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A “noite do delete”, ou quando a Ancinav reduziu-se a Ancine

Por Eduardo Carvalho, do 100canais.
SALVADOR – Durante o III Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, ocorrido em Salvador, entre os dias 9 e 13 de julho, esta reportagem conversou como Secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, o cineasta baiano Orlando Senna, que falou sobre que fim levou a proposta da criação da Ancinav, agência que regularia todo o setor de audiovisual no país, sobre a criação de uma Rede de TVs públicas no Brasil, sobre a digitalização da televisão, sobre a classificação indicativa e sobre a escolha do presidente Lula de fazer do setor de audiovisual um assunto estratégico em seu governo. Leia, a seguir, as melhores passagens da conversa:

O que aconteceu com o projeto da Ancinav?
Orlando Senna – Houve um bloqueio claro, público, que todos viram e reconheceram. Uma espécie de muro de contenção do setor de teledifusão à proposta da Ancinav, pois era apenas uma proposta e não um projeto feito e acabado. Foi o que aconteceu, uma contenção, uma recusa de debater o assunto e uma tentativa de impedir que ele fosse debatido.

Isso significa que estamos mexendo no centro nevrálgico do poder?
OS – Estamos mexendo no centro nevrálgico do poder midiático, não só do Brasil, mas do mundo. Lembre-se, por exemplo, que conhecemos no início deste século 21 um novo tipo de modelo de golpe de estado, o golpe midiático, nos moldes do que tentaram aplicar na Venezuela. Ilustro isso, para acertarmos na dimensão de que poder estamos falando. De qualquer maneira, foi isso que impediu uma discussão pública mais profunda sobre a Ancinav, embora ela tenha acontecido, pois, além da reação de parte da mídia e do próprio governo e da própria atividade naquilo que ela teve que dizer ao confrontar-se com esta rejeição da mídia ao debate, houve uma consulta pública muito interessante, com mais de 4 mil mensagens. Ou seja, aconteceu o debate, ainda que não na profundidade que desejávamos.

De qualquer maneira, há dois encaminhamentos muito interessantes. Lembremos que, antes, o gabinete estava fechado. Para não refazer a história toda, a última tentativa imediatamente anterior ao governo Lula, foi a do Gedic, o Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indústria do Cinema, que se reunia com alguns cineastas que passavam informações para a gente, por debaixo dos panos, pois o acordo com o governo era o de que nada saísse do gabinete antes de se votar a lei geral de regulamentação do setor, exatamente para se evitar movidas de água no setor. A lei não saiu: saiu a Ancine. Desde o Gedic, a proposta da atividade cinematográfica e de parte da audiovisual era para a criação de uma agência mais abrangente e mais ampla, já era para uma Ancinav, isso lá no governo FHC.

Foi quando nasceram também as pressões para tirar o audiovisual da regulamentação geral para o setor?
OS – Só como anedota, nós temos, na história do cinema brasileiro, o que costumamos chamar de a “Noite do Delete”. No último encontro de discussão do Ministro Pedro Parente com o Gedic e seu subgrupo de cineastas (Carlos Diegues, Luiz Carlos Barreto, Luiz Severiano Ribeiro Neto, Rodrigo Saturnino Braga, Evandro Guimarães e Gustavo Dahl, coordenador), quando estava encaminhada a formulação da proposta para a criação de uma Agência do Audiovisual, desceu alguém de um helicóptero e teve uma conversa com o próprio Fernando Henrique. Começaram então uma série de contra-ordens ao pessoal que estava trabalhando na formulação da agência e o próprio ministro Pedro Parente começou a “deletar” tudo o que se referia à televisão. (A íntegra do sumário executivo do pré-projeto de planejamento estratégico que resultou destas reuniões pode ser lido aqui). A “noite do delete” ilustra como a coisa era reservada!

Você falou em dois encaminhamentos…
OS – Sim, abriu o debate e mostrou que o tema audiovisual é tão importante, que próprio presidente Lula em sua primeira ação referente a colocou-o como estratégico, como um tema de Estado. O novo governo, com a compreensão da importância estratégica econômica, não apenas a artística, mas, sobretudo, a econômica da atividade, trouxe-o aos prismas da opinião pública (do público, da mídia, do Congresso), para ser debatido, conhecido e discutido pela opinião pública global. E aconteceu, foi tão forte o impacto da proposta na mídia, por causa da televisão, que a discussão ganhou as ruas. Chegavam notícias de pessoas discutindo Ancinav nos ônibus, nas filas, nos bares, gente do povo, sem ligação direta com a atividade.

O segundo passo que foi proporcionado pela polêmica Ancinav foi uma coisa prática da decisão de Lula em afirmar que deveríamos separar as coisas como devem ser separadas e garantir a Ancine, que esteve ameaçada também, e prepará-la para o que vem depois: para a inevitabilidade de termos uma agência, um organismo, um mecanismo que regule toda a atividade E a Ancine está sendo preparada para isso com gente muito mais ligada a este projeto do que antes. Também vamos fazer a lei geral de comunicação, para a qual foi nomeada uma comissão interministerial que está andando muito lentamente, porque está sem estímulo.

Para finalizar esta questão, estamos diante de um cenário para o qual precisamos de normas adequadas, claras e modernas: trata-se do cenário da TV digital e da digitalização de toda a atividade audiovisual (televisão, cinema, música etc.). Diante destas novas relações, temos que ter lei, senão agravaremos as distorções de um setor que ainda é regido por uma lei de teledifusão de 1962, época em que ainda não se pensava nem em videocassete e a TV ainda era em preto e branco. É impossível o Estado brasileiro conseguir materializar o projeto de TV digital que já está empenhado se não houver normas de acordo com esta nova realidade. Foi muito bom que o governo tenha lançado esta questão como cenário para discutir estas coisas. Tornou-se um assunto debatido publicamente. Deixou os segundos cadernos para vir para a página de política e demonstrou que todo o setor: comunicação, teledifusão, cinema, audiovisual, tudo pede regulamentação. Claro que pode acontecer de nos reportarmos a uma televisão e ela, apesar de restringir o debate, assumir que ele é necessário. Até como escudo de proteção contra os monstros tentaculares da comunicação mundial que, daqui a pouco, estarão pegando pedaços importantes e estratégicos das nossas grandes empresas de teledifusão. A Globo está sentindo isso muito claramente, está sob pressão forte e contínua.

No meio do acirramento deste debate, ainda na ressaca da discussão da proposta da Ancinav, foi adequado o momento para se propor a discussão da classificação indicativa e o da formação de uma rede pública de televisão?
OS – É um aspecto tão específico este da classificação indicativa… Na minha opinião, deve haver sim indicação de idade, sem, no entanto, a orientação do horário. A questão da TV Pública estava passando da hora na perspectiva do atual governo. Na verdade, só não saiu antes, um pouco pela reação da grande mídia à proposta da Ancinav; houve um tempo de acomodação e de negociações, além de um tempo de preparação dentro do próprio âmbito da TV pública brasileira para que se pudesse lançar aquele fórum do ano passado. Como Secretário do Audiovisual, eu considero este impulso para a construção de um novo desenho mais amplo, mais forte e muito nítido da Tv pública como a melhor ação da secretaria nestes cinco anos, devido ao quê isto pode impactar no cenário comunicacional brasiliro. Trabalhoso, mas tinha que ser iniciado. E já ganhamos algo pelo simples início do processo, no que diz respeito ao entendimento dos três sistemas televisivos que existem no Brasil: o estatal, o público e o privado. Havia uma certa confusão entre os dois primeiros que ficou muito evidente no início da discussão. Agora já andamos: já sabemos do que se trata, o governo sabe o que é, e sabe que deve haver uma televisão estatal que seja porta-voz do governo e ofereça serviços públicos estatais à população; a televisão pública que seja a voz da sociedade, que faz o gerenciamento da sociedade e televisão privada que já se sabia o que é.

