A “noite do delete”, ou quando a Ancinav reduziu-se a Ancine

Por Eduardo Carvalho, do 100canais.
SALVADOR – Durante o III Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, ocorrido em Salvador, entre os dias 9 e 13 de julho, esta reportagem conversou como Secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, o cineasta baiano Orlando Senna, que falou sobre que fim levou a proposta da criação da Ancinav, agência que regularia todo o setor de audiovisual no país, sobre a criação de uma Rede de TVs públicas no Brasil, sobre a digitalização da televisão, sobre a classificação indicativa e sobre a escolha do presidente Lula de fazer do setor de audiovisual um assunto estratégico em seu governo. Leia, a seguir, as melhores passagens da conversa:

O que aconteceu com o projeto da Ancinav?
Orlando Senna – Houve um bloqueio claro, público, que todos viram e reconheceram. Uma espécie de muro de contenção do setor de teledifusão à proposta da Ancinav, pois era apenas uma proposta e não um projeto feito e acabado. Foi o que aconteceu, uma contenção, uma recusa de debater o assunto e uma tentativa de impedir que ele fosse debatido.

Isso significa que estamos mexendo no centro nevrálgico do poder?
OS – Estamos mexendo no centro nevrálgico do poder midiático, não só do Brasil, mas do mundo. Lembre-se, por exemplo, que conhecemos no início deste século 21 um novo tipo de modelo de golpe de estado, o golpe midiático, nos moldes do que tentaram aplicar na Venezuela. Ilustro isso, para acertarmos na dimensão de que poder estamos falando. De qualquer maneira, foi isso que impediu uma discussão pública mais profunda sobre a Ancinav, embora ela tenha acontecido, pois, além da reação de parte da mídia e do próprio governo e da própria atividade naquilo que ela teve que dizer ao confrontar-se com esta rejeição da mídia ao debate, houve uma consulta pública muito interessante, com mais de 4 mil mensagens. Ou seja, aconteceu o debate, ainda que não na profundidade que desejávamos.

De qualquer maneira, há dois encaminhamentos muito interessantes. Lembremos que, antes, o gabinete estava fechado. Para não refazer a história toda, a última tentativa imediatamente anterior ao governo Lula, foi a do Gedic, o Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indústria do Cinema, que se reunia com alguns cineastas que passavam informações para a gente, por debaixo dos panos, pois o acordo com o governo era o de que nada saísse do gabinete antes de se votar a lei geral de regulamentação do setor, exatamente para se evitar movidas de água no setor. A lei não saiu: saiu a Ancine. Desde o Gedic, a proposta da atividade cinematográfica e de parte da audiovisual era para a criação de uma agência mais abrangente e mais ampla, já era para uma Ancinav, isso lá no governo FHC.

Foi quando nasceram também as pressões para tirar o audiovisual da regulamentação geral para o setor?
OS – Só como anedota, nós temos, na história do cinema brasileiro, o que costumamos chamar de a “Noite do Delete”. No último encontro de discussão do Ministro Pedro Parente com o Gedic e seu subgrupo de cineastas (Carlos Diegues, Luiz Carlos Barreto, Luiz Severiano Ribeiro Neto, Rodrigo Saturnino Braga, Evandro Guimarães e Gustavo Dahl, coordenador), quando estava encaminhada a formulação da proposta para a criação de uma Agência do Audiovisual, desceu alguém de um helicóptero e teve uma conversa com o próprio Fernando Henrique. Começaram então uma série de contra-ordens ao pessoal que estava trabalhando na formulação da agência e o próprio ministro Pedro Parente começou a “deletar” tudo o que se referia à televisão. (A íntegra do sumário executivo do pré-projeto de planejamento estratégico que resultou destas reuniões pode ser lido aqui). A “noite do delete” ilustra como a coisa era reservada!

Você falou em dois encaminhamentos…
OS – Sim, abriu o debate e mostrou que o tema audiovisual é tão importante, que próprio presidente Lula em sua primeira ação referente a colocou-o como estratégico, como um tema de Estado. O novo governo, com a compreensão da importância estratégica econômica, não apenas a artística, mas, sobretudo, a econômica da atividade, trouxe-o aos prismas da opinião pública (do público, da mídia, do Congresso), para ser debatido, conhecido e discutido pela opinião pública global. E aconteceu, foi tão forte o impacto da proposta na mídia, por causa da televisão, que a discussão ganhou as ruas. Chegavam notícias de pessoas discutindo Ancinav nos ônibus, nas filas, nos bares, gente do povo, sem ligação direta com a atividade.

