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Os desafios da TV pública

Responsável por uma missão nada fácil, presidir a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a rede pública de TV lançada em dezembro pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva, a jornalista Tereza Cruvinel é taxativa ao afirmar que o direito à informação, através de um bom jornalismo, será um dos pilares da programação que está sendo fechada para entrar no ar em março. 'Que não seja chapa-branca nem confunda independência com obrigação de fazer oposição ao governo', ressalta.

A TV Brasil está subordinada a um Conselho Curador, formado em sua maioria por representantes da sociedade civil, de variadas correntes de pensamento, de diferentes regiões e formações profissionais, e que terá, além da fiscalização, a responsabilidade de zelar pela natureza pública da TV, propondo linhas de programação, definindo a política editorial e acompanhando, através de grupos de trabalho, as diferentes faixas de programação.

Cruvinel assume que a trajetória é longa e árdua, mas se mostra disposta a enfrentar o desafio, e promete avanços para ainda este ano. 'Na implantação, na construção da rede, mais e melhor jornalismo, um grande programa de fomento à produção independente, contemplando animação, dramaturgia e documentários, mais os sinais concretos de que a TV Brasil será pública e não governamental', diz.

Tribunda da Imprensa – Qual é a caracterização de uma TV pública?
Tereza Cruvinel – A TV pública, nos países que têm um sistema público de comunicação, juntamente com o privado e o governamental, deve ser entendida como um serviço público. O Estado pode financiá-lo total ou parcialmente, mas a sociedade deve exercer um controle social sobre esta atividade.
Neste sentido, a TV pública não deve estar subordinada nem às regras do mercado nem ao poder político, mas sim a um organismo de representação com poder efetivo. No caso da TV Brasil, ao Conselho Curador, que tem maioria de representantes da sociedade civil. É bom lembrar que a Constituição, no artigo 223, prevê o sistema público de comunicação.

Quais as diferenças em relação às TVs comerciais?
Basicamente, uma diferença de programação. A natureza não-comercial da TV pública possibilita a abertura de espaços para o debate das questões de interesse público, nacionais ou locais. Deve ainda espelhar em sua programação a diversidade cultural de um país continental como o Brasil, incorporando informações sobre as realidades regionais e valorizando a produção das TVs públicas associadas. Deve, ainda, assegurar espaços de veiculação para a riquíssima produção áudio-visual independente, que tem oportunidades restritas na TV comercial. E, por último, mas não menos importante, ajudar a garantir o direito à informação, através de um bom jornalismo. Que não seja chapa-branca nem confunda independência com obrigação de fazer oposição ao governo.

E em relação a uma estatal?
As TVs estatais são essencialmente governamentais, controladas por um dos três poderes: NBR, do Executivo Federal, TV Câmara, TV Senado, TV Justiça, etc. Até a própria Radiobrás, antes de sua absorção pela EBC. A TV Brasil não exibirá programas de caráter governamental. Para divulgar seus atos e realizações, o governo usará o canal governamental a cabo, o NBR, que no futuro deve ser aberto. A TV Brasil será generalista, terá faixas de programação diversas, mas com aquele foco que mencionei: cultura, cidadania, informação.

Quais foram as principais linhas que nortearam o governo no patrocínio da TV pública?
O governo acolheu uma demanda de amplos setores da sociedade brasileira, a exemplo dos movimentos pela democratização das comunicações, comunicadores, TVs do campo público, entre outros, e que participaram do Fórum pela TV Pública. Este fórum entregou ao presidente Lula a Carta de Brasília, cobrando o cumprimento do artigo 223 da Constituição. Naquele momento, ele se comprometeu com a proposta e depois encarregou o ministro Franklin Martins de implantá-la. O ministro, por sua vez, criou um grupo de trabalho que estudou as experiências existentes e formulou uma proposta mais adequadas à nossa realidade. De modo que foi esta, basicamente, a origem do projeto que estamos implantando.

Como será feito o financiamento da nova TV?
A MP (Medida Provisória) que está no Congresso prevê, como fonte de financiamento, dotação orçamentária, publicidade institucional (vedada a publicidade de produtos e serviços), apoios culturais, doações e prestação de serviços. O relator, deputado Walter Pinheiro, está propondo, ainda, a vinculação de uma parcela do Fistel (Fundo de Fiscalização das Telecomunicações), o que daria uma saudável segurança e uma desejável autonomia financeira para a TV pública.

Qual balanço das transmissões feitas até o momento?
Em três semanas de gestão, acho que avançamos bastante. Unificamos a programação da TVE e da Radiobrás, colocamos no ar um telejornal que está sendo retransmitido em 18 estados, por emissoras do campo público.
A grade resultante da fusão está sendo administrada com melhoras, a exemplo da excelente programação de filmes nacionais e de documentários. Avançamos na construção da rede e houve a posse do Conselho Curador. Agora, é preciso algum tempo para renovarmos a programação, e em televisão isso não acontece da noite para o dia.

E o cronograma previsto?
Dentro de dois ou três meses vamos ter uma identidade visual definitiva e alguma renovação da programação. Isso é um processo, agora é trabalhar, mas com planejamento e persistência.

