo publicado pelo coletivo.
Para Oona Castro, combater esses projetos de lei é antes de tudo uma luta por democracia na comunicação e no mundo. “A internet é o meio mais democrático em termos de produção e troca de cultura e conhecimento. Para que ela continue a cumprir o seu papel, temos que garantir que os nossos direitos como usuários sejam regulamentados: a privacidade, o direito de acesso, a universalização da banda larga. Essas são as matérias importantes para a comunicação democrática.”
O risco de que essas leis transformem a internet em mais um veículo de recepção e com interatividade limitada é alto. “Já tivemos outras oportunidades de democratizar a informação com canais mais interativos. O rádio, por exemplo, nasceu interativo, mas a sua regulamentação tornou-o o que é hoje: o espectro foi dividido pelas empresas e nós só ligamos o aparelho”, lembra Oona. “Não podemos abrir mão da internet como instrumento que nos permite, mais e mais, exercer o direito à comunicação.”
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