Um estatuto da liberdade de imprensa

Histórica liminar do ministro Carlos Britto, referendada pelo Supremo Tribunal Federal, suspendeu a vigência de diversos artigos da Lei de Imprensa (lei nº 5.250/67). Há tempo, discute-se se os crimes contra a honra cometidos por meio de imprensa devem estar incluídos no Código Penal ou em lei especial. Essa última opção foi adotada pela comissão de advogados instituída pela OAB, sob a presidência do ministro Evandro Lins e Silva, para elaboração de um anteprojeto, em vista das peculiaridades que gravitam em torno do universo da comunicação social. O documento foi publicado no "Diário do Congresso Nacional" de 14 de agosto de 1991, seção II, p. 4.763.

Somente lei específica pode disciplinar adequadamente temas essenciais como: a) a responsabilidade civil e penal (relação de causalidade, autoria e participação); b) o que é legitimado pela Lei de Imprensa (art. 27) e não é justificado pelo Código Penal (art. 142), mais limitado ao estabelecer causas de exclusão do crime; c) o exercício dos direitos de resposta e retificação com peculiaridades próprias; d) os direitos, as garantias e os deveres inerentes a fundação, administração e funcionamento das empresas de jornalismo e radiodifusão; e) as concessões, permissões e autorizações para os serviços de radiodifusão de sons e imagens, bem como os casos de suspensão e cancelamento; f) a efetivação dos princípios constitucionais para a produção e programação das emissoras de rádio e televisão; g) a regra de balanceamento de bens para a aplicação do art. 220 da Constituição Federal, que declara a "plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social", porém determina, no mesmo dispositivo, observar os direitos da personalidade previstos no art. 5º, inciso X, e afirmados como invioláveis: a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.

Não se deve estranhar a proposta de uma lei especial, pois onde não há lei própria, há capítulos e disposições específicas aos crimes praticados por meio da imprensa, como sucede na Espanha. Na Itália, há capítulo próprio no Código Penal e a lei nº 47, de 8 de fevereiro de 1948. Em Portugal, a nova Lei de Imprensa (nº 64/2007) alterou o Estatuto do Jornalista, de 13 de janeiro de 1999. Na França vige, com muitas alterações, a Lei de Imprensa de 29 de julho de 1881.

No campo da permissividade do direito de crítica e de informação, a Lei de Imprensa agasalha a justificativa do interesse público, inadmissível para o crime comum. Como salientava o saudoso Serrano Neves, é da essência da política criticar e ser criticado pela imprensa, visando ao aprimoramento ético e administrativo dos governos. Aspectos da vida privada do homem público podem ser informados pela imprensa, pois se atende a um interesse coletivo.

Além dessas especificidades, há na atual Lei de Imprensa um tratamento mais benéfico no que tange ao direito de ação, pois o prazo decadencial é de três meses e, no crime comum, de seis. Também o prazo prescricional é altamente vantajoso: no direito comum a prescrição, por exemplo, da difamação, segundo a pena mínima, será de dois anos; na Lei de Imprensa, pelo dobro da pena concretizada, será de seis meses.

Argumenta-se que as penas previstas na Lei de Imprensa são superiores às do Código Penal. As penas mínimas são as mesmas em ambos os diplomas: na injúria, um mês de detenção; na difamação, três meses; na calúnia, seis meses. A pena máxima, de rara aplicação, é maior na Lei de Imprensa. Tal se justifica pela maior extensão da ofensa por jornal ou televisão, pois o ataque à honra difundido em veículo de comunicação social alcança número indeterminado de pessoas, o que não sucede em difamação lançada em uma sala ou por carta.

Há, sem dúvida, aspectos ditatoriais na Lei de Imprensa, como o poder de apreensão de jornais ou a incriminação de notícia relativa à segurança nacional, mas não se pode, sob pena de prejudicar a liberdade de imprensa, pretender que o universo da informação jornalística fique limitado ao campo do Código Penal, pois a liberdade de crítica será prejudicada.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama em favor de toda pessoa o direito às liberdades de opinião, de expressão e de procurar, receber e transmitir informações por qualquer meio e independentemente de fronteiras (art. XIX). Não é possível confinar essas generosas conquistas num repertório difuso dos crimes e das penas, sem as cláusulas que lhe garantam efetividade.

* Miguel Reale Júnior, 63, advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP e membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso.

* René Ariel Dotti , 73, advogado, professor titular da Faculdade de Direito da UFPR, foi relator do Anteprojeto de Lei de Imprensa encaminhado ao Congresso Nacional pela OAB (1991).

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