A TV Pública dispõe de um Conselho Curador, composto por 20 pessoas, cuja responsabilidade será fiscalizar o conteúdo, com o fim de evitar o risco de manipulação política. Quais os parâmetros para a fiscalização?
A função do Conselho vai além da fiscalização. Ele vai zelar pela natureza pública da TV, propondo linhas de programação, definindo a política editorial, acompanhando, através de grupos de trabalho, as diferentes faixas de programação. Dos 20 conselheiros, 15 são representantes da sociedade, de variadas correntes de pensamento, de diferentes regiões e formações profissionais. São personalidades de destaque em suas áreas de atuação, de elevado conceito e credibilidade, aptos a julgar a qualidade do serviço prestado pela TV pública. Os membros do Conselho irão aprovar anualmente um plano de trabalho e fiscalizar a sua implementação, tendo poderes, inclusive, para aprovar voto de desconfiança ao diretor-presidente, a um diretor isoladamente ou a toda a diretoria, como ocorre em TVs públicas bem sucedidas em outros países. Os nomes são conhecidos, variados e respeitáveis.

O Conselho Curador, na prática, será suficientemente ágil para evitar a intromissão do governo no desenvolvimento de um jornalismo independente?
O presidente do Conselho, Luiz Gonzaga Beluzzo, já disse que denunciará a primeira tentativa de manipulação política que for identificada. Não creio que isso vá ocorrer. A diretoria faria o mesmo diante de eventuais pressões. Agora, não basta acreditar no Conselho, é preciso que a própria sociedade tome a TV pública como coisa sua, e seja vigilante. Acredito que a sociedade não ficaria passiva diante de uma TV chapa- branca, subordinada a interesses políticos. Ela disporá, para sua manifestação, da Corregedoria do Conselho e da Ouvidoria, em nível de diretoria.

Quais serão os mecanismos de controle social implantados?
Além do Conselho Curador, a TV Brasil contará com uma Ouvidoria bem equipada para receber as sugestões e críticas dos telespectadores. Também estão no ar os sites www.tvbrasil.org.br e www.ebc.tv.br, com enquetes para conhecer o gosto do público e um espaço para mensagens e dúvidas do internauta. Vamos aprofundar as consultas públicas. Este conjunto de instrumentos propiciará uma inter-relação intensa com a sociedade. Estamos abertos a adotar outros mecanismos que sejam sugeridos, sejam viáveis e eficientes.

Quais serão as diretrizes do jornalismo da TV Brasil?
Jornalismo plural, isento, com foco no cidadão, muito voltado para a diversidade do Brasil, embora atento ao que acontece na superestrutura social: governos, Congresso, instituições. Mas pensando o Brasil como um todo e invocando sempre, ao construir uma pauta, o que seja de interesse público.

Não será possível a interferência na linha editorial da nova TV frente à abertura de publicidade institucional de empresas de direito privado?
Publicidade institucional produz uma receita tão residual que não permitiria este poder ao anunciante.

Como será feita a contratação do corpo funcional?
A EBC, empresa gestora do sistema publico de comunicação, vai absorver todos os funcionários da TVE e da Radiobrás. Contratações novas serão muito poucas, para cargos de confiança restritos, por análise curricular, como permite a MP, pelo prazo de 90 dias. Para futuras contratações, por concurso.

E neste processo, como fica a situação dos servidores celetistas e estatutários da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp)?
O contrato de gestão entre a União e a Acerp está sendo renovado, preservando os contratos funcionais dos celetistas e renovando a cessão dos estatutários.

Existe o perigo de demissões?
Não há plano de demissão.

Na sua opinião, qual será o grande diferencial da TV Pública no que tange aos debates sociais?
Queremos mais programas de debate. Há poucos na televisão brasileira e o melhor deles, o Roda Vida, é feito por uma TV pública, a TV Cultura de São Paulo.

De que forma serão postos em prática tais diferenciais?
Pela diretoria, com absoluta autonomia. Temos trabalhado com absoluta liberdade, correndo o risco de acertar e de errar. E agora, desde o dia 14 de dezembro, em sintonia com o Conselho.

Outros meios, como rádio e internet serão contemplados?
Sim, todas as emissoras federais passarão a ser exploradas pela EBC. São elas a Rádio Nacional AM, Rádio Nacional FM (Brasília), Rádio Nacional da Amazônia (OC),Rádio Nacional AM-RJ, Rádio Mesorregional do Alto Solimões (AM-Tabatinga) e, no âmbito da Acerp, as rádios MEC AM e FM, esta última retransmitida em Brasília. A Agência Brasil, portal de notícias da Radiobrás, será fortalecida como provedor de conteúdos de livre acesso. Nosso sistema de Web contemplará, é claro, a convergência tecnológica.

O que a TV Pública promete para 2008?
Avanços na implantação, na construção da rede, mais e melhor jornalismo, um grande programa de fomento à produção independente, contemplando animação, dramaturgia e documentários, mais os sinais concretos de que a TV Brasil será pública e não governamental. Já estará de bom tamanho tudo isso.