Este projeto finaliza-se quando? Há uma disputa para ver quem o conduz?
OS – É decisão do presidente que o projeto ande o mais rapidamente possível, inclusive para não haver desencontro da conversão da TV analógica em digital. Há uma correlação de forças, uma convivência pacífica entre forças que pareciam ser bem mais distintas do que na verdade se revelaram. Na verdade, existe uma boa coincidência de pensamento entre o Ministério da Cultura, a Secretaria de Comunicação Social, com o Franklin Martins, o presidente da República e o Ministério da Educação que agora está participando de maneira mais forte e decisiva do que antes.

E há dúvidas se o projeto concretiza-se?
OS – Diante da grandiosidade da proposta cultural, as pessoas vão com certo cuidado, indagando sobre os recursos. Mas o que está afixado e esperamos, sob as bênçãos de Oxumaré que isso não mude, é fazer uma televisão pública realmente destinada para todo o território nacional, com gestão pública, e com absoluta independência do poder econômico, ou seja, da televisão privada, e do poder político, ou seja, da televisão estatal. E o desafio fica maior se pensarmos em fazer uma televisão pública de qualidade. Uma televisão que seja sedutora!

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A democratização do acesso à cultura

O Sesc é um modelo de democratização da cultura, tem programa para todas as idades, em todos os bairros, por mais distantes que sejam, a preços acessíveis a todos. É uma instituição que faz mais pela cultura do que os órgãos competentes nessa área. O que explica isso?
O Sesc nasceu de uma conjunção de fatores muito curiosos. Sabemos que o empresariado, de modo geral, não prima por uma posição democrática do ponto de vista cultural e social. No que diz respeito a negócios, quer absoluta liberdade, tanto que a livre-iniciativa é seu grande paradigma, o liberalismo assumido. Mas, cada vez mais, percebe-se a importância de instâncias reguladoras, que de alguma forma organizem esse processo para garantir direitos.

A impressão que eu tenho é que, quando o Sesc foi criado nos anos 40, um grupo de empresários se deixou influenciar, ou foi influenciado, por pessoas com visão de futuro. A grande maioria não tinha essa perspectiva. Portanto, intelectuais da época, especialistas na área social e cultural, ganharam algum peso, alguma importância, porque fizeram uma matriz de organização que, em primeiro lugar, garantia o financiamento; em segundo, certa independência e relativa autonomia de atuação; em terceiro, tinha o propósito de criar uma sociedade de bem-estar, voltada para a qualidade de vida. Ou seja, sabiam que o empresariado tinha obrigações de ordem econômica com a sociedade. Isso num período muito especial, no pós-guerra, quando os democratas ganharam no mundo inteiro.

No Brasil, havia o crescimento das propostas de valorização dos trabalhadores, de forma empiricamente organizada, não como temos hoje – organizações tanto com uma visão marxista como ligadas à Igreja, ao operariado mais consciente. Se o empresariado não tivesse o cuidado de gerar alguma solução para o equilíbrio social, poderia correr o risco de ver o país virar. Já tinha visto uma ameaça com a famosa Intentona Comunista de 35.

Aliás, intentona, é a única da história do Brasil e do mundo.
Havia o risco do comunismo, “aquela fera perigosíssima”, o empresariado estava assustado. Então, provavelmente decidiram abrir mão de alguma coisa, pagar, uma vez que o Estado não tinha condições de resolver questões que atendessem ao anseio da sociedade. Estávamos no processo de industrialização, que criou as condições no Brasil para uma base industrial razoável. Antes só havia agroindústria e de tecido. Não havia siderurgia, indústria pesada, de energia e de infra-estrutura. Nesse momento, tem início a indústria brasileira, graças ao “presente” do governo americano – em decorrência da nossa participação na Segunda Guerra –, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a primeira empresa de produção de aço no país, instalada no Brasil nos anos 40. Daí o Estado brasileiro pôde criar, logo em seguida, a Petrobras. Enfim, era um momento de nacionalização das bases de uma sociedade industrial e infra-estrutura um pouco mais consistente.

Além disso, era também um momento relevante do ponto de vista cultural. Vivemos nos anos 40 o amadurecimento de uma verdadeira reflexão sobre a cultura brasileira, que havia se iniciado com a Semana de Arte Moderna, nos anos 20, com grandes pensadores da época, em um movimento liderado por São Paulo mas nacional. Graça Aranha, Di Cavalcanti, Villa-Lobos, por exemplo, não eram paulistas. Para mim, além de Caio Prado, Sérgio Buarque, Gilberto Freyre, Antonio Candido, grandes nomes que ajudaram a criar um pensamento mais autônomo da cultura brasileira são Mario de Andrade e Oswald de Andrade. Teve papel relevante também essa realidade nossa que mistura conhecimento europeu, influência negra, índia, de uma forma nova, com influências importantíssimas. Daí vem a verdadeira literatura produzida naquele momento, com Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego – os grandes nomes do Nordeste.

Com a urbanização intensa, o processo de industrialização, a migração do campo para a cidade, São Paulo, que até então tinha pouco mais de 1 milhão de habitantes, começa a explodir. Os empresários percebem que precisam fazer alguma coisa. Assim, com recursos provenientes das empresas, são criadas algumas organizações para possibilitar, em primeiro lugar, a formação profissional dos trabalhadores para o comércio e a indústria. Nasce então a primeira delas, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, o Senai. É interessante observar que a educação profissional é a primeira preocupação para a indústria, em 1942.  Em seguida é criado o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial, o Senac, direcionado à administração, gestão, organização de escritórios, de toda a parte da infra-estrutura necessária para os serviços. Depois vieram o Serviço Social da Indústria, o Sesi, e o Serviço Social do Comércio, o Sesc.

Esses dois são criados porque, além da formação profissional e dos direitos trabalhistas que vieram a ser garantidos por Getúlio no início dos anos 40, há a necessidade de proporcionar algum bem-estar ao trabalhador. Então o Estado faz um acordo com o empresariado: o governo garante em lei que todo mundo pague e o empresariado administra. A lei institui um imposto patronal, uma contribuição proveniente das empresas, calculado em cima da folha de pagamentos. O número de funcionários é que determina a necessidade de uma contribuição maior ou menor da empresa.

É por número de funcionários ou volume salarial?
É um percentual sobre salário de empregado, não é sobre o faturamento. Trata-se de um percentual simbólico, pequeno, que no decorrer destes sessenta anos diminuiu. Perceberam que era uma solução interessante. Nos últimos anos acrescentaram algumas outras instituições parecidas. Então, esse galho de onde passou a vir recurso foi pendurando muita coisa, começou a envergar e pode quebrar de uma hora para outra, pondo em risco quem se utiliza disso de maneira adequada.

Essa é um pouco a origem do chamado Sistema S. Particularmente, sou um pouco refratário a esse nome, porque no Sistema S são colocadas numa mesma categoria realidades muito diferentes com objetivos diferentes.

