Ministério e Anatel não se entendem sobre rádio digital

O Ministério das Comunicações e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) não vêm se entendendo muito bem sobre a definição do padrão de rádio digital a ser adotado no Brasil. O ministro Hélio Costa afirma que a decisão sobre a tecnologia a ser adotada ocorrerá ainda no segundo semestre a partir dos testes feitos por empresas privadas e avalizados pelo órgão regulador. Só que o ministro, ao que tudo indica, esqueceu de combinar com a agência reguladora. A Anatel informa que não tem acompanhado tais testes e ainda espera receber informações do ministério.

Em 24 de junho, Costa declarou que até setembro deverá enviar ao presidente Lula o parecer que definirá a escolha do Executivo — provavelmente o norte-americano HD Radio IBOC para as faixas AM e FM e o padrão europeu DRM (sigla para Digital Radio Mondale) para as transmissões em Ondas Curtas. Em entrevista ao programa “Bom dia, ministro”, da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), Costa disse ainda que testes recentes feitos pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) teriam sido acompanhados por “diversas entidades”, incluindo o Instituto Mackenzie, de São Paulo, além do Ministério das Comunicações e da Anatel.

Na tentativa de entrevistar o engenheiro Ara Minassian, superintendente de Comunicação de Massa da Anatel, o Observatório do Direito à Comunicação obteve a seguinte declaração da assessoria de imprensa: “O superintendente não vai falar porque não acompanhou esses testes. Ninguém aqui acompanhou esses testes. O relatório da Abert e do Mackenzie será entregue para nós e, então, faremos o nosso para depois encaminharmos ao Ministério.”

Desde o final do ano passado, o entrosamento entre governo e Anatel não é dos melhores quando a questão da digitalização do rádio vem à tona. Pressionado pelos radiodifusores comerciais, Hélio Costa vem tentando há tempos convencer a agência de que o padrão Iboc é a melhor alternativa para o país. Os engenheiros da Anatel, no entanto, protelam sua avaliação. Eles pedem mais tempo para o desenvolvimento dos testes com as cerca de 20 emissoras comerciais que pediram autorização governamental para realizá-los.

Durante audiência pública na Câmara dos Deputados, em setembro do ano passado, Minassian disse que os resultados até então apresentados à agência não garantiriam tecnicamente a implementação do padrão Iboc. Além de reconhecer as boas resoluções que o padrão DRM obteve em outros países, disse ainda que novas pesquisas poderiam ser pedidas à universidades e centros de pesquisa. Uma das preocupações do engenheiro à época dizia respeito ao alcance do sinal digital.

“Ninguém conseguiu responder se uma rádio analógica, hoje com alcance de 70 quilômetros, cobrirá com o sinal digital essa mesma distância ou se parte dos ouvintes ficará sem o sinal”, afirmou. A preocupação do engenheiro mantêm-se até hoje, já que passados 9 meses o problema não foi solucionado. “No analógico, o normal é atingir até 50 quilômetros de cobertura. No digital, atingimos uns 20 quilômetros. Num raio de 4 a 5 quilômetros vai bem, mas depois começa a esbarrar com outras”, diz o engenheiro Alfredo Marcouizos, do grupo CBS de São Paulo.

Sem critérios públicos

É bom lembrar que em março de 2007 a Anatel abriu consulta pública para definir a metodologia a ser utilizada nos testes feitos com o Iboc-AM. Além dos resultados não terem sido divulgados até hoje, sequer foram abertas consultas públicas para a metodologia de testes com FM e Ondas Curtas. “Não há parâmetros públicos. As consultas públicas da Anatel sinalizaram uma política de Estado para se ter regras mínimas para a realização de experimentos. Mas o que o Ministério faz? Terceiriza os testes para a Abert, diz Diogo Moyses, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. “Ou seja, o Estado brasileiro não vai ter opinião. Se a Abert disser que tudo bem, então o Iboc será o escolhido.”

Se ainda não há plena aceitação dos radiodifusores comerciais com o padrão norte-americano, as poucas experiências feitas com o padrão DRM no Brasil também ainda não foram concluídas. Os testes, iniciados ano passado pela Universidade de Brasília (UnB), sob coordenação do professor Lúcio Martins, foram praticamente abandonados. “Foram feitos testes em Ondas Curtas e Médias (AM), sendo que os de Ondas Médias foram interrompidos no meio do processo. Precisaríamos de mais tempo e seriam necessários mais testes”, diz Martins.

Para ele, o argumento do Ministério das Comunicações e da Abert de que o Iboc é o único sistema que opera em FM, já não tem mais sustentação. “O consórcio DRM elaborou um sistema para o FM, que transmite analógico e digital juntos, que não está sendo considerado. Ele foi testado em alguns países da Europa e tudo indica que seja um sistema mais flexível que o americano”, diz.

Para este ano, porém, o professor não acredita que os testes na UnB serão reiniciados. “Não há vontade por parte do Ministério das Comunicações. Ano passado, a UnB tomou a iniciativa e entrou em contato com o consórcio europeu para a realização dos testes. Agora, não temos mais recursos e a Universidade não tomará mais a iniciativa”, completa.

Testes sem isenção

Já que ainda há testes de emissoras comerciais com o Iboc que não foram entregues à Anatel e que os experimentos com o padrão DRM foram desconsiderados pelo mnistério, a solução emergencial apresentada por Hélio Costa e Abert foi recorrer ao Instituto Mackenzie, de São Paulo. De março a junho deste ano, foram realizados testes de campo nas cidades de São Paulo, Ribeirão Preto e Belo Horizonte, comandados por Ronald Barbosa, engenheiro de telecomunicações da Abert, e acompanhados pelo Laboratório de TV e Rádio Digital do Mackenzie.