As relações entre esfera pública e democracia

Professora assistente da Universidade Federal de Sergipe e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência Sociais da Universidade Federal da Bahia, Messiluce da Rocha Hansen tem conseguido alcançar, nos últimos sete anos, patamares de prestígio na comunidade acadêmica dos estudos das políticas públicas de comunicação no Brasil.

Tendo publicado em 2007 seu primeiro livro, “Esfera pública, democracia e jornalismo”, Messiluce Hansen tem experiência na área de Teoria Política Contemporânea, atuando principalmente nos temas que envolvem cidadania e representações sociais.

Em entrevista para o Boletim de Notícias da Rede Eptic, a professora fala sobre a relação entre liberdade de imprensa e democracia, destaca o processo de monopolização das empresas de comunicação e defende a pluralidade de discurso na esfera pública. Messiluce trata ainda do surgimento da rede pública de comunicação no Brasil, abordando o panorama do mercado de televisão, e revela que a TV pública pode proporcionar maior participação da sociedade civil na produção de conteúdo. Confira na íntegra a conversa:

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Em seu livro – Esfera Pública, Democracia e Jornalismo -, a senhora estabelece uma estreita ligação entre liberdade de imprensa e democracia. Como se estabelece a relação entre liberdade de empresa e liberdade de imprensa?
É preciso fazer uma pequena contextualização, salientando, mesmo que de forma bastante breve e superficial, a relação que há entre o modelo de democracia liberal e capitalismo. Existe, no próprio nascedouro da imprensa profissional, uma estreita relação entre as liberdades civis, entendidas como liberdades de expressão, de opinião e de reunião, a contestação ao poder vigente e a própria defesa que a burguesia faz do modelo de democracia liberal, incorporando também os elementos do modo de produção capitalista.

Há uma ênfase também na liberdade de empresa, que é a liberdade que as pessoas têm de trabalharem e produzirem o capital. Isso tem gerado confusão no tratamento da liberdade de imprensa, porque muitas vezes se confunde liberdade de imprensa, que é uma liberdade institucional ancorada nas liberdades civis, com a liberdade de empresa, que é a liberdade para atuar no mercado. Percebe-se, sobretudo a partir da década de 60, um processo de monopolização das empresas de comunicação, onde o setor de comunicação vai ser, não apenas dominado por empresas capitalistas, mas também por um número cada vez mais restrito de empresas de comunicação. Isso constrói um modelo social bastante complexo e, do ponto de vista democrático das liberdades democráticas e civis, é preocupante, porque se trata de uma ameaça significativa a um dos elementos fundamentais da democracia, que é a liberdade de expressão e de opinião, e à presença de uma pluralidade de discursos na esfera pública.

A importância dessa pluralidade de discurso na esfera pública é a existência de uma diversidade de abordagens, de discursos ideológicos que permitam que as pessoas que consomem informação pelos meios de comunicação de massa possam formar, de maneira crítica e autônoma, a sua opinião. É preocupante quando se tem um quadro em que as empresas de comunicação capitalistas dominam limitam o que pode ser difundido e divulgado na esfera pública.

A relação que eu faço entre a liberdade de imprensa e a liberdade de empresa é exatamente a partir de um posicionamento crítico. Atualmente, se observarmos tratados internacionais que abordam a questão da liberdade de informação e liberdade de comunicação, perceberemos que elas se apóiam em elementos da democracia liberal, na defesa dos princípios e valores capitalista, defendendo livre fluxo da mercadoria informação, sem atentar, por exemplo, para um aspecto fundamental, que é a liberdade de comunicação. Esta, com uma base muito mais social, abrindo também uma perspectiva para a participação não apenas dos setores capitalistas da comunicação, mas também daqueles setores não privados da comunicação, dos setores da sociedade civil.

Então, o aspecto que eu poderia pontuar é exatamente essa questão de que hoje há uma defesa, inclusive dentro das normas vigentes, da liberdade de empresa, e que essa liberdade de empresa não garante a efetiva liberdade de expressão, de opinião, de manifestação na sociedade complexa como a nossa.

A senhora ressalta em seus textos que os canais sociais de publicidade são uma das principais arenas de conflitos travadas a níveis simbólicos e acabam desenvolvendo uma distribuição desigual do poder. Nós podemos relacionar esse evento à decadência da esfera pública?
A tese da decadência da esfera pública foi uma tese desenvolvida pelo Habermas, ainda na década de 60, em um livro clássico dele, “A Estruturação da Esfera Pública Burguesa”, onde ele falava que a vigência dos meios de comunicação de massa e a indústria cultural teriam contribuído para o esvaziamento normativo da esfera pública. Nesse sentido, a opinião já não era formada pelo conjunto da sociedade em uma discussão pública e racional, ela teria se transmudado numa opinião construída de cima para baixo, imposta pelos meios de comunicação de massa.