E quais são os objetivos do Sesc?
O Sesc tem muito claro o seu DNA, o que compõe sua cadeia genética, o que faz a instituição ser o que é. O Sesc tem, na origem, um programa de bem-estar social que hoje se traduz por qualidade de vida, acesso a cultura, informação, conhecimento, saúde, enfim, acesso a uma vida saudável. Mas isso é um programa de governo! A pretensão no início era essa. Por isso, temos muita proximidade com programas e objetivos de caráter público, para uma clientela prioritariamente definida, que são os trabalhadores do comércio e serviços, seus dependentes e a população em geral, como decorrência. Nestes sessenta anos, a estratégia da instituição foi migrando de metodologias várias até encontrar uma que fosse a mais abrangente e concreta possível, ação sociocultural para a população comerciária, trabalhadores na área de serviços e público em geral. Isso nunca foi tratado de maneira muito objetiva no início. Mas tem fundamentos conceituais, na medida em que uma ação cultural destinada a uma clientela definida dentro da população está impedindo, em parte, que o restante tenha acesso. E a cultura e determinados níveis de informação não há como restringir, não tem sentido. Então, priorizamos os trabalhadores, porque as empresas é que pagam a conta, e isso se dá de maneira muito clara, sobretudo no beneficiamento e facilitação do acesso. Simplificando, desconto em entrada, preferência na hora de fazer opções para determinadas atividades etc.

O Sesc tem instalações em Itaquera, Interlagos, Santo André, São Caetano. Ir ao Belenzinho à noite pode ser difícil para quem mora no Jardim Paulista, mas o que passa em uma unidade não passa em outra. Trazem um artista de Paris para expor em Santo André (SP). É muito democrático, é a deslocalização da cultura. Em São Paulo há uma grande concentração de museu, teatro, cinema.
Fazemos isso de propósito. Há uma visão um pouco deturpada da sociedade, que se organiza dando preferência para a classe dominante. Temos a intenção muito clara de atingir esse processo de democratização. Isso força o Sesc a trazer a qualidade, que tem caráter central, para a periferia. Em 1975, em plena ditadura, o Sesc decidiu fazer o centro campestre em Interlagos. Causou certo espanto, porque usou os melhores materiais, um tipo de construção e de intenção muito próprio das classes mais privilegiadas, voltado para o trabalhador de periferia. 

Há Sesc em todos os estados?
Sim. A governança da instituição, desde o início, foi atribuída aos empresários de uma forma bem clara e numa perspectiva de caráter privado mas com controle público. Quando o Sesc foi criado, em 1946, o regulamento já estabelece que o Tribunal de Contas da União fiscaliza a aplicação dos recursos. Estou falando de uma instituição no Brasil inteiro. A governança é muito importante, tendo em vista o caráter regional. Cada estado cria suas condições e realiza dentro do espectro de programas de bem-estar social aqueles mais adequados a sua realidade. Norte e Nordeste têm necessidades diferentes de São Paulo, por exemplo, alfabetização de base. Têm programas mais definidos nessa direção, como alimentação do trabalhador. São Paulo, Rio de Janeiro e outros estados vão ter programas mais ligados ao lazer, à cultura e ao esporte.

O direcionamento da verba tem a ver com a arrecadação? O que cada estado arrecada é o que ele tem para aplicar?
Qualquer arrecadação de ordem nacional, São Paulo tem mais. É o estado que concentra força econômica, grande quantidade de empresas e empregados. O Sesc foi criado com um caráter redistributivista. Isso é muito original no Brasil: 20% do recurso recolhido em todo o país é redistribuído para lugares onde há menos recursos, portanto, mais carências. Na prática, são cinco ou seis estados que têm mais recursos. É uma perspectiva dos impostos em nível nacional, o que a União arrecada em São Paulo não pode ser usado somente no estado. Esse é o sentido da Federação e da República. Os quatro Ss originais – Sesc, Senai, Sesi e Senac – têm fiscalização nacional e caráter redistributivista, o que os aproxima muito das políticas públicas.

O Sesc começou com cada estado autônomo, numa perspectiva bastante provedora, assistencialista e paternalista. Empresários com alguma condição que tiram dinheiro “do bolso” para criar um fundo, mais moderno do que muitas ações de responsabilidade social que se fazem hoje.

O senhor se refere a instituições que se valem de isenção fiscal para “promover” cultura?
Há quem veja como um avanço enorme que empresas assumam ações de responsabilidade social. No entanto, elas o fazem em nome de suas fundações ou diretorias, ou de sua marca, e com isso agregam os tais valores do marketing, podendo ganhar dimensão de uma empresa cidadã, mas o nome dela está lá. Os maiores financiadores do Sesc no Brasil são o Pão de Açúcar e a Rede Globo, e no entanto nunca se ouviu falar que a entidade esteja fazendo alguma coisa em nome de uma dessas empresas. Elas ajudam a pagar, há “socialização do prestígio”, algo muito mais adequado para uma sociedade republicana do que o recurso proveniente de um banco, que tem isenção fiscal, portanto recurso público, aplicado em uma fundação do próprio banco. Não é errado, mas não é abrangente como o nosso.

Como se deu a mudança de enfoque…
As coisas não eram vistas sob o enfoque do respeito à igualdade, à dignidade, era um caráter meio filantrópico qualitativo. Ao poucos, por meio da comunidade técnica que atua no Sesc, cito o de São Paulo, a instituição foi abrindo caminho, fazendo uma reflexão mais aprofundada sobre o trabalhador, buscando especialistas no mundo inteiro. Quando o pacto é feito entre empresários e governo, o trabalhador não está presente. Isso para nós, hoje, é um crime, uma falha, mas na época não era fundamental, era moderno fazer daquele jeito. Como era moderna a Carta da Paz Social, um documento que hoje poderia ser assinado pela CUT, em que empresários discutem nos anos 40 a importância da empresa, sua função social, e do envolvimento do empresário na perspectiva da melhoria das condições de vida do trabalhador, relações de trabalho, o não-trabalho, o tempo livre e o lazer. Daí toda uma política voltada para a ocupação desse tempo livre de uma maneira produtiva e adequada, oferecendo condições para o desenvolvimento do trabalhador. Há uma perspectiva educativa como elemento vital para esse desenvolvimento. Hoje a instituição está voltada para a educação permanente, de modo a estimular a autonomia do trabalhador e dos freqüentadores. Para isso, proporciona um cabedal imenso de informações por meio da cultura, do lazer, do esporte inclusivo. O esporte e o tempo livre são importantes e a instituição vai percebendo aos poucos que a cultura tem um papel relevante na transformação e na mudança das pessoas. Por isso a democratização da cultura acaba sendo um objetivo fundamental, daí promovermos o bem-estar sociocultural.

E esse cultural não diz respeito somente a artes e espetáculos e mesmo ao patrimônio e à memória, refere-se ao ser humano, às suas relações. Elegemos clientelas excluídas, como o idoso e a criança, que não estão em situação de risco comportamental ou político, mas de vulnerabilidade econômico-social.

O Sesc é reconhecido pelo trabalho que desenvolve com idosos, fale-nos um pouco sobre esse público.
Por conhecermos essa questão a fundo, a Fundação Perseu Abramo nos procurou para a realização da pesquisa sobre idosos. Desde os anos 60 atuamos junto ao idoso para ajudá-lo a descobrir o caminho, e nunca de uma perspectiva paternalista. Oferecemos informação, todo o tipo de atividade, física inclusive. No Sesc Pinheiros, instalamos equipamentos de ginástica próprios para trabalhar o equilíbrio, a percepção do piso, o tátil… O idoso depois de algum tempo tem dificuldades naturais, e esses equipamentos são apropriados para exercitar atividades mais complicadas, quando membros, músculos e ossos estão ligeiramente mais enfraquecidos. Nosso programa para idosos hoje é intergeracional. Numa sociedade organizada, normal, as pessoas convivem com idades diferentes. Não segregamos o idoso. Da existência humana, temos de lidar com tudo, começo, meio e fim. 

