Contratos de gaveta formalizam outorgas à margem da lei

A possibilidade de transferência de outorgas para exploração dos serviços de radiodifusão está prevista no código que dá origem ao regulamento do setor, datado de outubro de 1963, no Decreto 52.795. No entanto, o artigo 90 esclarece que “nenhuma transferência, direta ou indireta, de concessão ou permissão, poderá se efetivar sem prévia autorização do governo federal, sendo nula, de pleno direito, qualquer transferência efetivada sem observância desse requisito”.

Isso, porém, nunca acontece, segundo o pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política, da Universidade de Brasília (UnB), Venício Arthur de Lima. “Determinado grupo recebe a concessão e faz um contrato de gaveta (transferência de concessão ou permissão sem o conhecimento do governo). Tem a concessão legal, mas, na verdade, transfere para outros”, testemunha. Ele revela ainda que se trata de uma prática comum e de conhecimento geral. “O caos regulatório do setor é total e vem servindo a interesses específicos ao longo do tempo”, avalia o pesquisador.

Os contratos de gaveta, muitas vezes, acabam acobertando a propriedade de rádios e tevês por parte de parlamentares. Venício Lima divulgou, em junho, uma pesquisa apontando que 50% das mais de duas mil emissoras comunitárias autorizadas a funcionar pelo Ministério das Comunicações pertencem a pessoas ligadas a políticos. Em denúncia recente, por exemplo, a revista Veja (edição 2020) acusou o presidente do Congresso, senador Renan Calheiros (PMDB-AL), de possuir duas rádios em Alagoas, com patrimônio avaliado em R$ 2,5 milhões. As emissoras teriam sido compradas por meio de contratos de gaveta e, para esconder seu nome, o peemedebista teria usado laranjas. Os partidos PSol e Dem protocolaram denúncia ao Conselho de Ética do Senado, que está investigando o caso.

Embora um grande número de concessões de rádio e televisão esteja em mãos de parlamentares, a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP) propôs, em 2006, a criação de uma subcomissão, na tentativa de dar à Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) melhores subsídios e condições para apreciar os pedidos de renovação e concessão de outorgas encaminhados pelo Ministério das Comunicações. A Subcomissão Especial de Radiodifusão foi instalada em março deste ano. Para a parlamentar socialista, que está há oito anos no Congresso e na CCTCI, o que mais incomodava era não ter como avaliar uma solicitação de outorga, pois faltavam documentos. “Tínhamos que dar um parecer no escuro. Simplesmente sim ou não, sem ter condições objetivas de avaliar o mérito da outorga ou da renovação”, contou Erundina, presidente da Subcomissão.

Em maio, a Subcomissão divulgou relatório com modificações feitas no Ato Normativo nº1 da CCTCI. Agora, todos os processos que não apresentarem documentação completa não serão devolvidos ao Ministério da Comunicação, como ocorria anteriormente. Se num prazo de 90 dias as pendências não forem resolvidas pelas entidades que pedem a outorga ou a renovação, o presidente da Comissão deverá, imediatamente, distribuir o processo para relatoria, com recomendação pela rejeição da solicitação. Atualmente, a CCTCI é presidida pelo deputado Julio Semeghini (PSDB-SP). As alterações no Ato Normativo estão valendo para processos recebidos pelo Congresso Nacional a partir de 1º de julho deste ano.

Com relação ao repasse de concessões, a deputada é enfática: “Um proprietário não pode transferir a outorga para outro sem a intermediação do Ministério. Quem faz isso, se vale do contrato de gaveta”. No documento elaborado pela Subcomissão de Radiodifusão, há propostas baseadas em contribuições recebidas de representantes da sociedade civil e órgãos governamentais ouvidos durante audiências públicas. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), presente em uma dessas audiências, defendeu o caráter público das concessões de radiodifusão e a adequação ao princípio da contrapartida social como compromisso das concessionárias.