Posteriormente, Habermas reviu essa questão, porque sua tese inicial não lidava com a própria complexidade da esfera pública e a complexidade dos meios de comunicação de massa. Isso porque ele não entrava na minúcia, por exemplo, da presença de sistemas públicos de comunicação, rádios e TVs públicas, nem dos canais de comunicação alternativos da sociedade civil, as chamada rádios livres. Ele não avaliou os detalhes da pequena imprensa diante de um quadro dominado pelas grandes corporações. Há ainda uma presença marcante dos movimentos sociais e seu trabalho na construção de uma opinião pública informada e crítica.

Então, a partir desse marco, que se coloca a partir da década de 80, quando Habermas vai adotar uma teoria mais pragmática da sua teoria da ação comunicativa, ele revê seu próprio conceito de esfera pública, que passa a ser visto como redes de esferas públicas, abarcando a esfera pública institucional do Estado, a esfera pública da sociedade civil propriamente dita, onde estão incluídos os movimentos sociais, e a esfera pública formada pelos meios de comunicação de massa.

Esses três modelos de esfera pública se interconectam. Para que o movimento social consiga ganhar visibilidade, ele precisa estabelecer pressão sobre a esfera pública midiática, de forma que o seu discurso ganhe ressonância social. Mas, não importa apenas a ele ganhar ressonância social e ganhar legitimidade frente à opinião pública. Eles também precisam pressionar a esfera pública do Estado formal, pois é nessa esfera que eles vão ter suas demandas atendidas, seja em ações do executivo ou ações do legislativo. Nesse aspecto, os canais sociais de publicidade são importantes porque farão com que as questões polêmicas da sociedade possam ser problematizadas.

Há uma resolução consensual do conflito, que pode gerar ou não ações na esfera pública do Estado. É isso que vai interessar aos movimentos sociais e à sociedade civil organizada. Mas acho que o principal fator a salientar é que a esfera pública não decaiu, não está morta. Ela mudou, se complexificou. Para entender a sua complexidade, é preciso entender tanto a complexidade do sistema midiático, nas suas subdivisões; o papel efetivo da sociedade civil e dos movimentos sociais no processo de luta constante pela democracia e a complexidade do próprio Estado e a necessidade que este tem para se manter democrático.

Quais as relações entre o público e o privado no mercado de televisão no Brasil? Como a senhora observa os processo de implantação de um modelo público de radiodifusão no país?
É preciso notar que vivemos um período em que há o surgimento de uma nova plataforma digital, que tem possibilitado um maior acesso à informação, não necessariamente jornalística, filtradas pelo jornalismo, mas também informações que a própria sociedade organizada passa a oferecer de forma direta. O problema é que o acesso à Internet ainda é muito restrito no Brasil. Atinge esferas restritas da classe média, que tem poder aquisitivo para consumir esses produtos e para ter acesso à educação necessária para isso.

Um elemento fundamental é que a maioria das informações sobre a política é difundida pela TV. E nós, no Brasil, tivemos um modelo de televisão dominado pelo modelo comercial. Nosso modelo de televisão é um modelo de concessão pública, mas essa concessão pública é concedida a empresas privadas que desempenham esse papel, um papel fundamental na democracia, porque eles têm o papel de manter essa relação entre a esfera do Estado e a sociedade como um todo.

É interessante notar, por exemplo, o surgimento agora dessa discussão da formação de uma rede pública de comunicação. Esse é mais um fator que traz novos elementos para se refletir sobre a oferta de informação na nossa sociedade, porque no modelo aberto de TV pública, a sociedade civil tem uma maior participação, seja na coordenação dessa instituição, no controle de instituição, ou seja, na produção de conteúdo. Isso vai fazer com que aquele aspecto fundamental do funcionamento de uma esfera pública possa realmente começar a ganhar novos nativos.

Pode-se haver uma situação em que a entrada de uma rede pública de comunicação, somada à rede já estatal de comunicação e à rede comercial de comunicação, possa ampliar os espectros dos discursos e das informações que circulam na nossa sociedade. Isso vai fazer com que, pelo menos em tese, o cidadão possa ter acesso a uma gama mais diversificada de enfoques sobre os acontecimentos. Este é um elemento fundamental porque a informação é um instrumento fundamental para a formação da opinião individual e para a formação da opinião pública de uma forma crítica, de uma forma autônoma, e é através dessa opinião que nós vamos, enquanto cidadãos, tomar decisões importantes sobre os destinos de nosso país.

Então, o grande elemento é ver como vai se configurar esse quadro, de que essa esfera pública midiática possa agora contar com um novo integrante que venha trazer uma maior diversidade para essa esfera de publicidade, que é a esfera pública midiática. No processo de licitação das concessões de rádio e TV, um elemento que é fundamental é a produção local e a regionalização da produção. Esse é um que, se as agências responsáveis e o Ministério das Comunicações fossem levar a rigor, poderia levar inclusive a uma suspensão de uma concessão, já que a maioria das empresas de comunicação não regionalizam a sua produção. A principal justificativa dada pelas grandes redes é que não haveria capital humano qualificado para produzir esse conteúdo, o que pode ser facilmente contestado pelo crescimento do número de cursos superiores na área de comunicação, não apenas de jornalismo, mas também da publicidade, relações públicas, etc.

