A Lei Roaunet e a produção cultural

Em entrevista ao Cultura e Mercado, o diretor do grupo de teatro Folias, Marco Antonio Rodrigues, avança na discussão sobre a lei de incentivo à cultura e adverte: “Quem vai faturar em breve essa bolada toda de R$ 1 bi são as produções internacionais”.

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Fale um pouco de seu grupo, o Folias…

Marco António Rodrigues – O grupo fez 10 anos em 2007, é resultado do trabalho de algumas pessoas que trabalhavam eventualmente juntas, eu, o Dagoberto Feliz e Reinaldo Maia. Em 1997 ganhamos um prêmio de estímulo do governo do estado pra montar um espetáculo chamado “Folias Felinianas”. Eu sempre fui muito avesso a esse negócio de grupo, porque sempre implica em uma promiscuidade familiar, tem um lado muito perverso, mas naquele momento a gente topou. A partir daí, constituímos o grupo Folias. Nosso espaço atual, chamado Galpão do Folias, era uma igreja abandonada, fica próximo ao metrô Santa Cecília. Estamos lá desde 2000. O Folias é um grupo que desde o início se constituiu como um coletivo de artistas, que pensa a arte como um fator de cidadania e interferência na vida do país. Eu sou um dos diretores artísticos e um dos fundadores do grupo, trabalho ainda em vários lugares sou professor do Teatro-escola Célia Helena, e funcionário da Funarte, desde 1987, como profissional de artes cênicas. 

Qual sua opinião sobre a atuação do Celso Frateschi à frente da Funarte?
MAR – Sou amigo do Frateschi, é um cara que respeito muito, que tem uma trajetória digna, foi secretário de Cultura de Santo André, na mesma época que eu fui secretário de Cultura de Santos. Dialogávamos bastante naquela época. Aliás, sua gestão foi estruturante pra região. De modo geral, sua atuação começou a instalar e discutir um modelo de arte que o Brasil nunca teve em 500 anos, que vê a arte como uma identidade autônoma, e não como agregada a algo. Diferente de outros povos, o teatro aqui é resultante de uma intervenção canônica, uma intervenção basicamente jesuítica, ou seja, doutrinadora, moralista determinante de alguma coisa. Acho que pensar nessa autonomia é fundamental em toda essa discussão sobre a Lei Rouanet. Coisa que eu não vejo acontecer. Discute-se a questão do mercado, da grana, do negócio, mas, a questão da autonomia da arte, não vejo no debate.

Os espetáculos do grupo Folias utilizam Lei Roaunet?
MAR – Durante os dez anos do grupo sempre tivemos certificados da Lei Rouanet, e nunca conseguimos nenhum tostão.

Como você interpreta isso? Seria um jogo de cartas marcadas?
MAR – Não acho que seja o caso de cartas marcadas, apesar dos principais favorecidos serem sempre o Itaú Cultural e a Fundação Roberto Marinho. Creio que o problema está na estrutura pré-iluminista. A questão do mecenato no mundo nasce como? Primeiro, através da religião, depois quando a religião deixa de ser estado isso se transfere pro sangue azul que é a nobreza, que é quem financia de fato o artista, depois entra numa zona de autonomia quando começa a surgir o capitalismo. E quando o estado passa a ser Republicano ele assume por herança esse papel do mecenato.

É esse o papel iluminista?
MAR – Sim, é na verdade o que estamos discutindo. Está aí o atraso. Eu conheço vários mecanismos no mundo, por exemplo, a lei inglesa, a lei russa a legislação portuguesa, conheço várias legislações. Mas não conheço nenhuma, em nenhum país, que apóie 90% do fomento às artes públicas ou à cultura baseado numa lei de incentivo, isso é único no mundo, como é único no mundo o monopólio privado de mídia eletrônica.

O jornal O Estado de S. Paulo destacou recentemente alguns pontos da Lei Rouanet…
MAR – Sim, aliás, são dados que servem pra orientar qualquer discussão. Primeiro, questionam quem são os grandes incentivadores, ou seja, Petrobrás, Banco do Brasil e Vale do Rio Doce. Em segundo, quem são os grandes captadores, Fundação Itaú Cultural, Fundação Roberto Marinho e por aí vai. São dados importantes pra gente discutir, a questão não é de quem sou a favor ou de quem sou contra. A questão é o que queremos do país. Esses dados são concretos e se repetem durante os 17 anos da existência do incentivo, obra do Collor, essa é nossa herança, que atravessou o governo Fernando Henrique e está atravessando o governo Lula.

Seria um resultante moralista da Lei Sarney?
MAR – Claro, a Lei Sarney foi criada quando o Celso Furtado era ministro da cultura, no governo Sarney, e me parece que a idéia do Celso na verdade não era fazer com que a empresa privada de fato patrocinasse a cultura, até porque o Celso, economista, sabia que há por aqui uma alta dose de burguesia, que o capital sempre foi mais remunerado que o trabalho. Então, o que ele estava tentando na verdade era sensibilizar o próprio estado pra questão da cultura. Ele estava querendo um orçamento de fomento direto. Parece que essa seria a estratégia.