Algumas ações, sobretudo aquelas relacionadas à transparência e à celeridade dos processos, não dependem de mudanças em dispositivos legais para serem aplicadas e podem ser adotadas diretamente pelo Ministério das Comunicações, pela Casa Civil e pela Anatel. Entre elas, a divulgação detalhada na internet de informações sobre processos de outorga e renovação. Os mecanismos de busca oferecidos ao público, pelo Minicom, precisam ser estendidos, de modo a possibilitar pesquisas de emissoras por proprietários e localidades, por exemplo. A relatora da Subcomissão, deputada Maria do Carmo Lara (PTMG), prevê que até o fim do mês de outubro um portal já deva estar no ar, mas ressalta que os dados disponíveis serão relacionados aos procedimentos recebidos a partir de julho deste ano. A medida, avalia a Subcomissão, operará como “importante instrumento de controle social”, uma vez que permitirá à sociedade denunciar transferências de concessões e permissões de radiodifusão, prática de difícil fiscalização pelo poder público.

Falta transparência
A Subcomissão pediu ainda mais transparência por parte do poder Executivo nos processos de outorga e renovação. Maria do Carmo ressaltou que, até o final do ano, todos os assuntos relacionados aos procedimentos de outorga de serviços de radiodifusão serão discutidos em um amplo relatório que está sendo elaborado e que pretende fazer um diagnóstico completo do setor. “Agora nós sabemos que essas questões não são fáceis de resolver, há muitos interesses representados na Câmara, no Congresso. Por isso, estamos tratando disso com debate, para construirmos o que for possível na Subcomissão e na CCTCI”.

Entre os temas debatidos, Erundina destaca que está sendo construída uma proposta de emenda constitucional para ser entregue ao governo com o objetivo de corrigir imprecisões no artigo 54 da Constituição Federal, que, teoricamente, proíbe a outorga e licença de rádio e TV para detentores de cargos públicos, mas que, por falta de regulamentação adequada, acaba deixando brechas para aquisições de concessões.

Luiza Erundina não poupa o Ministério das Comunicações. “As juntas comerciais só registram a transação após o processo passar pelo Ministério, que sequer tem um cadastro atualizado”, critica a parlamentar. Na avaliação da deputada, sem mecanismos adequados de fiscalização e controle, a tendência é a situação das concessões se agravar, especialmente a partir da incorporação das novas tecnologias como as TVs e rádios digitais. O relatório da Subcomissão apontou como imprescindível a reabertura das delegacias regionais do  Ministério, que foram fechadas em 2002. A fragilidade e a ineficiência da fiscalização, segundo Erundina, estão no fato de o Minicom ter apenas nove técnicos para analisar os processos que chegam de todo o País. A parlamentar compara com a atuação do Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel) – um órgão executivo do Ministério das Comunicações, extinto com a criação do Ministério da Infra-Estrutura, em 1990, no governo Fernando Collor de Melo – que dispunha de delegacias regionais e atuava na fiscalização das concessões.

À época do Dentel, havia uma estrutura descentralizada. “Esta é uma questão que o Ministério tem que enfrentar. Já que há poucas condições para fiscalizar, deveria firmar um convênio, criar mecanismos institucionais, conselhos paritários, mas com o controle direto da sociedade civil organizada, para manter a eficiência”, propõe Erundina, lembrando que a sociedade tem segmentos importantes para mantê-la atenta a estas questões. Em sua opinião, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que poderia exercer algum papel fiscalizador, “também não tem condições para cumprir minimamente esta função”.

Congresso beneficiário
O jornalista Alberto Dines, editor responsável do site Observatório de Imprensa – entidade não-governamental que tem como objetivo acompanhar o desempenho da mídia brasileira –, classifica as vendas de concessões e aluguéis de espaços por concessionários como um “ilícito anticonstitucional”. “Há um claro conflito de interesses. Ninguém consegue fiscalizar. No Congresso, tentam disfarçar colocando deputados em comissões”, diz o jornalista, destacando que quem deveria acompanhar estes processos – a Câmara e o Senado – têm em seus quadros muitos dos detentores das concessões no País. “São beneficiários. É um escaramento ostensivo”, critica, ressaltando que a TV Câmara e a TV Senado deveriam promover mais debates em torno do assunto. Para o jornalista, o Brasil é um País corporativo “e esta é uma prática na qual o corporativismo dita o caminho. A blindagem é descarada e as infrações são muito grandes. Enquanto o deputado for concessionário, não muda a situação”.