Um outro elemento é que as empresas cabeças de rede, como o SBT e a Rede Globo, que são empresas privadas, acabam centralizando suas produções nos seus próprios eixos, nas suas regiões sedes no Sudeste, a depender de onde a empresa esteja fixada, o que leva a uma visão muitas vezes deturpada e desigual da riqueza cultural brasileira. A multiculturalidade brasileira não ganha efetivamente expressão na nossa produção cultural, especialmente a televisada, e quando ganha, muitas vezes é de forma estereotipadas.

Como a comunidade acadêmica pode contribuir no processo de democratização dos meios de comunicação?
A comunidade acadêmica pode contribuir de várias formas. Uma delas é através da pesquisa, conhecendo a realidade e, quando possível, diagnosticando essa realidade, onde o aspecto de gerar conhecimento é fundamental. Uma outra forma é na qualificação da mão de obra, já que os professores atuam na formação da pessoa que irá trabalhar no mercado de comunicação, visando uma educação de qualidade, com uma ênfase na ética, na responsabilidade civil e social, trabalhando com a criatividade. A academia tem a possibilidade de, não apenas diagnosticar o presente, mas também de traçar bases para o futuro, de trazer elementos que colocam a academia em um papel fundamental de gerar conhecimento e de capacitar as futuras gerações para atuar nesse mercado.

Do ponto de vista dos estudantes de Comunicação, o primeiro aspecto é tornar-se um sujeito crítico, tornar-se um cidadão crítico ativo. Se você, em sua base, é um cidadão crítico ativo, você será também um jornalista crítico. É claro que há restrições do mercado, mas a criatividade também nos ajuda a vislumbrar novos espaços de atuação, que não sejam na mídia comercial. Há uma crescente necessidade da sociedade de ter assessores de comunicação qualificados, a exemplo das ONG’s, a exemplo dos movimentos sociais, e é interessante notar como esses setores estão se profissionalizando e buscando também profissionais para que possam estabelecer uma relação mais efetiva com a sociedade. Então, nós fazemos aquele retorno aos canais sociais de publicidade, que há uma necessidade também de maior qualificação da sociedade civil para atuar em uma sociedade complexa, que depende de comunicação, que depende de informação de qualidade, porque é através dessa visibilidade que os movimentos sociais da sociedade civil vão legitimar as suas demandas, legitimar os seus discursos. Eu acho que um aspecto fundamental nessa discussão é a contribuição que a academia pode dar, na geração de conhecimento, na prospecção de futuros possíveis de uma esfera pública mais ativa, de meios de comunicação democráticos.

Colaboração: Joanne Mota (graduanda do curso de Radialismo da UFS e bolsista de iniciação científica do Obscom)

Um duro caminho para a inclusão digital

Levar a internet para dentro das casas das pessoas e acabar com a política de inclusão digital do faz-de-conta, como ´a armadilha dos telecentros´. Este é um dos desafios do governo brasileiro, admite o pesquisador James Görgen, defendendo que o País tem um duro caminho a trilhar nesta área.

A internet surgiu como uma ferramenta tecnológica para democratizar a informação. Hoje, o que se percebe é que não realizou o que prometeu. O que falta para isso?
As comunicações no Brasil atravessam dois momentos, como tudo no País onde existem uma Bélgica e uma Índia. De um lado, apenas 14% da população têm acesso à internet em casa, de outro, 93% têm TV. A questão da internet, da inclusão digital e da democracia pelo acesso às novas tecnologias não é garantia de democratização. Acredito que as duas coisas precisam ser concomitantes.

Como isso poderia ser feito?
Um deles, o desenvolvimento da inclusão digital a partir de políticas públicas de governo como, telecentros e redes comunitárias sem fio, tecnologia bastante avançada lá fora. Ou seja, o chamado ´people play´ , uma versão popular do serviço ´triple play´, que consiste na oferta de vídeo, dados e voz para as populações de baixa renda. Isso é um movimento importante que os estados, municípios e a União precisam fazer para incluir digitalmente a população, uma vez que a gente tem esse desequilíbrio econômico de rendimento.

Falta dinheiro para a população ser incluída digitalmente?
Ela precisa de políticas públicas para ser incluída digitalmente. Mas de outro lado, existe uma necessidade de democratização da comunicação pela reestruturação dos sistemas e mercados. Estou falando especificamente sobre rádio, televisão e jornal, esses dois processos têm que se dar em paralelo já que a democratização pela sociedade da informação ou pela internet, no Brasil, vai demorar alguns anos ainda.

Como é vista a relação do povo brasileiro com a TV já que ela está presente em 93% dos lares?
O percentual de TV nos domicílios é diferente da programação que a população assiste. Na maioria absoluta dos municípios, apenas três canais chegam, com 85% da programação gerada no eixo Rio/São Paulo e o Brasil se vê por essas lentes. Romper essa realidade tem relação com democratizar a comunicação, porque significa quebrar as desigualdades regionais verificadas na produção de conteúdo audiovisual. E isso está garantido na Constituição, mas não existe lei que regulamente. Desde 1991, tramita no Congresso Nacional uma lei justamente para regulamentar a regionalização da programação do rádio e TV propondo 30% de produção regional na programação das rádios locais.