E o que houve com esse projeto desenhado por Celso Furtado?
MAR – Quando o Collor entra em 90, com todo aquele moralismo globalizante é que começa todo o processo de globalização que vai dar na discussão atual da Lei Rouanet. Quando ele inicia seu governo, está todo mundo se beneficiando de uma forma indevida. No início da Lei Sarney, a idéia era que você pudesse chegar na padaria, por exemplo, e com aquele pouco de imposto que o proprietário pagasse, pudesse transferir pra você de alguma forma. A intenção era chegar numa coisa mais capilar.

É bem diferente do cenário atual…
MAR – O que a gente tem hoje em dia é o exato contrário, a lei é absolutamente excludente desde o seu princípio. Quem é que pode abater imposto de renda? Quem pode se beneficiar do incentivo? Só quem paga imposto pelo lucro real. Está eliminado disso o lucro presumido, o lucro arbitrado e qualquer operação de capital. Portanto, se você vende um terreno, uma fábrica e quiser aplicar na lei sua parte do imposto de renda devida não pode, só pode o lucro real. Quem paga o lucro real? As grandes corporações. Quem tem acesso a elas?

Alguns grupos conseguem…
MAR – Eu montei uma peça chamada “O Assassinato do Anão do Caralho Grande”, do dramaturgo Plínio Marcos, por convite da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Qual empresário patrocinaria essa peça, ainda mais com 38 atores em cena? 

E qual a sua opinião sobre essa gritaria em torno da Lei Roaunet?
MAR – A grande gritaria hoje é porque, de repente, pro empresário nacional ficou difícil competir com o empresário internacional. Quem vai faturar essa bolada toda de R$ 1 bi daqui há muito pouco tempo são as grandes produções internacionais, porque São Paulo, Rio de Janeiro, enfim, o Brasil é um mercado interessante.

Pode falar um pouco mais sobre isso?
MAR – Trata-se de um mercado de 200 milhões de habitantes, se tiver 20% com uma boa capacidade de compra já são 40 milhões de pessoas, é quase a população da França. Interessa a qualquer grande evento, como o Cirque de Soleil. E são trazidos pelas empresas daqui, com o dinheiro da Lei Rouanet, como os grandes espetáculos da Broadway que são também produzidos aqui com dinheiro da lei de incentivo.

Essas grandes produtoras dizem que geram emprego…
MAR – É uma piada, ninguém vive de teatro. O que acontece é que o capital nacional hoje já começou a dançar na mão do capital internacional, e a tendência é continuar assim. Esta lei do jeito que está não significa dar tiro no próprio pé, é um suicídio. Ela não favorece ninguém. É uma grande bobagem. É como alguém que vai pescar apenas pra almoçar. Não está pensando como vai ser daqui um mês, um ano, quanto mais em dez anos, ele está pensando no almoço. Se por enquanto consegue pegar um dinheirinho pra montar uma peça, um show, está tudo certo, mas logo nem isso vai conseguir fazer.

Que saída você vê?
MAR – Por causa dessas excrescências, as pessoas começam a ir pro Senado defender, por exemplo, essa Secretaria Nacional de Teatro que é outro equívoco. De que vai adiantar uma secretaria como a Secretaria do Audiovisual? Aliás, outra brincadeira. Quantos longas são produzidos por ano no Brasil? Qual a circulação dessa produção? Qual a distribuição? Praticamente nenhuma. Somente são produzidos porque a primeira imagem que aparece na tela é a do selo da Lei do Audiovisual, patrocinado por Petrobrás, Eletrobrás, Banco do Brasil. Cadê as empresas nacionais? Esta situação se apóia numa fragilidade do governo Lula. Como pode um diretor de marketing mandar mais que o presidente da República na questão cultural? Mas manda.

Você acredita no aprimoramento da lei?
MAR – Devido a tanta posição antagônica, eu creio que precisamos encontrar um ponto comum, mas esse ponto tem que partir de um fundo público. O fundo não é só para grupos de teatro, como a imprensa e a mídia gosta de falar, que estamos defendendo um lado contra outro. Mas tem que ser algo que fomente um desenvolvimento de relevância cultural, que possua um julgamento de mérito, coisa que a Lei Roaunet não tem, por isso entra qualquer coisa. E precisa ampliar e facilitar o acesso. Todo mundo se arrepia quando se fala em contrapartida social, mas deixa passar ingressos a duzentos reais. É a mentalidade “casa-grande e senzala”. Minha sugestão é colocar um pedágio na Lei Roaunet.

O teatro precisa da Lei Rouanet?
MAR – O teatro enquanto arte precisa de um fundo público, eu pessoalmente defendo que a lei seja transformada nesse fundo público, com a participação da sociedade e com a possibilidade de atender a todas as produções. Agora o teatro comercial não precisa de incentivo.

Você acredita que uma Secretaria Nacional de Teatro não é mesmo necessária?
MAR – porque, no lugar de novas secretarias burocráticas não propomos programas específicos para cada segmento cultural? Que capacidade que a Secretaria do Audiovisual teve pra resolver os problemas do cinema? Nenhuma. Vamos fortalecer as estruturas que já temos. É uma bobagem atrasada do ponto de vista da arte, porque as fronteiras entre elas são cada vez mais tênues. O que precisamos é de um órgão que trabalhe pelas artes, e isso nós já temos, que é a Funarte.

*Colaborou Paula Nogueira

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