No Sesc Consolação, fizemos uns quatro anos seguidos uma grande ação voltada para a atividade cênica, teatro, musical, que mistura idosos, jovens, adultos, crianças se apresentando. Vocês nem imaginam como isso revitaliza o idoso.

Dê um exemplo.
O André Abujamra montou uma espécie de ópera em que cantavam, dançavam, representavam, um processo progressivo que tem esse caráter educativo fundamental. Grande parte dos idosos é sozinha ou não está incorporada à família, de metrópole moderna. Não queremos substituir a família, mas pretendemos que a sociedade seja normal, que as pessoas convivam dentro de normas, com acompanhamento adequado. Vamos divulgar nossa pesquisa no Brasil todo.

A programação do Sesc é vasta, tem hap, música eletrônica, ikebana, tai-chi, teatro… Como você a sintetizaria? É definida em função da unidade e do perfil do público que a freqüenta?
Os equipamentos e a arquitetura são diferentes em cada unidade. Existe uma série de elementos que orientam as vocações dos espaços. Eu não posso colocar os Racionais MC no Sesc Anchieta para 300 lugares. Eles têm de se apresentar  onde caibam milhares de pessoas, como já fizemos sem problema nenhum.

Temos uma perspectiva de democratização e facilitação de acesso. O Sesc que me vem à cabeça sempre quando falo disso é o Pompéia, uma rua que entra, sem bloqueios visíveis, catraca ou portaria. Futuramente, vamos ter uma unidade na Rua 24 de Maio em que o térreo será também integrado com a rua, perto da Galeria do Rock, onde era a Mesbla anos atrás. É uma pracinha coberta que se mistura com a rua. Esse é o Sesc ideal. Esse conceito do acesso que facilita entrar da rua é a essência da nossa proposta de democratização. Uma vez dentro, há muitas possibilidades, uma oferta bastante ampla, do ponto de vista do custo, da linguagem e do tempo – moderna, tradicional, antiga. Há respeito a todas as tendências. Para a gente, hap, ópera, clássica, moderna, dodecafônica, tudo isso cabe, desde que tenha qualidade e seja proposta educativa.

Tivemos recentemente um teatro polonês que se apresentou no Sesc Pompéia do lado de fora. O espetáculo era em polonês, tratava de intolerância, era sobre a Bósnia. Queimavam uma parte do cenário, era bem agressivo, havia estupro, purificação racial, limpeza étnica, uma realidade do centro da Europa. O freqüentador do fundo do Sesc Pompéia é o pessoal do esporte (ginásio, piscina etc.), que freqüenta menos a parte cultural, e assistiu àquilo envolvido e encantado. Nem eles sabiam que gostavam. Então, queremos oferecer coisas que às vezes as pessoas nem sabem que apreciam ou que podem apreciar. Não foi feito com essa intenção, mas pode acontecer.

Essa idéia de contemplar todas as tendências permite que a gente atue de maneira muito diversificada. Somos uma instituição que se utiliza, de maneira bastante adequada, da cultura e do esporte para a promoção do desenvolvimento sociocultural; uma instituição de educação permanente, informal. O Sesi optou pela educação escolar. A vocação e a perspectiva do Sesc, e por conseqüência o resultado extraordinário da instituição do ponto de vista da aceitação, do crescimento, do seu avanço, têm muito a ver com a opção por fazer educação mais livre. Temos, por exemplo, o programa Sesc Curumim, voltado para os filhos de trabalhadores que têm, fora do período escolar, necessidade de algum tipo de suporte, reforço escolar. Há educação complementar voltada para a cultura, o lazer, o meio ambiente, a vida social, em todas as nossas unidades. As crianças usam uniforme, não têm obrigações de forma estruturada, como caderneta, presença obrigatória e nota. É apenas um local para estar de maneira organizada com consultores que acompanham a criança, vêem as exposições, convivem com idosos.

Quais são as grandes ações que o Sesc realiza?
As grandes linguagens artísticas – artes visuais, música, cênicas, literatura, dança – estão todas presentes e com todas as tendências em cada uma delas, nas diversas ações. Isso do ponto de vista da cultura voltada para as artes. É um ponto forte de nossas ações a atividade física como proporcionadora de bem-estar, uma vez que oferecemos informação adequada sobre como cuidar do corpo com exercício, caminhar e se alimentar. Há uma grande quantidade de programas voltados para a atividade física, saindo da banalização do fitness, da malhação, ganhar musculatura… Isso é decorrência, o principal é o condicionamento físico e o bem-estar de acordo com a faixa etária.

As instalações das unidades são bem pensadas. A arquitetura é um componente forte da instituição?
Apesar de ter sido criado em 1946, somente nos anos 60 é que o Sesc teve instalações construídas para a instituição. A unidade Consolação foi a primeira em que convidamos um arquiteto para bolar o prédio, Icaro Castro Mello, especializado em construções esportivas. Com o desenvolvimento de unidades próprias, a arquitetura passa a ganhar papel relevante como ferramenta para a educação que o Sesc oferece. E depois vem Lina Bo Bardi, nos anos 70, que fixa uma marca.

Vocês também investem em saúde…
Em saúde, há uma aplicação de recursos bastante acentuada. Temos, por exemplo, uma rede de atendimento odontológico, no país inteiro. Em São Paulo são aproximadamente 250 cirurgiões-dentistas e 120 gabinetes odontológicos espalhados pelo estado, isso somente para o comerciário, que paga pouco e facilitado.

Como o Sesc consegue proporcionar atividades de alta qualidade a preços tão populares?
Há algumas estratégias, temos algumas máximas que definem um pouco nossa atuação. Uma delas é não haver nenhuma perspectiva de caráter comercial, nosso retorno é cultural, social, institucional, o financeiro vem em quinto ou sexto lugar, porque recebemos recursos das empresas. Não temos por que disputar patrocínio nem estamos preocupados com o lucro. Nossa ação tem caráter redistributivista em todos os sentidos, até mesmo de subsidiar o trabalhador para que ele possa ter alimentação, acesso à cultura, às férias, a tratamento odontológico e à informação de maneira adequada. Então subsidiamos.

Recentemente circulou abaixo-assinado para que o Sesc não perdesse recursos em função do Simples Nacional, o chamado Supersimples. Como ficou isso?
A lei ainda não entrou em vigor. Não temos certeza se as empresas vão aderir de fato ao Supersimples. Se todas as empresas que puderem aderir ao Supersimples o fizerem, o Sesc vai ter prejuízo. A nova legislação contempla o comércio, o que simplifica a vida das empresas, mas a forma não foi a melhor.

Nossa demanda cresceu. Temos cada vez mais gente freqüentando nossas unidades, seja comerciário ou não, e com isso aumenta o subsídio. Vamos chegar a um limite daqui algum tempo. Há um risco mais à frente de termos menos recursos para investir e maior dificuldade para manter o que já existe. Precisamos crescer de maneira muito cuidadosa, é preciso sustentar depois, seja com a programação, seja com parcerias. Temos um plano de expansão permanente, estamos crescendo em São Paulo, temos trinta unidades e várias estão em andamento, em Santo Amaro, no Bom Retiro, Belenzinho…

Por que a mudança da sede administrativa da Paulista para o Belenzinho?
Percebemos que poderíamos transformar o prédio na Avenida Paulista em uma nova unidade. Achamos conveniente passar para uma área do Belenzinho, uma unidade imensa, e ter uma nova unidade na Paulista, lugar de fácil acesso, ao lado da estação do metrô. Instalamos a administração numa antiga fábrica do Moinho Santista, com estacionamento, adequação, ambiente de trabalho, muito bonito do ponto vista do trabalho, e estamos construindo do lado nossa unidade nova, que vai ser a maior de todas. 