Mesmo dentro deste contexto é possível a comunicação ao alcance de todos?
Sempre irão existir graus possíveis de democratização e não estamos trabalhando com o ideal, porque nunca será democrático plenamente. Mas existindo mais atores, regionalização, alguns princípios, mais emissoras, mais jornais, tudo isso garante maior acesso, equilíbrio de vozes, e isso é essencial na comunicação. É isso o que fazem os Estados Unidos e alguns países da Europa, que praticam um mercado mais equilibrado.

Como o senhor analisa as novas mídias dentro do contexto socioeconômico do País? A guerra pela audiência mudou de eixo?
As novas mídias estão apenas em 14% dos domicílios nas classes A e B, enquanto 40% da população só se informa pela televisão e isso não será quebrado tão rápido. As barreiras econômicas transformam essas novas mídias numa utopia de comunicação. As pessoas dizem que tudo será maravilhoso na internet. Na realidade, podem ser vistas duas barreiras: a econômica que impede o acesso, e aqueles que têm, procuram sempre os mesmos locais, os grandes portais, por exemplo. A concentração da produção de informação continua a mesma. Então, novas mídias não necessariamente garantem democracia.

Como se daria o processo para uma conjuntura de igualdade?
Com o Estado regulando a atividade econômica da comunicação e pela maior participação da sociedade civil na reivindicação por esses espaços. Só que, no Brasil, a sociedade civil é bastante desmobilizada. As pessoas têm uma relação muito afetiva com a TV no Brasil. E isso faz com que qualquer medida de governo no sentido de regulação de atividade econômica como é feita nos Estados Unidos e no Reino Unido, ou em qualquer lugar do mundo, seja vista com antipatia.

Uma sociedade com bom nível educacional pode influenciar na qualidade dos produtos oferecidos pelos meios de comunicação?
A gente fala muito de experiências que existem lá fora, como no Canadá e no Reino Unido: a educação para a mídia. Lá, tanto no ensino básico quanto no médio, existem disciplinas de educação para mídia. A gente acredita que deveria passar por uma política pública nacional que incluísse no currículo escolar disciplinas sobre mídia desde a mais tenra infância. O que está acontecendo no Brasil é que as pessoas aprendem a mexer com a tecnologia.

Como se falar em democratização do setor quando cada vez mais os meios se fecham, isto é, cresce o número de canais fechados ou de TVs por assinatura?
Foi um grande avanço. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) ajudou a aprovar a lei do cabo incluindo os canais legislativos, universitários e comunitários. O problema esbarrou, mais uma vez, na barreira econômica. As pessoas não têm dinheiro e a TV por assinatura está em apenas 9% dos domicílios no Brasil, quando na Argentina, em 60%. A situação piorou com a entrada de grupos estrangeiros. Eles não oferecem pacotes acessíveis à população. Trabalham basicamente com essa faixa de renda muito alta que pode pagar R$ de R$ 50,00 até R$ 70,00 por mês, quando poderiam oferecer pacotes mais baratos. Hoje, o sistema de cabo oferece também banda larga.

De que forma as autoridades poderiam propiciar mecanismos que pudessem promover a inclusão digital?
Implementando políticas públicas para garantir os serviços mais baratos, desde comunicação social, passando pela internet e telefonia. Tecnologicamente isso é possível basta vontade política de um governo fazer um projeto nessa área. Um programa de inclusão digital que saia dessa armadilha dos telecentros, dos espaços públicos e leve a internet para dentro das casas das pessoas.

Por outro lado, o que se observa é que independente do nível de inclusão, pesquisas no Brasil mostram que as pessoas estão conectadas à internet, sobretudo em chats de relacionamentos, bate-papos, sendo porta de entrada para a pornografia. ..
Poderiam existir campanhas nesse sentido. Qualquer equipamento, seja ele uma estrada ou uma rede de telecomunicaçõ es pode ser usada de diversas maneiras. Não se pode cercear esse tipo de inclusão pensando que pode ser usada para o mal. O importante é ter o acesso. Depois, o Estado vê como mediar a questão, arbitrar e punir quem cometer abuso.

Como está inserida a informação numa sociedade que a trata como um produto?
Existe uma padronização dos produtos audiovisuais que já é mundial e vem forçada pela indústria cultural norte-americana. Além de um padrão estético que a publicidade muitas vezes determina e define. A televisão sofre deste mal, justamente reproduzir o que tem no intervalo comercial para dentro dos conteúdos dos seus programas.

A TV pública poderia mediar esta questão?
A experiência da TV pública que está sendo gestada agora, pode ser um momento de discussão sobre o assunto. Como não está atrelada ao mercado pode ter um perfil mais emancipatório. É uma experiência que está começando no Brasil, mas no mundo todo essas redes públicas têm sempre baixa audiência.

É a questão da eterna guerra de audiência…
O telespectador tem que ter um certo preparo para ler de uma forma diferente a mídia.

No Brasil, ele não tem ainda?
Não dá para dizer que o brasileiro não sabe ver televisão. A questão é ir além do que já se estabeleceu no modelo que prepondera. Como conseguir ter atrações e programações que além de entreter também formem e emancipem cidadãos.

Quando se fala em comunicação, o discurso fica muito restrito à televisão. E os outros meios?
É preciso produzir conteúdos que quebrem um pouco o modelo hegemônico de simplesmente vender produtos ou questões ligadas à violência e sexo. O brasileiro já mostrou que tem interesses em outros programas. As pessoas estão procurando alternativas, e uma prova disso, é a TV por assinatura.

E, com relação à TV digital, lançada pelo presidente Lula no último dia 2, qual a expectativa no que diz respeito à interatividade?
Basicamente, na escolha da TV digital brasileira foi feita uma opção pelo avanço de imagem e de som. Isto é, se optou por uma televisão de alta definição (HDTV). Ela terá qualidade melhor do que a de DVD e nível de som melhor do que de CD. Só que, em detrimento, acabou deixando-se de lado a questão da interatividade, que era o grande potencial democratizador. Inicialmente, TV digital vai trabalhar com a chamada interatividade local.

Na prática, o que muda no Brasil?
No momento, o que vai mudar é a inclusão de uma caixinha que as pessoas já podem começar a comprar, chamada caixa conversora (set top box). O equipamento vai ficar em cima do aparelho de televisão para fazer, basicamente, a tradução dos sinais digitais para os televisores analógicos que as pessoas têm em casa, porque elas vão poder trocar de televisores de uma hora para outra, devido ao custo alto. Essa caixinha não tem a interatividade que poderia ter.

O que falta?
Para isso, ela teria de ser ligada a uma linha telefônica como acontece com a internet. A opção agora foi por uma caixinha burra que só baixa as informações que a emissora manda.

A opção do Governo não contribuiu para a democratização da informação?
Infelizmente, a opção do governo brasileiro foi por uma transição mais lenta, mais conservadora. Todo potencial democratizador de imediato não será implantado no Brasil.

A gente pode dizer que o Brasil está inserido na sociedade da informação?
Ele está inserido da forma que todos os países periféricos, do Terceiro Mundo estão, levando em conta as suas limitações econômicas, culturais e educacionais. É óbvio que está inserido, mas não da forma como a gente gostaria, isto é, com melhor penetração das novas tecnologias. É um caminho árduo que temos de percorrer e que tem um custo.

A mídia não representa a elite; ela é a elite

Doutor em comunicação e professor da UFPE, o pesquisador Edgard Rebouças é um dos coordenadores da Campanha Quem Financia a Baixaria é contra a Cidadania. Em entrevista ao Sindsep, ele faz um balanço geral da atual crise da comunicação no Brasil. Confira a seguir.

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De forma resumida, o que está acontecendo com a imprensa brasileira? O senhor concorda que ela seja golpista e representa um partido político da elite?
A imprensa brasileira está simplesmente fazendo o que sempre fez ao longo de sua história: ficar ao lado do poder, ou melhor ser a voz da classe dominante, seja ela econômica ou política. E este não é um sintoma exclusivo do Brasil, tal fato ocorre em todos os países. É um engano, e uma grande ingenuidade, querer acreditar que a imprensa tem um papel de defesa do interesse público, que representa a opinião da sociedade ou que tem “o rabo preso com o leitor”, como é o slogan do maior jornal do país. Dessa forma, não se pode dizer que ela está sendo golpista ou que representa a elite. Ela é a elite! Cabe aos leitores criarem seus próprios mecanismos de enfrentar tal situação. Uma delas é boicotar a grande imprensa e procurar informações e análises nas inúmeras publicações que vêm surgindo nos últimos anos na internet.

Não existe transparência nas concessões de radiodifusão. Muitos políticos são concessionários de rádio e TV, sobretudo nos municípios tidos como seus redutos eleitorais. Em que consiste a Campanha por Democracia e Transparência nas Concessões de Rádio e TV?
Primeiramente é necessário corrigirmos um pequeno mal entendido na questão dos políticos e as concessões. Não há nenhuma lei que impeça um dono de empresa de comunicação se eleger, nem que um político receba uma concessão; o que não pode é exercer um cargo eletivo e dirigir uma concessionária ao mesmo tempo, mas ser sócio pode. Por mais que achemos isso imoral, ilegal não é. A chave deste problema está em duas anomalias registradas nos processos de concessões. A primeira, em 1987 e 1988, quando o então presidente José Sarney usou das concessões da rádio e TV como moeda de troca junto aos constituintes para garantir a prorrogação de seu mandato por mais um ano. A segunda quando, em, 1995, Fernando Henrique promoveu a chamara “farra das concessões” para garantir a emenda da reeleição. Essa duas anomalias fizeram com que surgisse no mundo da comunicação a figura do político-radiodifusor – lembrando que o radiodifusor-políticos já existia, assim como o médico-político, advogado-político, ruralista-político e até servidor-político. O problema é que esse novo personagem não tem o negócio de comunicação como sua fonte de renda, sequer sabe como funciona, só sabe que pode usá-lo como mais um palanque. 