Dines destaca o trabalho realizado pelas jornalistas Elvira Lobato e Laura Mattos, que há anos mostram como os parlamentares se aproveitam da blindagem e passam por cima das irregularidades para amealhar concessões. Ele observa ainda que só os jornais Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo falam um pouco sobre o assunto, pois são veículos que não detêm rádios e TVs. O jornalista lembra que há 11 anos o Observatório da Imprensa debate o assunto, sem vislumbrar um horizonte para a situação. Segundo Dines, a entidade encaminhou um farto material para a Procuradoria-Geral da República, resultado de levantamento cuidadoso, com o nome dos concessionários e dos que aparecem como responsáveis pelas concessões. “Em novembro, fará dois anos e nada aconteceu. Lamentável! Mas não podemos desistir, vamos continuar falando e mostrando”.

Participação é fundamental
Para Venício Lima, o setor de comunicação ainda não foi percebido como área de política pública tão importante como a educação, por exemplo. Por isso, acredita ser muito difícil atingir o nível de consciência e mobilização para tratar dos assuntos específicos, como se consegue em outras áreas. No entanto, ao analisar as transações envolvendo as outorgas e concessões, observa: “Hoje já está mais fácil, existe o Intervozes, o próprio FNDC, o Observatório da Imprensa, mas que não chegam a atingir a grande massa”. O pesquisador entende que há décadas se faz necessária a criação de um novo marco regulatório para o setor.

Para o vice-presidente do Fórum Nacional de Professores de Jornalismo, Juliano Carvalho, a Subcomissão de Radiodifusão tem procurado enfrentar o problema das renovações indiscriminadas de outorgas e da concentração delas nas mãos de políticos. “Porém, sua atuação está muito aquém da realidade, porque há um lobby fortíssimo do parlamento e do poder Executivo.” Segundo o professor, apesar do esforço de alguns parlamentares, como da deputada Luiza Erundina, a Comissão sempre vai estar refém dos interesses particulares de deputados e senadores. Carvalho concorda com a posição da parlamentar de criar mecanismos de fiscalização, com a participação de representantes de entidades civis. Ele sugere, ainda, que o processo tenha critérios semelhantes aos do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), com a finalidade de orientar, fiscalizar e apurar abusos. “A idéia é dotar a sociedade de formas de controle, para poder intervir e fortalecer o setor”, explica.

Há três níveis de ação a se realizar, aponta Carvalho. Ele explica que organismos como o FNDC, as organizações sindicais, os movimentos populares e o terceiro setor devem atuar na busca por políticas públicas que venham regular os capítulos da Constituição e a legislação ordinária que trata da propriedade cruzada (quando uma entidade possui na mesma localidade jornal, e emissoras de rádio e televisão) e da concentração dos meios de comunicação. “Devem buscar um ordenamento jurídico mais eficiente para contratos de gaveta, ou seja, punições mais efetivas em relação a isso na ordem econômica, na ordem das concessões, nas reincidências”, defende o professor.

Numa atuação em nível médio – referente ao trabalho de organização de força-tarefa, de grupos de trabalho junto ao Ministério Público e aos órgãos dos ministérios do Executivo federal –, os organismos teriam a função de estabelecer uma política de fiscalização. No entanto, avalia, o trabalho mais eficaz – que deve ser realizado permanentemente e a longo prazo – é o acompanhamento feito pela população, pelo Ministério Público local ou pelos comitês pela democratização da comunicação, do movimento dos proprietários de outorgas em juntas comerciais e cartórios, nas localidades onde exista concessão ou permissão de um meio de comunicação. “É aquela denúncia concreta, feita no Ministério das Comunicações ou no Ministério Público Federal, que vai surtir efeito”, afirma Carvalho.

A participação e o papel do Conselho de Comunicação Social (CCS) neste debate é fundamental. Juliano Carvalho classifica como “vergonha” o fato de o CCS ainda não ter se reunido este ano. Na avaliação do professor, o órgão deveria ser regulamentado de maneira que não dependesse da convocação da Mesa do Congresso. “Obviamente, essa mesa – notadamente o senador Renan Calheiros – está muito pouco comprometida para que haja uma instância no âmbito do Senado Federal, que venha exercer um papel que possa, no mínimo, criar algum constrangimento a essa política desregrada que a gente tem assistido, de renovações sem critérios”.

* A Revista MidiaCom Democracia é uma publicação do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. 

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