Tudo faz parte da filosofia que nos rege, como a aproximação com a zona leste, que é a maior da cidade de São Paulo. Muita gente estranhou: “Como? Deixar a Paulista, a sede dos grandes organismos financeiros, e ir para a zona leste?” É de propósito. A intenção é dar relevância a essa região da cidade, que está vivendo um momento de revitalização.

Quantas pessoas freqüentam as unidades do Sesc?
Entre 250 mil e 300 mil pessoas no estado, por semana. Algumas unidades têm mais, outras menos, o que dá mais de 1 milhão de pessoas por mês. Se a pessoa vai todos os dias, é contada todas as vezes. Mais de 80% é na capital. No alto verão há 25 mil pessoas num dia, nas trinta unidades.

Nossa filosofia é contemplar a inovação, a identidade nacional, o acesso, a democratização, o respeito a todas as tendências, e fazer o que os outros não podem fazer ou não querem fazer. O Sesc realiza muita coisa importante e necessária para a sociedade que outras instituições não têm interesse em fazer; ou fica a cargo de uma instituição pública, ou é feito por uma instituição como a nossa, que embora privada tem essa preocupação de ordem pública.

Quem pode contemplar, por exemplo, um artista como o Zé Celso, que tem uma proposta inovadora, transgressora do ponto de vista cultural, que assusta o estabelecido, até mesmo os mais progressistas? Ele é vital para nossa sociedade, ajuda a respirar, a enxergar o mundo. É um homem livre, e o artista que não for livre não é artista. O trabalho do Zé Celso não sobreviveria se não fosse o apoio público ou de instituições como o Sesc. Tem o Teatro Oficina, que é tombado pelo estado, e sua companhia muitas vezes se apresenta no Sesc.

E o trabalho com a identidade nacional?
Para conseguir um caráter nacional, temos de valorizar a produção do país, mas é preciso valorizar o global, tem de haver diálogo. Por isso trazemos tanta gente de fora e levamos coisas nossas para fora também. Tivemos algumas atividades no exterior, bancadas pelos países. Uma foi o grupo do Ivaldo Bertazzo com os meninos para Paris e Holanda e, recentemente, levamos uma coleção de arte naïf para Chicago. A exposição da arte popular do Molina foi para Paris no ano Brasil na França. Esse intercâmbio com o exterior é importante, educativo. Vamos trazer agora o Teatro de Soleil – não o Cirque de Soleil. Vai ser um fato extremamente relevante do ponto de vista cultural na cidade de São Paulo e no Brasil.

Como é a relação institucional com o Ministério da Cultura?
Há uma carência com relação aos órgãos da administração de cultura do país. Temos observado um esforço grande no sentido de buscar saídas, tem melhorado bastante. Realizamos alguns programas juntos. Há o programa Cultura e Pensamento, que organiza a reflexão e o debate sobre temas ligados à cultura no Brasil inteiro; há outro voltado para a arte popular e para as populações indígenas. Um índio de determinada tribo liga para o órgão responsável por captar as propostas e diz o que pretende fazer com relação a tradição, música, dança. Isso vira uma inscrição documentada, gravada em uma fita, e pode ser premiada. Naturalmente existe um acompanhamento da aplicação do recurso para ver o resultado, mas é tido como prêmio. Hoje temos uma relação muito aberta com o ministro Gilberto Gil e seu gabinete. É preciso avançar mais para definir de maneira mais clara que efetivo interesse para a cultura têm os diversos convênios, sem se deixar levar por influência do marketing, da publicidade e do lobby. Esse problema, embora com dificuldade, o ministério tem enfrentado. Não acho adequados pensamentos de ordem totalizante. Por exemplo, existe no Ministério da Cultura o Sistema Nacional de Cultura. Entendê-lo como forma de obter informação para facilitar decisões é bom. Mas vê-lo como forma de passar informação, captar recursos e ter algum tipo de controle do que se faz no campo da cultura é uma visão absolutamente perigosa e fascista. Acho que a primeira hipótese é a que prevalece e espero que assim seja sempre. Essas coisas em nível nacional, comissões, conselhos, me assustam. A diversidade da ação cultural exige certa liberdade, flexibilidade, desorganização, se assim você preferir. A transgressão é indispensável para criar, não haveria arte se não houvesse a transgressão, produtiva, criativa, inteligente. Na cabeça das pessoas que têm responsabilidade por administrar qualquer pedacinho da questão cultural, isso tem de estar presente. Se deixar se levar pela indústria cultural, que tem de dar resultado, lucro, está roubado. Há quem pergunte: “Qual é o seu produto?” Eu não tenho produto nenhum.

 

 

O novo comandante da inclusão digital

O assessor especial da Presidência da República, Cezar Alvarez, assumiu a coordenação dos programas federais de inclusão digital, e, com ela, também o desafio de consolidar dentro do governo as propostas de um Plano Nacional de Banda Larga. Para atualizar a estrutura de telecomunicações do país, ele defende a combinação de três ingredientes: um backbone público (como o disponível na Eletronet), eventualmente compartilhado com prestadores privados de serviços; a conversão das metas de universalização das operadoras de telefonia em instalação de backhaul (pontos de acesso banda larga), numa alternativa aos Postos de Serviços de Telecomunicações; e a inclusão de conexões banda larga móveis entre os quesitos das licitações das freqüências para a terceira geração da telefonia celular. 

Alvarez afirma que estão sendo analisadas as diversas ações federais de inclusão digital, mas ele já detecta duplicação de esforços, desperdícios e ausência de uma visão articulada de sustentabilidade. Para estruturar um Programa Brasileiro de Inclusão Digital, começou a compor comitês de trabalho com integrantes dos vários ministérios envolvidos no tema. A idéia é repactuar as iniciativas, fortalecendo a participação de governos locais, da sociedade civil e de empresas. De modo a evitar o que considera uma presença exagerada da União nos projetos. Cezar Alvarez, que é o responsável pelo programa Computador para Todos, adianta que o governo vai licitar entre 100 mil e 200 mil micros portáteis educacionais com software livre, para o projeto Um Computador com Aluno (UCA). A idéia é que os laptops sejam entregues até outubro. 

Como será a coordenação dos programas de inclusão digital, e a construção de um plano nacional de combate à exclusão digital?
Cezar Alvarez – Cada área continua com suas responsabilidades, seus projetos, suas prioridades, sua visão setorial e a legitimidade dela. Meu papel é ajudar a que essas áreas se conversem, se potencializem — da compra à capacitação e ao suporte —, e que evitem duplicação. Para que, juntos, sejamos capazes de criar novos programas ou ações que completem lacunas, nas muitas dimensões do papel do governo na inclusão digital — seja na dimensão pedagógica, ou de serviço e informação à cidadania, seja no uso, como governo consumidor, até no fomento dos telecentros, já na dimensão de política social. Superando a visão de telecentro de um único tipo.

Em algumas regiões, há telecentros que são um espaço quase único de cidadania. Por exemplo, no semi-árido, alguns têm papel estratégico na produção, ou para um pequeno núcleo de pescadores, ou numa região de agricultura familiar. Isso é uma experiência muito forte do Mdic (Ministério da Indústria), os telecentros adquirindo, cada vez mais, a dimensão de serviços. A idéia, então, é detectar lacunas e potenciais a explorar. De modo que as ações estejam incluídas em uma política estratégica, acordada em comum entre as diferentes partes, mas preservando as especificidades.