Os testes feitos com o padrão Iboc em AM e FM já foram concluídos e estão em fase de finalização dos relatórios. Segundo matéria publicada no site da Abert no dia 30 de junho, os resultados finais serão entregues nas próximas semanas.

Se a intenção da entidade é clara, as dúvidas em relação aos testes ficam por conta da participação do Instituto Mackenzie. “O professor que vem conduzindo os trabalhos lá é uma pessoa séria, mas talvez ele esteja sendo muito cauteloso. Ele não vai querer bater de frente com os interesses da Ibiquity (empresa proprietária do Iboc)”, diz o colunista do jornal O Estado de São Paulo, Ethevaldo Siqueira. “Sabe-se que ele vai registrar os problemas, mas as conclusões serão redigidas pela Abert e aí não há isenção.”

Para Diogo Moyses, do Intervozes, a Abert pode elaborar quaisquer tipos de pareceres, sejam eles jurídicos, técnicos, e enviar ao ministério. “O que não pode é o Estado brasileiro aceitar tais relatórios como definidores para a decisão pelo padrão. A Abert é um grupo de interesse, ela não representa o interesse público”, diz.

Para a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), uma decisão arbitrária, se concretizada, deverá resultar em ações do Ministério Público Federal. “Essa pressa sem necessidade vai permitir que se consigam decisões judiciais para barrar isso. Vai atingir a questão do direito do consumidor, do livre mercado. É ilegal”, diz Joaquim Carlos Carvalho, ex-assessor jurídico da entidade. “O padrão Iboc não atende os interesses da sociedade brasileira”, avalia.

Problemas para as pequenas emissoras

Carvalho refere-se ao fato de que a tecnologia desenvolvida pela Ibiquity para o Iboc “seqüestra” espectro. Para transmitir uma programação em FM hoje, o sinal analógico ocupa uma faixa de 200 khz. A transmissão no padrão Ibco deverá ocupar uma faixa de 400khz. “Haverá desperdício de banda com o Iboc”, afirma Lúcio Martins.

Para o professor da UnB, o FM desenvolvido pelo padrão europeu – que, em princípio, ocuparia uma faixa de 100 khz para cada programação – deve ser melhor estudado justamente para evitar essa maior concentração do espectro e a conseqüente eliminação da possibilidade de entrada de novos atores. “A questão é que no Brasil a decisão política poderá se sobrepor aos fatores técnicos. Se isso acontecer, boa parte da população sairá prejudicada, inclusive boa parte dos radiodifusores”, analisa.

Carvalho compartilha da mesma opinião. Para ele, a defesa do padrão americano não está sendo feita pela entidade Abert, mas sim por um grupo dominante na associação. “Acredito que os pequenos e médios radiodifusores, que são maioria na Abert, não estejam acompanhando essa discussão. O grupo que está no poder não deve estar repassando informações do que realmente pode acontecer com a maioria, que não vai ter dinheiro para a transição”, diz.

A título de exemplo, a tese de mestrado “Implantação do Rádio Digital no Brasil: Testes, Impacto e Perspectivas”, da jornalista Patrícia Rangel, defendida na Faculdade Cásper Líbero em 2007, mostra bem o tamanho do obstáculo. O investimento total realizado pela Rádio CBN, de São Paulo, para a transição, chegou a US$ 150 mil, o equivalente a cerca de R$ 240 mil. Detalhe: nem mesmo a emissora comercial conseguiu financiamento e teve que arcar todas as despesas com recursos próprios.

Dúvidas sobre a demanda

Além da preocupação com o preço dos transmissores, há ainda o fator produção em escala. Se a tecnologia Iboc for mesmo a escolhida, o preço dos aparelhos receptores poderá chegar a R$ 400,00 e, se não houver interesse na compra, o preço não diminuirá com o passar do tempo. “O usuário ainda não vê nenhuma vantagem no digital. Eu entrevistei alguns ouvintes e eles não estão interessados em comprar um novo rádio digital”, diz Ethevaldo Siqueira.

Para demonstrar a dificuldade que será a produção em grande escala dos aparelhos digitais, Siqueira apresenta os números nos EUA, pátria mãe do IBOC: “Das 15 mil emissoras que atuam lá, 90% não aderiram ao padrão. Apenas 2% dos consumidores compraram o HD Radio. A Ibiquity não consegue massificar a produção”, diz.

Mesmo que o governo brasileiro ofereça subsídios aos radiodifusores ou às empresas fabricantes de receptores no Brasil, os problemas técnicos referentes ao padrão persistem (saiba mais ) e dificilmente serão solucionados no curto prazo.

Mas perguntas anteriores precisam ser feitas, segundo Diogo Moyses, do Intervozes. “Na TV Digital você tinha um processo de digitalização mundial acontecendo. No rádio não há nem isso”, avalia Moyses, lembrando ainda que em nenhum país a digitalização do rádio avançou simplesmente porque não há demanda. “As próprias pesquisas andam a passo de tartaruga porque não há demanda, não há justificativa para uma migração para o rádio digital que mantenha o mesmo modelo que nós temos hoje. Qual o interesse público na digitalização do rádio hoje no Brasil?”, pergunta.

0

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *