Mídia critica a política, mas faz parte dela

Um somatório de crime e escândalo. Esse é o perfil do noticiário brasileiro hoje. É a mídia fazendo política e dizendo que não faz; afirmando que política é tudo de ruim que existe no País e sendo parte dela, sem assumir-se. Para o pesquisador em Comunicação e Política, Antonio Albino Canelas Rubim, professor na Universidade Federal da Bahia, o problema do sistema de comunicação no Brasil é que ele não mudou desde a época da ditadura – e não existe democracia plena sem democratização dos meios de comunicação.

Crítico contundente da mídia brasileira, Rubim é enfático ao afirmar o caráter elitista da mídia nacional, “pautada pelo preconceito de classe social”. Como exemplo, cita a relação entre a imprensa e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para o pesquisador, a postura da mídia em relação ao presidente da República é extremamente “preconceituosa e arrogante”. Nesta entrevista, o professor fala ainda sobre os benefícios que as novas tecnologias podem proporcionar, mas ressalta que essas mudanças não ocorrerão se a sociedade não ficar atenta à forma de implantação desses novos espaços de comunicação.

Muito se fala sobre a capacidade de influência da mídia sobre a sociedade, principalmente da intervenção na cena política. Qual é realmente o alcance dessa influência? A sociedade é pautada pela mídia? E a política?
Rubim
– Não acredito que a sociedade seja pautada pela mídia. Existem vários exemplos em contrário a dizer que a sociedade é totalmente influenciada pela mídia. É claro que os temas colocados pelos veículos de comunicação se tornam importantes no cenário de discussão da sociedade, no sentido de existir certa influência. Agora, cada vez mais, um conjunto de outros fatores interfere naquilo que a sociedade está assimilando em termos de visões, de opiniões.

O exemplo mais claro, e recente, foi que, na eleição do ano passado, a mídia insistentemente tentou pautar alguns assuntos bastante controversos e indigestos para o governo e o presidente Lula. No entanto, o presidente foi reeleito com uma votação bastante grande, mostrando descompasso total entre o que a mídia afirmava ser a opinião pública – da qual ela sempre se diz portadora – e aquilo que efetivamente as pessoas pensavam. O que não significa que a questão da democratização da comunicação não seja fundamental para a democracia brasileira. É muito difícil imaginar que a democracia possa conviver com esse paradoxo: grande parte da população pensar de uma maneira e os meios estarem caminhando para o outro lado.

Quanto à política, a mídia a influencia das formas mais variadas. Por exemplo, a mídia cria determinados espaços públicos – que no caso do Brasil são pouquíssimo democráticos – de publicização da sociedade. Parte da política precisa muito de visibilidade. A eleição, por exemplo, é, por excelência, publicizada. Então, a política depende muito de visibilidade. Assim, temos uma dependência forte da política em relação à mídia.

Há ainda o que se chama hoje de governabilidade. Quem dá governabilidade a determinado governo? De um lado, ele precisa ter determinadas correlações de forças no Legislativo. Mas não é só a base de apoio parlamentar que dá governabilidade. Se um governo não tem apoio da mídia, ou pelo menos a neutralidade dela, você está o tempo todo correndo o risco de ter uma crise. O próprio governo Lula é exemplo disso, com a mídia procurando problemas o tempo todo para deixar o governo refém, o que afeta profundamente a governabilidade.

Em relação ao caráter centralizador e autoritário da mídia brasileira, podemos citar um dado impressionante. Toda vez que tivemos no poder determinados governos que não era totalmente alinhados com as elites locais – digo totalmente porque às vezes não era nem um governo tão revolucionário assim –, governo Getúlio no segundo mandato, governo João Goulart e agora governo Lula, todas essas vezes a mídia tentou fazer com que eles aparecessem como as gestões mais corruptas da história do Brasil.

Isso não é coincidência, mostra o caráter militante e conservador da mídia brasileira. Basta que não haja um governante dentro dos padrões e dos interesses das elites que a mídia tenta detonar esses governantes. Não estou dizendo que essas administrações não tiveram algum nível de corrupção. Eu até gostaria que fossem diferentes, realmente gostaria que no governo Lula essas derrapadas não tivessem acontecido. O PT dilapidou parte de seu patrimônio.

A partir do episódio das últimas eleições presidenciais, pode-se dizer que a mídia perdeu poder de influência sobre a sociedade? Quem é, hoje, o formador de opinião?
Penso que no Brasil está acontecendo uma transformação subterrânea, que a mídia na sua arrogância e elitismo não tem conseguido acompanhar, e, por isto, vive reafirmando suposições passadas como se ela fosse a senhora absoluta da opinião pública. As mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais que vêm acontecendo nos setores populares, para o mal e para o bem, são a novidade no quadro brasileiro atual. Precisamos estar atentos a elas, estudá-las, sem a pretensão de já saber de tudo que está acontecendo. Há uma profunda mutação nos modos de construção das opiniões públicas no País (sempre no plural). As novas tecnologias têm também algum papel nisto, mas o centro das mudanças está nos setores populares. Ainda não existem respostas prontas neste caso.

Qual sua avaliação sobre o trabalho dos veículos de comunicação em relação aos episódios políticos atuais no País?
Acho que a mídia brasileira perdeu a noção de determinadas coisas. Hoje, se a gente ligar a televisão ou o rádio, ou ler os jornais, são basicamente dois temas que aparecem no Brasil: de um lado, escândalos (e não estou dizendo que os escândalos e a corrupção não devam ser combatidos, eles devem ser combatidos) e de outro, crimes.

O problema é quando esses escândalos substituem a discussão política, e é isso que está acontecendo no Brasil. Em vez de vocês terem um conjunto de informações, de opiniões sobre o que o governo faz, para o bem ou para o mal, e o cidadão poder, a partir dessas informações e opiniões, criar suas próprias convicções acerca do Brasil contemporâneo, o que nós temos hoje é uma supressão de todas as informações e opiniões. Não se discute as políticas implementadas. Não se discute, por exemplo, se o Prouni é correto ou não, se o PAC tem sentido ou não, se o PAC está sendo executado ou não. E aí, a mídia da sociedade brasileira fica discutindo durante meses a questão do nosso presidente do Senado, Renan Calheiros. Tudo bem, é uma coisa que deve ser coberta, mas não pode tomar o status que toma. O único momento em que ele não esteve em cena, foi quando tinha o PAN (jogos esportivos Pan-americanos), porque eles acham que o PAN é mais importante que todas as coisas do mundo. O noticiário brasileiro, hoje, é um somatório de crime e escândalo, como se isso fosse igual a Brasil. É um contra-serviço à democracia brasileira. Inclusive, porque esses meios poderiam estar discutindo de forma extremamente crítica as políticas do governo. Acho isso extremamente desmobilizador para a cidadania.

Há perseguição da mídia ao governo federal?
Eu não tenho dúvida. Mas também de uma parte da sociedade brasileira, particularmente da elite, que não engoliu até hoje ter no poder uma pessoa que venha de outra classe. Lula não foi nenhum governo revolucionário na eleição. Ele tentou o tempo todo contemporizar os grandes ganhos dos grandes empresários com certa distribuição para setores sociais subalternos, excluídos. Tentou fazer uma política de contemporização entre uma coisa e outra. Não fez essa redistribuição tirando recursos das classes dominantes, não criou nenhum grande enfrentamento para essas classes. Os setores dominantes tiveram lucros fantásticos durante o governo dele, como não tiveram no governo passado, inclusive. No entanto, no momento da eleição, apesar de eles não terem seus interesses agredidos – e muito pelo contrário, algumas medidas do governo foram feitas para agradar esses interesses dominantes –, a mídia claramente mostrou sua posição de classe ao se definir por um determinado candidato naquele momento.

Qual a sua opinião sobre a criação da nova TV pública brasileira?
Esse projeto é fundamental, tem que existir no Brasil uma TV pública, que seja pública e não estatal. As discussões vão nesse sentido, que haja realmente recursos para alternativas de informação, de programação, porque a TV comercial no Brasil se mostra muito limitada. Não sou daqueles que acham que não existem coisas interessantes, mesmo na TV comercial, mas, na parte da informação, é muito complicado o que a TV comercial anda fazendo. Acho importante que você tenha outros tipos de programas, outros tipos de enfoques,

que se traga informações da América Latina, da América do Sul, da África, de países como Índia, China. Porque, na verdade, você tem a informação vinda principalmente dos Estados Unidos e de alguns países europeus. De outras partes do mundo a gente não sabe praticamente nada. Tem que ter mais acesso, inclusive, à produção independente brasileira, que não tem entrada na mídia, infelizmente.

O papel político da comunicação mudará a partir da convergência digital entre TV, telefonia e internet, que permite um novo tipo de interação social?
A relação entre comunicação e política, para mim, não depende dos meios, mas da postura da mídia, de fazer política dizendo que é contra política. O tempo todo, a mídia está expressando determinados interesses, expressando apoio a determinados governos, criticando outros. Portanto, atuando politicamente – no sentido fiel da palavra, enquanto aglutinação de interesses. No entanto, ela tenta passar uma postura extremamente negativa da política, como se fosse o lugar da sociedade brasileira onde estivessem todos os males, todos os corruptos. Como se fossem males que não acometessem toda a sociedade, o empresariado, a própria mídia.

É uma visão bem redutora. Dessa maneira, você não ataca de frente essas questões. Como é abominável estar ouvindo na televisão ou no rádio determinadas figuras políticas, que você sabe que tiveram um passado extremamente marcado pelo envolvimento com corrupção, e essas pessoas estarem na mídia como porta-vozes da moral e dos bons costumes. É escandaloso (e a própria mídia sabe que é assim), e, no entanto, entra nesse jogo para ser contra o governo.

Considerando-se as novas tecnologias de informação e comunicação, o que falta para que as mídias se tornem mais democráticas? O Brasil possui políticas nesse sentido?
O que as novas tecnologias têm de mais interessante é ampliar, e muito, o espectro de fontes de informação, pluralidade de idéias e diversidade cultural. Com as possibilidades de descentralização, teriam papel importante na democratização da comunicação do país. Mas há problemas. Por exemplo, a TV digital poderia, já que permite a abertura de muito mais canais, ser uma grande mudança, beneficiando a pluralidade política e a diversidade cultural. No entanto, na mídia aparecem apenas duas coisas: teremos uma imagem melhor e a possibilidade de interação (para eles, do ponto de vista unicamente comercial).

O mais importante sobre o que as novas tecnologias propiciam – diversidade, pluralidade, multiplicação de fontes de informação, possibilidade de ter uma produção independente mais presente – está fora da discussão. Se depender da mídia, nenhuma dessas possibilidades se realiza.

No Brasil, os movimentos que colocam a questão da democracia na comunicação, da diversidade cultural, ainda não conseguiram mobilizar a sociedade. Os setores sociais precisam perceber a importância e o significado da comunicação, das novas tecnologias, de como isso muda o mundo. Mas a mídia não divulga essa questão, que fica meio invisível. O lado positivo, fazendo uma retrospectiva, é que essas lutas têm crescido, talvez não da forma necessária, mas têm se ampliado em vários grupos. O que falta é uma articulação entre esses grupos, uma pressão social mais contundente. Mas até acho que o tema da democratização da comunicação já foi muito mais restrito.

Em um dos seus artigos, o senhor fala que a política se transformou em “telepolítica”. O que muda a partir dessa constatação?
O que entendemos hoje como estrutura, procedimentos, ritos políticos, nasceram, boa parte deles, na Idade Moderna. A política moderna esteve muito articulada com o espaço geográfico, com a idéia de presença. São pessoas discutindo em um determinado espaço e outras pessoas assistindo à discussão. A política contemporânea, por sua vez, agrega a esse espaço de luta e realização política, novos lugares, chamados virtuais: a televisão, o rádio, a internet.

A sociedade contemporânea é uma conjunção de espaços geográficos e eletrônicos. É esta sua característica singular. Se o político estiver vivendo uma dessas dimensões somente, não vai estar vivendo a contemporaneidade em seu sentido pleno. Não é que a política atual substitua a anterior, mas se agrega a ela. O exemplo mais típico é o seguinte: o que era uma eleição no Brasil até os anos 60? Pessoas fazendo carreatas, caravanas que percorriam o País, comícios aqui e ali. Tratava-se de um espaço claramente geográfico. O centro de uma eleição, em termos de formato (não em termos de conteúdo), era exatamente essas grandes caravanas.

Numa eleição para presidente, hoje, o centro da campanha não é mais esse. As caravanas e comícios ainda são muito importantes, mas complementares ao que se dá na televisão. O centro é o ambiente da telepolítica. É uma mudança significativa. Não estou discutindo os conteúdos, estou discutindo as esferas onde se realizam a política. Isso não é bom nem ruim, é diferente. Alguns argumentam que é distorção, mas não é. Se a sociedade mudou, por que a política vai continuar sendo feita nos moldes anteriores? Não pode, não tem lógica.

É possível conciliar o “espetáculo midiático” com o “realismo” necessário à política?
Não acredito que toda a política tenha se tornado espetáculo. Este é um dos mitos contemporâneos, sem pesquisas efetivas para comprovação. Penso que existe, na sociedade contemporânea, forte pressão para isto, dada a importância política adquirida pela visibilidade nessa sociedade. Como estar presente na mídia, habitar o espaço virtual, é essencial para que os atores políticos tenham efetiva existência pública – e, por conseguinte, possam realizar a luta política –, os atores e a mídia são tentados a cada momento pela espetacularização, que é um dos dispositivos mais utilizados contemporaneamente para possibilitar a visibilidade.

Assim, o Greenpeace promove suas “ações diretas espetaculares”, uma de suas marcas, e aparece como uma das entidades mais conhecidas da sociedade civil global. Mas a Anistia Internacional também é uma entidade marcante e influente da sociedade civil global, sem recorrer à espetacularização de sua política e atuação. Por outro lado, existem momentos da política que são avessos à espetacularização, como, por exemplo, alguns acordos políticos, que podem retirar sua força exatamente do sigilo – e não estou falando aqui de nenhum acordo excuso e ilegal.

Acredito que nem toda política é ou pode ou, ainda, deve ser espetacularizada. Mas, sem dúvida, existe uma política que busca recursos espetaculares para ganhar visibilidade: manifestações de rua, passeatas, certas atuações de entidades e políticos. Outro mito que precisa ser desfeito é que toda e qualquer espetacularização é, necessariamente, despolitizadora. Não creio nisto. Existem efetivamente espetacularizações despolitizadoras, mas outras podem ter eficácia na política e servirem para politizar questões.

A concentração dos meios de comunicação continua sendo um problema para a democracia. Qual é a relação entre mídia e democracia?
Pode ser feita essa relação de várias maneiras. Se a sociedade em que vivemos é complexa, com novos espaços vitais para a visibilidade, eu só tenho democracia se tenho coisas publicizadas para todos. Não existe democracia onde as coisas acontecem em segredo. A idéia de visibilidade, de publicidade, é fundamental. Eu tenho que ter acesso aos vários tipos de opinião para poder constituir minha visão e, nesse confronto, escolher. A idéia de democracia, que fundamentalmente é a possibilidade de escolha entre alternativas, só pode ser exercida se essas alternativas são colocadas para as pessoas. Portanto, é imprescindível que eu tenha uma mídia plural para que se assegure a democracia na sociedade. A gente pode ser taxativo nisso, sem democratização da comunicação não há possibilidade, na sociedade contemporânea, de se falar em democracia, pelo menos no sentido rigoroso da palavra. Se você tem uma sociedade onde a mídia não é democratizada, essa sociedade pode ter até uma série de outros aspectos nos quais a democracia já chegou, mas ela, como um todo, ainda carece de democracia.

Um dos problemas da sociedade brasileira é que ainda vivemos, depois de tantos anos de democracia, no sistema de comunicação constituído pela ditadura. A gente democratizou outras coisas na sociedade. No campo político tivemos avanços, existe hoje um conjunto de organizações da sociedade civil bastante amplo, isso significa democracia. Mas, no entanto, no plano da comunicação, a ditadura continua. Para não ser tão duro, a única mudança instalada é a que veio a partir de novos meios, que têm capacidade sócio-tecnológica de serem mais descentralizados. Mas se corre o risco, inclusive, de que esses novos meios tecnológicos sejam apropriados por esta estrutura centralizadora, concentradora, e que boa parte desses potenciais democráticos sejam inviabilizados.

* Antonio Albino Canelas Rubim é professor na Universidade Federal da Bahia, graduado em Comunicação e em Medicina, possui mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia e doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo. O pesquisador atua em diversas áreas, como Cultura e Poder, Políticas Culturais, Mídia e Eleições, Comunicação e Política, Sociologia da Cultura no Brasil, e Comunicação e Sociabilidade.

* A revista MidiaCom Democracia é uma publicação do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.

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