Otávio Afonso deixa livro como legado em direitos autorais

Direitos Autorais: Conceitos Essenciais. Assim quis o autor que se chamasse sua última contribuição em vida para o direito autoral brasileiro, um livro a ser lançado no primeiro semestre de 2008. Otavio Afonso faleceu no último dia 05, deixando o legado de seu pensamento e de sua experiência de três décadas na gestão pública dos direitos autorais.

Otavio Afonso afastou-se durante quase dois anos da coordenação-geral de direitos autorais do Ministério da Cultura (MinC) para o tratamento de um câncer. Nesse tempo, foi procurado pelo Instituto Pensarte que lhe sugeriu a produção do livro, sua única obra específica em direito autoral, que será publicada pela Editora Manole.

Sistematizado em 12 capítulos, Direitos Autorais: Conceitos Essenciais faz um retrospecto histórico do direito autoral no Brasil e no mundo, traz definições de assuntos elementares, como os direitos conexos e a gestão coletiva de direitos, sendo esta última a área em que é tido como maior referência no Brasil.

Além disso, o livro aponta novas tendências, como a proteção do software e o capítulo dedicado à sua visão sobre pirataria. Sempre com o olhar de quem foi protagonista das principais transformações dos direitos autorais no Brasil.

“A publicação do livro chega a ser uma homenagem a este grande gestor, um dos maiores expoentes do direito autoral no campo do poder público”, afirma o advogado Fábio de Sá Cesnik, sócio da Cesnik, Quintino e Salinas Advogados, e um dos maiores incentivadores de Otávio na produção da obra. “É um marco para o nosso direito autoral: a herança de um defensor incansável dos direitos autorais no país”, conclui.

Direitos e Autores

Primeiro poeta, depois jornalista e funcionário público de carreira. Assim se auto-intitulava Otavio Afonso, que traz nessa obra uma visão não propriamente jurídica do direito de autor, mas oriunda da práxis do direito autoral, resultado de uma militância histórica pela valorização do autor nas relações multifacetadas da propriedade intelectual.  

Para o advogado autoralista Eduardo Salles Pimenta, o livro traz em si, além de técnica e experiência, o ponto de vista humanista de Otavio Afonso sobre o direito autoral. “Ele nunca admitiu que considerassem o autor uma pessoa jurídica em qualquer tipo de negociação. ‘Autor é pessoa física. Eu sou autor!’, ele me dizia. Sua luta sempre foi pela proteção do autor”, relata.

Pimenta organizou uma coletânea de artigos jurídicos em homenagem a Otávio Afonso, lançada no início de 2008 pela editora Revista dos Tribunais. O livro Estudos em Homenagem a Otavio Afonso dos Santos contou com a participação dos maiores especialistas em direito autoral do Brasil, que reverteram todos os direitos autorais para auxiliar no custeio do tratamento do homenageado.

Uma iniciativa que demonstra o respeito e a admiração dos mais diferentes segmentos do direito autoral brasileiro, com quem Afonso mantinha um diálogo “aberto e democrático”, de acordo com o secretário de Políticas Culturais do MinC Alfredo Manevy.

Segundo Priscila Beltrami, advogada autoralista que acompanhou Otávio Afonso em muitas negociações, a razão disso é “o amplo conhecimento que Otávio Afonso tinha da complexa arquitetura de relações que envolvem o direito autoral”.

Habilidade que o ergueu à posição de principal – e durante muito tempo único – representante do Brasil nas negociações internacionais. O exercício da diplomacia e da articulação internacional era cumprida à risca por Otávio Afonso, “grande responsável pela recuperação do protagonismo e do reconhecimento do Brasil no cenário internacional”, segundo o secretário Alfredo Manevy.

Negociador do Brasil na Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) e na Organização Mundial do Comercial (OMC), Afonso se utilizava desse trânsito para angariar adeptos às suas posições, como a de afirmar o direito autoral como elemento estratégico para os países em desenvolvimento. José Vaz, com quem trabalhou na coordenação-geral de direitos autorais do Ministério, exemplifica: “Ele não aceitava que em hipótese alguma se usasse o direito autoral como trade-off [moeda de troca] para outras negociações”.

Guerreiro solitário

Em sua nota de pesar, o Ministro da Cultura Gilberto Gil declarou: “na seara do direito autoral, o país deve muito a esse guerreiro que, durante as últimas três décadas, quase solitariamente, manteve acesa essa discussão”.

E de fato, desde o início de suas atividades na gestão pública, como coordenador de comunicação do antigo Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), em 1979, Otavio Afonso teve grande importância tanto para a formulação de políticas públicas para os direitos autorais como para a preservação do patrimônio nacional nessa área.