Já há um diagnóstico dos programas?
Principalmente na área dos telecentros, é evidente a duplicação, as lacunas e as dificuldades de construir uma visão comum da auto-sustentabilidade. É preciso trabalhar com parcerias, seja com mini-sociedades usuárias em torno de um telecentro, seja com aquele setor social, quando o telecentro está mais viculado a um serviço, ou sejam as lideranças daquela comunidade, ou o prefeito ou a prefeita. É preciso haver uma visão clara da capacidade de sustentação.

É lisonjeiro, mas preocupante, que, no primeiro mapa da inclusão digital, feito pelo MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia), via Ibict (veja a página 24), de 16 mil pontos, cerca de 11 mil sejam da União. É evidente a distorção, em um estado federativo com 27 unidades e 5,4 mil municípios. O governo federal não precisa abrir mão de fazer diretamente, mas tem que trabalhar de forma associada; tem que haver uma repactuação federativa. A partir daí, queremos desenvolver políticas de serviços, eventualmente fomentar aplicativos comuns. A capacitação, por exemplo, não pode ser digitação, alfabetização digital. Inclusão significa uma capacidade de obter, armazenar, produzir, criticar, modificar a informação que está na rede ou num banco de dados. Queremos ampliar e atualizar o conceito de inclusão com essa dinâmica mais ampla. E também como instrumento para aumentar a possibilidade do emprego, de capacitação profissional. São questões em fase de diagnóstico, depois serão hierarquizadas, e nós teremos um plano de ação mais efetivo, com metas, responsabilidades, indicadores, custos. É uma repactuação.

Em que prazo será possível ter esse plano e essa repactuação?
Ainda estou apresentando [a idéia] aos ministros, cujas áreas têm atuação nesse mundo da inclusão digital. E eles estão designando dois assessores para trabalhar comigo. Um será um quadro técnico, que formará uma coordenação operacional, em que trabalharemos juntos dez, 12, 15 ministérios. Estou dizendo que gostaria que fosse um quadro técnico e que, no mínimo, 20% do seu trabalho pudesse ser para essa ação. Depois, a idéia é constituir um comitê técnico-político, com os secretários das áreas, com visão das grandes diretrizes.

Outra dimensão é que essa articulação do governo federal discuta federativamente com as entidades de prefeitos e governadores, seus secretários de Educação, Indústria e Comércio, Ciência e Tecnologia, com os movimentos sociais, as ONGs que trabalham o tema; e, principalmente, com os diferentes ramos das empresas envolvidas — equipamentos, área de transmissão, internet, conteúdos, aplicativos. Para — e aí é uma meta bastante ambiciosa — criar aquilo que poderemos chamar de um Programa Brasileiro de Inclusão Digital. Porque a gente percebe que diferentes setores sociais gostariam de ter uma mesa, onde pudessem conhecer cenários de longo prazo e onde cada qual conhecesse as estratégias dos principais atores, para definir suas estratégias comerciais, empresariais, sociais, governamentais, estabelecendo um mix, sempre rico no desenvolvimento de um setor, de colaboração e competição. Isso passará pela maturação das empresas brasileiras, que vão ter que perceber que o Estado é um parceiro. Mas não se pode reduzir a discussão à diminuição de tributos; tem de incluir a produtividade, a competividade e a contribuição que cada empresa poderá dar para inclusão digital.

As ações federais de inclusão digital têm metodologias muito distintas. Seria possível definir requisitos mínimos?
É preciso trabalhar no fio da navalha entre a especificidade, a história, a cultura que originou e em que se relaciona um determinado programa com um determinado ambiente social, e os elementos comuns que podem dar a ele mais efetividade, menor custo. Não posso padronizar num standard que não contemple a diversidade. Mas, hoje, há muito mais dispersão e desperdício do que homogeneização e pasteurização. Eu diria que está desbalanceado. Por isso, não por acaso, o presidente [Lula] disse: ‘’vamos trazer à Presidência, ao meu gabinete, porque percebo que cada órgão tem sua própria história, sua cultura e é sempre muito cioso da sua autonomia. Mas, sem ferir a autonomia de ninguém, vamos trazer para cá”. É uma decisão muito ponderada do presidente.

Evidentemente, se uma coisa é capaz de ganhar escala, por exemplo, ao ter um banco de dados mínimo, um banco de aplicativos, ou na área de capacitação, de manutenção, e até na área da compra, da licitação, há um longo caminho a percorrer, mas que trará eficácia e efetividade a um sistema de inclusão digital. Quando eu falo em inclusão digital não falo apenas da cultura de um usuário na ponta, mas também do atendimento do SUS, do cidadão sendo informado do seu benefício na Previdência, ou da vaga na escola. Também estou pensando numa cultura a que o brasileiro médio já tem determinado acesso, em algumas tecnologias com as quais ele já está familiarizado, como a tecnologia bancária, ou o celular. É preciso ver, também, essa dimensão de serviços de governo, e de serviços para uma determinada comunidade produtiva. Uma das primeiras tarefas é atualizar esse diagnóstico. Mais do que um cálculo contábil, é uma avaliação da efetividade de cada proposta, do benefício. Dar uma olhada lá no princípio que gerou determinado serviço ou equipamento e ver o que ele alcançou, que resultados tem. Tentar, de forma não-burocrática, medir a efetividade das ações do governo.

Como a sua coordenação se articula com um Plano Nacional de Banda Larga? E como deveria ser esse plano?
Há um tema que perpassa tudo. É o compromisso do governo, explicitado cabalmente pelo presidente no seu discurso, em primeiro de janeiro, que inclusive parou no meio da leitura e disse: “vou repetir”. E o que ele tinha lido e repetiu? “Até 2010 todas as escolas públicas brasileiras terão equipamento de informática com conexão à internet em banda larga.” Esse compromisso é o que vai mover esse grupo. Todas as ações que tivermos e fizermos estarão nessa direção: o tema da banda larga, chegando nas escolas e, aí, iluminando os municípios. A combinação da ação pública — eventualmente estatal — com a realidade de mercado é a grande busca do equilíbro, daquilo que é capaz de ser provido pelo mercado e, aonde o mercado não vai, porque o seu investimento e retorno não configuram bom negócio, o governo ou os governos terão que ir.

Nesse sentido, a discussão de um backbone estatal deve ser vista com muita normalidade. Se é um backbone que estará, também, com backhaul e depois com os pontos de acesso, todo numa dinâmica exclusivamente estatal, é uma discussão que vejo com reserva. Agora, um grande backbone nacional que possa ser utilizado em comum, e a partir daí a distinção se faça na disputa de serviços no mercado, com todos os prestadores, é a idéia de que não dá mais para duplicar. Queremos ver como podemos articular uma estrutura em que o mercado mantenha sua competição, com sua distinção de preço e qualidade, e, eventualmente, possa ser acordada uma infra-estrutura mínima e compartilhada. É menor custo, maior lucro e menor preço para o consumidor, e maior capacidade de incorporar tecnologia.

Estamos maduros para acelerar essa discussão. Claro que ela tem que observar lacunas legislativas, questões de convergência tecnológica e um mercado que, na área de telecomunicações, se reconcentra. Mas, no final de junho, termina o prazo, já prorrogado, para as operadoras de telefonia fixa começarem a implantação dos Postos de Serviços Telefônicos (PSTs). Por isso, estamos trabalhando com o Ministério das Comunicações, com enorme urgência, para vermos a densidade jurídica, tecnológica e empresarial da hipótese de converter obrigações do PST em construção de backhaul. Essa é uma discussão que, como anunciou o ministro Hélio Costa, está no seu jurídico e será trazida ao presidente [Lula] nesse período. Essa proposta não é excludente, mas complementar à discussão sobre a construção de um backbone nacional, em que entram as alternativas daquele sistema que já existia na Eletronet.

Se abrirmos o leque da atuação pública e privada para acelerar a banda larga nas escolas, tem mais uma dimensão que é a terceira geração do celular. As licitações [da Anatel, para venda das freqüências da 3G] podem combinar preço da licença e cobertura dos serviços banda larga. Na licitação da 3G, o ministro Hélio Costa não exclui que ganhe quem tiver preço x, mas também quem fizer conexão em banda larga em mais municípios. Então, no mínimo, já estou com três moedas para banda larga: estrutura própria, conversão de PST e 3G. Temos que acelerar essa discussão dentro do governo.

A idéia de uma coordenação é combinar essas ações, que significam a atualização da infra-estrutura de telecomunicações no Brasil, o que é estratégico para um projeto de desenvolvimento. Qual é a dimensão que banda larga não perpassa? Não é um projeto de governo, é um projeto de Brasil, de sociedade. Nesse quadro: da convergência, complementaridade, conteúdos, legislação.

Quais os próximos passos do projeto Um Computador por Aluno (UCA)?
Estamos batendo o martelo que vamos comprar entre 100 mil e 200 mil computadores. Vamos fazer uma licitação: se virá XO [o modelo da ONG OLPC], Classmate [da Intel], Mobilis [da Encore], não sei; será um computador, um device educacional. Equipamentos móveis para a sala de aula. O computador chegará apenas em outubro. Até instalar, treinar professores, começará, de fato, na sala de aula, a partir de 2008.

A Positivo vai fabricar o XO?
A Positivo, mais do que fabricar o XO, quer fazer um acordo de distribuição e suporte. Porque o XO é de uma ONG, que está fazendo um acordo operacional. Mas, depois, e o transporte, e o suporte, e a intalação e a distribuição? Estamos em novas fronteiras pedagógicas, tecnológicas e, inclusive, da compra pública. Vou iniciar uma conversa com o TCU (Tribunal de Contas da União), para contar como está o projeto. Porque é um mercado novo. Nenhum desses equipamentos está homologado na dimensão comercial. Haverá uma homologação de institutos de pesquisa, mas homologação de uso, não. Por que? Porque o [Nicholas] Negroponte [pesquisador do MIT, que liderou a proposta do XO e a criação da OLPC] quebrou o paradigma que ele se propõs a quebrar, que é: para revolucionar o processo pedagógico, num mundo em que educação e aprendizado são permanentes, eu preciso das novas tecnologias. E o mundo dos fabricantes só se preocupa com o bilhão de terráqueos que consomem, e não com os outros 5,6 bilhões que não consomem, e que são a juventude pobre dos países. O Negroponte disse: eu vou fazer a indústria produzir um equipamento que baixe o preço. E a Intel já está fazendo.

No que consiste o UCA?
O UCA é uma atividade de governo muito ampla. Envolve tecnologia e envolve política industrial. Se tiver que comprar o UCA no exterior, até compro, no primeiro momento. Mas, depois, quero uma associação que envolva produção nacional. Será que vou conseguir trazer uma fábrica de semicondutor para o Brasil? Não sei. Quem sabe, consigo trazer algumas das grandes áreas do display — o backlight, por exempo? Há áreas de ponta, em que se deve ver onde se pode estimular, se associar, ou ter políticas industriais para adensar a cadeia, enfrentar diversidades regionais.

A Microsoft anunciou pacote de aplicativos a US$ 3,5. A opção pelo software livre tem a ver com custo ou estratégica tecnológica?
Tem a ver com o desenvolvimento da inteligência, com a capacidade de desenvolver e adaptar aplicativos para nossa diversidade étnica, cultural, territorial e social, além dos elementos de segurança. A compra brasileira do computador educacional será feita com sistema operacional aberto, um volume de aplicativos, e a capacidade de desenvolver esses aplicativos. O preço é importante, mas não é o único elemento de uma aquisição. Sem falarmos que, nas disputas comerciais legítimas que existem no mundo, não vamos ficar refém de políticas de dumping ou, depois, de exclusivismo e dependência tecnológica. O Brasil não ficará, nos seus limites, evidentemente, refém de política tecnológica naquilo que ele tem conhecimento. Estudo da Universidade de Maastricht, na Bélgica, patrocinado pela União Européia, identificou, no Brasil, 541 desenvolvedores de software livre, o maior número entre os países pesquisados, com a Argentina em segundo lugar.

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Em busca da democracia comunicacional

Mattelart esteve no Brasil durante o III Enecult para afirmar que o bom momento de diálogo sobre políticas culturais é resultado da evolução do pensamento sobre cultura nascido no fim dos anos 60 e calado pelo pensamento neoliberal entre os anos 80 e 90: “A Convenção da Unesco sobre a Diversidade Cultural", aprovada em 2005, legitima esse pensamento da cultura dissociada dos grandes meios de produção”.  

Em entrevista exclusiva ao 100canais, Mattelart foi explicativo ao relembrar o nascimento e o silenciamento dos debates sobre diversidade e criticou o distanciamento visionário dos movimentos sociais sobre cultura e avaliou positivamente a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, mas pontuou que nada adianta o trabalho do Gil se o Ministério das Comunicações não compartilha dos mesmos princípios de empoderamento que a diversidade cultural pode proporcionar. 

“Todo esse debate é sobre o que é uma democracia comunicacional. Como implantar uma política cultural pela diversidade cultural se a política de comunicação tira das mãos da sociedade as ferramentas e tecnologias para exercer seus direitos? É preciso abrir o acesso das rádios comunitárias, abrir o espectro, democratizar”, atacou Mattelart, sobre o ministro das Comunicações, Hélio Costa, que defende os interesses dos grandes radiodifusores. 

Leia os principais trechos da entrevista:  

De onde vem o conceito de “políticas culturais”?
Armand Mattelart – Tradicionalmente, a noção de políticas culturais nasce a partir da discussão internacional da Unesco, no princípio dos anos 70. A discussão sobre políticas culturais surge com o aprimoramento da visão de democratização do acesso aos bens culturais. Até então, predominava a leitura sobre cultura nos pensamentos do Iluminismo. O interessante é que, ao mesmo tempo, a relação de força entre as delegações dos países do sul e do norte na Unesco ficou equilibrada. Os países do terceiro mundo eram maioria. Assim, a problemática da relação entre a comunicação e os povos virou pauta. E, mais tarde, na Conferência da Unesco no México, em 1982, já se reivindicava a necessidade de políticas culturais, com princípios antropológicos. Com isso, avança a consciência de elaborar políticas de democratização da comunicação, para que seja respeitado o que se denominou direito humano à comunicação. Isso se legitima no relatório “Um Mundo, Várias Vozes” de McBride. E foi no México que, pela primeira vez, reivindicou-se que políticas de democratização da comunicação andassem juntas com políticas culturais. 

Mas a Unesco perdeu força depois disso…
Sim. Os Estados Unidos e a Inglaterra abandonaram a Unesco. Sendo eles os grandes patrocinadores do órgão, a Unesco ficou enfraquecida. Depois de um tempo, houve um momento de hibernação sobre os debates dessa questão. O que ocorre é que a Unesco progressivamente voltava a compreender a cultura relacionada às problemáticas da sociedade. Passou-se a discutir, então, o problema das indústrias culturais, sistemas e concentração da comunicação, o diálogo das culturas. E a Convenção da Unesco sobre a Diversidade Cultural, aprovada em 2005, legitima esse pensamento da cultura dissociada dos grandes meios de produção. A sociedade civil envolvida nesse processo, nesse pensamento, passou a compreender que não é possível então estabelecer políticas culturais sem pensar também políticas de democratização dos meios de comunicação. É impossível pensar políticas culturais dissociadas das políticas de comunicação. Há necessidade de descentralização dos meios de comunicação. Acesso à palavra. Acesso às ondas de rádios. Diversidade cultural. 

E como a Convenção se concretiza de fato em políticas nos países que a ratificaram?
Primeiro é fundamental lembrar que essa movimentação toda trouxe os Estados Unidos de volta para a Unesco. Que votou, junto com Israel, contra a Diversidade Cultural. Agora, em todos os países, até mesmo na França [que, segundo Mattelart, tem grande tradição na implantação de políticas culturais] a visão de identidade nacional ainda está associada à expressão de seus grandes campeões, de seus ídolos. Quando os movimentos sociais estiverem participando de forma mais efetiva e utilizá-la como instrumento e fim de suas lutas, percebendo que a cultura é transversal a todos os outros direitos reivindicados, avançaremos. 

Como a academia está trabalhando a relação com o Estado nessa questão hoje?
No princípio dos anos 80, houve um processo de desregulamentação conceitual. Com a entrada das desregulamentações das políticas, gerada pelo processo de globalização, todos perderam a noção do que é política pública. E a unidade acadêmica acaba refugiando-se nos novos conceitos neoliberais. Só depois surge a proposta de quebra com o conceito anti-globalização e com a proteção das expressões culturais. Eu penso que é muito concreto que, nos anos 80 e 90, a universidade caiu no culturalismo. Um dos índices que nos apontam isso é a proliferação de estudos sobre consumo cultural em contraste com a ausência no estudo da produção. Hoje, acredito que é possível tratar a cultura não apenas no economicismo e nem no culturalismo. Reconciliar os aspectos da cultura é fundamental. A economia política da comunicação e da cultura precisa ser abraçada pela academia. 

Gostaria que o sr. fizesse uma avaliação de Gilberto Gil no Ministério da Cultura do Brasil.
É positiva minha avaliação sobre Gilberto Gil. Mas o importante é que o Ministério das Comunicações não compartilha da mesma visão sobre a comunicação e a cultura que Gil e sua time. Todo esse debate é sobre o que é uma democracia comunicacional. Como implantar uma política cultural pela diversidade cultural se a política de comunicação tira das mãos da sociedade as ferramentas e tecnologias para exercer seus direitos? É preciso abrir o acesso das rádios comunitárias, abrir o espectro, democratizar. O Gil é bom, mas não é o ideal, porque seu governo não compartilha de sua visão. 

(*) Carlos Gustavo Yoda cobriu o evento a convite da organização.

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“Classificação não é controle de conteúdo”

Publicada no início deste ano, a portaria nº 264 – que estabelece as novas regras para a classificação indicativa na programação de TV – é considerada um avanço por entidades de defesa da criança e do adolescente, por emissoras educativas, pelo Ministério Público e outras instituições ligadas ao tema. A norma cria a autoclassificação, no qual as emissoras de TV são responsáveis por definir a faixa etária recomendada para determinado programa. Em entrevista, o Secretário Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, Antonio Carlos Biscaia, aborda a importância da classificação indicativa na proteção da criança e do adolescente e os questionamentos apresentados pela Abert com relação a algumas regras da portaria, e reitera a forma democrática como a legislação foi construída ao longo dos dois últimos anos.

A portaria atual que regula a classificação indicativa no Brasil está sendo questionada por algumas emissoras de TV. Como foi o processo de elaboração dessa lei?
Antônio Carlos Biscaia
– Primeiro é importante assinalar que a classificação indicativa está prevista no texto da Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente. É dever do Ministério da Justiça normatizar essa classificação indicativa. A partir de 2003, o Ministério iniciou, da forma mais democrática possível, diversas audiências com instituições e entidades que têm alguma relação com o tema: rádio, televisão, a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) e as entidades civis relacionadas com os direitos da Defesa da Criança e do Adolescente e o Ministério Público. E a partir daí foi elaborada uma portaria, a 264 com 90 dias de prazo para vigência em 13 de maio de 2007. Essa Portaria representa  um avanço porque consagra a auto-classificação, o que não havia na regulamentação anterior. Na semana anterior à vigência integral da mencionada Portaria, a Abert solicitou a reabertura da discussão do tema e apresentou uma pauta de itens para reavaliação do Ministério. Nós recebemos também uma carta aberta ao ministro da Justiça, assinada por mais de 100 entidades e pessoas, defendendo a portaria integralmente. A carta é assinada pela Pastoral da Criança e do Adolescente, ex-ministros da Justiça, Associação Brasileira de Emissoras Educativas, pelo presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e assim por diante.

Quais são os principais pontos que estão sendo questionados pela Abert?
Aquilo que é ponto essencial: não querem que a classificação indicativa estabeleça vinculação horária, querem que apenas se estabeleça a faixa etária. Ou seja, apenas que se diga se o programa é livre ou não, mas não que, em conseqüência disso, ele não poderá ser veiculado nesse ou naquele horário. A outra ponderação é a que refere ao fuso-horário. Os horários das regiões do País têm diferença de duas e até três horas, e que o programa, segundo eles têm dificuldade de ter um horário diferente. Da mesma maneira, estão questionando uma exigência de que haja a indicação da classificação indicativa em Libras (Língua Brasileira de Sinais). Eles querem que isso só seja implantado depois da implantação do Sistema Brasileiro de TV Digital. Nós vamos analisar todas as ponderações das partes e tomar uma decisão final.

Até que essa decisão seja tomada, a portaria está suspensa?
Não. Apenas o Ministério baixou uma outra portaria adiando por 45 dias a vigência dos artigos 15, 20 e 21 (que são objeto de questionamento pela Abert). O artigo 19 já havia sido suspenso por determinação judicial liminarmente pelo Superior Tribunal de Justiça (é o que estabelece a vinculação entre faixa etária indicada e horário para veiculação do programa). Vamos analisar as questões porque nós tivemos uma posição de transigência de abertura democrática, que não foi um recuo, foi mais uma vez uma demonstração de que aceitamos ponderações.

Alguns veículos de comunicação atribuem à portaria nº 264 uma forma de controle por parte do governo com relação ao conteúdo televisivo.
Isso não tem a menor procedência. A edição da Portaria não significa de forma alguma qualquer lesão ao direito constitucionalmente assegurado de livre manifestação de expressão. A classificação indicativa é uma recomendação, não é impositiva. Mas, para que ela produza eficácia, em primeiro lugar, é necessário que as emissoras divulguem se aquele programa é adequado ou inadequado para determinada faixa etária. Essa recomendação deve ser veiculada. Diante dessa recomendação é que os pais vão exercer o poder familiar. Se a criança, por exemplo, tem oito anos de idade, o pai deve ter condições de avaliar se o programa a ser exibido deve ou não ser assistido por seu filho. Nós sabemos que o papel mais importante é da família no sentido de cumprir aquilo que significa formação dos seus filhos. E o papel do Estado, do Ministério da Justiça em especial, é apresentar a recomendação para permitir que isso seja feito. Agora, a não regulamentação da classificação indicativa pode até configurar uma prevaricação dos agentes responsáveis. Nós temos que tomar uma posição. 

Qual a perspectiva do governo de que a portaria esteja integralmente em vigor?
Até final do mês, teremos estas questões decididas. A única decisão que ficará pendente é aquela referente ao artigo 19 (que vincula exibição horária com a faixa etária), que depende de decisão da Justiça. Das ponderações apresentadas pelas entidades, algumas poderão ser acatadas, desde que não afetem a essência da portaria. Aquilo que afetar a essência, em princípio, não será modificado. Todas as sugestões serão analisadas e a palavra final será do ministro. A partir dessas ponderações, será editada uma nova portaria que terá aplicação imediata.

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