O segundo passo que foi proporcionado pela polêmica Ancinav foi uma coisa prática da decisão de Lula em afirmar que deveríamos separar as coisas como devem ser separadas e garantir a Ancine, que esteve ameaçada também, e prepará-la para o que vem depois: para a inevitabilidade de termos uma agência, um organismo, um mecanismo que regule toda a atividade E a Ancine está sendo preparada para isso com gente muito mais ligada a este projeto do que antes. Também vamos fazer a lei geral de comunicação, para a qual foi nomeada uma comissão interministerial que está andando muito lentamente, porque está sem estímulo.

Para finalizar esta questão, estamos diante de um cenário para o qual precisamos de normas adequadas, claras e modernas: trata-se do cenário da TV digital e da digitalização de toda a atividade audiovisual (televisão, cinema, música etc.). Diante destas novas relações, temos que ter lei, senão agravaremos as distorções de um setor que ainda é regido por uma lei de teledifusão de 1962, época em que ainda não se pensava nem em videocassete e a TV ainda era em preto e branco. É impossível o Estado brasileiro conseguir materializar o projeto de TV digital que já está empenhado se não houver normas de acordo com esta nova realidade. Foi muito bom que o governo tenha lançado esta questão como cenário para discutir estas coisas. Tornou-se um assunto debatido publicamente. Deixou os segundos cadernos para vir para a página de política e demonstrou que todo o setor: comunicação, teledifusão, cinema, audiovisual, tudo pede regulamentação. Claro que pode acontecer de nos reportarmos a uma televisão e ela, apesar de restringir o debate, assumir que ele é necessário. Até como escudo de proteção contra os monstros tentaculares da comunicação mundial que, daqui a pouco, estarão pegando pedaços importantes e estratégicos das nossas grandes empresas de teledifusão. A Globo está sentindo isso muito claramente, está sob pressão forte e contínua.

No meio do acirramento deste debate, ainda na ressaca da discussão da proposta da Ancinav, foi adequado o momento para se propor a discussão da classificação indicativa e o da formação de uma rede pública de televisão?
OS – É um aspecto tão específico este da classificação indicativa… Na minha opinião, deve haver sim indicação de idade, sem, no entanto, a orientação do horário. A questão da TV Pública estava passando da hora na perspectiva do atual governo. Na verdade, só não saiu antes, um pouco pela reação da grande mídia à proposta da Ancinav; houve um tempo de acomodação e de negociações, além de um tempo de preparação dentro do próprio âmbito da TV pública brasileira para que se pudesse lançar aquele fórum do ano passado. Como Secretário do Audiovisual, eu considero este impulso para a construção de um novo desenho mais amplo, mais forte e muito nítido da Tv pública como a melhor ação da secretaria nestes cinco anos, devido ao quê isto pode impactar no cenário comunicacional brasiliro. Trabalhoso, mas tinha que ser iniciado. E já ganhamos algo pelo simples início do processo, no que diz respeito ao entendimento dos três sistemas televisivos que existem no Brasil: o estatal, o público e o privado. Havia uma certa confusão entre os dois primeiros que ficou muito evidente no início da discussão. Agora já andamos: já sabemos do que se trata, o governo sabe o que é, e sabe que deve haver uma televisão estatal que seja porta-voz do governo e ofereça serviços públicos estatais à população; a televisão pública que seja a voz da sociedade, que faz o gerenciamento da sociedade e televisão privada que já se sabia o que é.

Este projeto finaliza-se quando? Há uma disputa para ver quem o conduz?
OS – É decisão do presidente que o projeto ande o mais rapidamente possível, inclusive para não haver desencontro da conversão da TV analógica em digital. Há uma correlação de forças, uma convivência pacífica entre forças que pareciam ser bem mais distintas do que na verdade se revelaram. Na verdade, existe uma boa coincidência de pensamento entre o Ministério da Cultura, a Secretaria de Comunicação Social, com o Franklin Martins, o presidente da República e o Ministério da Educação que agora está participando de maneira mais forte e decisiva do que antes.

E há dúvidas se o projeto concretiza-se?
OS – Diante da grandiosidade da proposta cultural, as pessoas vão com certo cuidado, indagando sobre os recursos. Mas o que está afixado e esperamos, sob as bênçãos de Oxumaré que isso não mude, é fazer uma televisão pública realmente destinada para todo o território nacional, com gestão pública, e com absoluta independência do poder econômico, ou seja, da televisão privada, e do poder político, ou seja, da televisão estatal. E o desafio fica maior se pensarmos em fazer uma televisão pública de qualidade. Uma televisão que seja sedutora!

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