Apaixonado pelo assunto, foi o responsável pela recuperação dos arquivos do CNDA, jogados no lixo após sua extinção pelo então Presidente Fernando Collor de Melo, em 1990. José Carlos Costa Netto, presidente do CNDA que convidou Otavio Afonso para o cargo, relembra o fato: “Lembro que o Otávio andava muito triste e sempre passava em frente ao CNDA. Certa vez viu uma caçamba de lixo com todas as atas e livros do Conselho. Fez várias viagens com seu carrinho durante aquela noite toda. Conseguiu recuperar o que pôde do arquivo.”

Quando houve a retomada da Secretaria de Cultura na década de 90, Otávio voltou às atividades na gerência de direitos autorais, sendo praticamente o único representante do governo na área. Situação que o levou a ser também o representante internacional do governo brasileiro em todas as viagens internacionais para tratar do assunto. 

Na gestão Gil, ele assumiu a coordenação-geral de direitos autorais, que ganhou maior respaldo e contribui para o fortalecimento do Estado na regulação e supervisão dos direitos autorais, papel imprescindível na sua opinião.

Para o secretário Alfredo Manevy, o Ministério herda de sua atuação “uma agenda extremamente estratégica do direito autoral, sem a qual é impossível discutir a própria agenda da cultura. Um patrimônio muito sólido e consistente”.

Portando mastros e bandeiras*

Manevy ressalta ainda a importância da opção de Otavio Afonso pelo sentido público dos direitos autorais. Sentido que permeia todo o livro a ser lançado. Otavio Afonso foi histórico defensor do Estado como supervisor das relações que circundam o direito autoral. Por serem estratégicas, tais relações deveriam ser tratadas no âmbito do direito público, e não privado, com os bens em negociação chancelados pelo Estado.

Defendia em suas falas e artigos – muitos deles postados em seu blog http://ocmasr.blogspot.com/ – a criação de um órgão do Executivo específico para os direitos autorais. Especialista em gestão coletiva de direitos, propunha um modelo alternativo ao extinto CNDA, cuja composição servia muitas vezes para acomodar interesses de diversos segmentos, formando, em suas palavras, um “sindicatão”.

Nesse ramo ainda, era crítico à falta de transparência de alguns órgãos arrecadadores de direitos autorais, como o Escritório Central de Arrecadação de Direitos (ECAD). Além de ser crítico também, no outro viés da questão, à visão autoralista que dá muito poder aos intermediários e “empresas da indústria cultural”, em detrimento dos próprios autores, na maioria não beneficiados com o produto econômico de suas obras.

Nesse sentido ainda, reforçava a questão do Estado, defendendo um modelo de radiodifusão pública para beneficiar a veiculação das obras autorais com o devido reconhecimento e financiamento dos autores.

No âmbito internacional, era crítico ferrenho da uniformização dos tratados internacionais, como os da OMPI. Para ele, antes de uma adesão desmedida de modelos-padrão, era preciso que os países, principalmente os subdesenvolvidos, tivessem muito bem regulada a sua legislação interna, de modo que os seus problemas específicos fossem antes solucionados. E citava como exemplo os tratados internacionais de internet, acatados por países que mal possuíam energia elétrica todos os dias.

Otavio Afonso, poeta.

Antes de tudo, poeta. Autor e poeta. Assim foi sua primeira aparição em um órgão público. Um jovem de barbas longas vendendo livros artesanais de poesia. Costa Netto lembra que antes de um gestor  público, contratou um poeta para os quadros do CNDA, nos idos da década de 70.

Otavio Afonso tinha na poesia uma outra vertente do seu trabalho. E mesmo nela, era fiel aos seus princípios autoralistas. Como conta José Vaz, deixou de publicar muitos livros prontos por não se submeter aos termos propostos pelas editoras. Participou de algumas coletâneas de poesias, mas publicou apenas um livro autoral: Cidade Morta, de 1980, vencedor do prêmio Casa de Las Américas, de Havana, Cuba.

Mantinha até o seu falecimento o blog Chão do Adeus (http://ocmas.blogspot.com/), seu “local de degustação de poesias, textos sem outras presunções, mini-contos e lances desconexos do cotidiano que nos habita a alma.”. Esse era Otavio Afonso. Poeta, jornalista e funcionário público.


*

Lição

por todas as coisas aprendidas
inutilmente

por todas as coisas
guardadas no improviso da dor

agora recolho meu próprio vulto
no que permite a solidão
neste duro chão humano

mas me falta o suor
do teu corpo
e a direção dos ventos

(Último poema postado por Otavio Afonso, em 13.05.08, no blog Chão do Adeus)

*verso do poema Desencanto, do blog Chão do Adeus.

 

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