O que a Campanha por Democracia e Transparência nas Concessões de Rádio e TV quer é que sejam criados mecanismos claros de distribuição e renovação deste bem que pertence a todos nós, já que as concessões são públicas. Atualmente os critérios do Ministério das Comunicações são meramente técnicos: se os sinais de áudio e vídeo são de boa qualidade. Já os critérios dos deputados e senadores são meramente políticos. Queremos é uma concessão que atenda a critérios de compromisso social, conteúdo ético, com informação, educação e cultura, que tenha programação regional e independente. O que queremos é simplesmente o que já está no artigo 221 da Constituição.

A campanha Quem Financia a Baixaria é contra a Cidadania tem atingido seu objetivo? Qual sua real finalidade?
A campanha Quem financia a baixaria é contra a cidadania completa cinco anos neste mês de novembro. Ela foi criada com base em propostas saídas da VII Conferência Nacional de Direitos Humanos, e, por iniciativa da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, dezenas de entidades da sociedade civil se reuniram com o objeto de promover o respeito aos direitos humanos e à dignidade do cidadão na programação da televisão brasileira.

Com base em denúncias dos telespectadores pelo telefone 0800 619 619 ou pelo site www.eticanatv.org.br é feito um acompanhamento dos programas para indicar de que forma desrespeitam as convenções internacionais assinadas pelo Brasil, os princípios constitucionais e a legislação que protege os direitos humanos e a cidadania. Foram várias conquistas nestes cinco anos, entre elas: temos uma média de 700 denúncias fundamentadas por mês; a resposta de vários anunciantes, se comprometendo a não mais colocarem publicidade em programas que desrespeitam os direitos humanos; a mudança nas grades de programação e nos conteúdos de vários programas de rede nacional, a contribuição para a decisão inédita da Justiça Federal que obrigou a produção e exibição do programa Direitos de Resposta, na Rede TV!, por um mês, no lugar o programa do João Kleber; a colaboração para a criação da Nova Classificação Indicativa da televisão, do cinema e dos videogames; na proposta de Regulamentação da Publicidade Destinada a Crianças e Adolescentes; e nos debates da Anvisa do regulamento sobre a publicidade de alimentos que causam a obesidade; e a criação do Dia Nacional contra a Baixaria na TV, sempre no terceiro domingo de outubro, com o objetivo de motivar ações e debates em torno da ética na mídia e os direitos humanos.

O que está faltando para engajar a sociedade nesses movimentos?
A campanha começou das bases da sociedade, o problema é que muitas entidades redirecionaram suas ações para questões mais imediatas de suas áreas específicas, se esquecendo que o problema das comunicações cruza todos os processos sociais, políticos, econômicos e culturais. É preciso que os trabalhadores, as donas-de-casa, os educadores… recuperem seu papel de protagonista neste debate. Não é o controle remoto que vai mudar os desrespeitos que vemos na TV, sim o controle social. Aqui no estado há o Fórum Pernambucano de Comunicação (Fopecom), o Ministério Público e várias entidades que já atuam nessa área. Na universidade, acabamos de criar o Observatório da Mídia Regional: direitos humanos, políticas e sistemas, que vai fazer um acompanhamento sistemático do rádio e da TV. E todos podem participar. Comprometo-me publicamente a abastecer o Jornal do Sindsep com informações periódicas sobre as atividades do Observatório.

O senhor acha possível mudar foco das empresas de comunicação? Os jornais impressos são empresas privadas, mas as rádios e as TVs recebem concessões públicas. A sociedade não deveria participar mais das decisões?
Cabe a entidades como os sindicatos, as escolas, as igrejas pautarem este debate em suas atividades. Se formos esperar que os meios de comunicação ou que o governo coloquem isso em discussão não chegaremos a lugar nenhum.

Não seria o caso de a sociedade organizada construir mecanismos para uma comunicação contra-hegemônica? O MST já vem tentando, com seu núcleo de comunicação, quebrar essa hegemonia da grande imprensa.
Precisamos antes capacitar a sociedade para fazer comunicação. Foram séculos de comodismo só recebendo. Paradoxalmente, são as tecnologias, que sempre foram usadas como instrumento de opressão nas mãos das elites, que estão criando uma grande brecha desta resistência. Principalmente pelos sites com texto, áudio e vídeo, meios que até pouco tempo só eram usados empresas. Além dos grandes movimentos, como o MST, as centrais sindicais e as ONGs, acredito muito também na comunicação comunitária participativa; mais local.

Democracia e Sistema Público de Comunicação

Para o jornalista Eugenio Bucci, ex-presidente da Radiobrás, entre 2003 e 2007, e atual professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP, quase todos os meios públicos de comunicação no Brasil ainda são verdadeiros feudos de governantes, que os utilizam para a promoção pessoal e de seus grupos políticos. Isso só pode mudar com mais debates e maior esclarecimento da população sobre o assunto. Na entrevista a seguir, Bucci fala dos projetos de criação de uma nova TV estatal, condena os gastos com propaganda governamental, que não teriam nenhuma utilidade além da promoção dos donos do poder, e faz uma recomendação: 'O governo deve ficar longe da mediação de debates públicos.'

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Como o sr. vê a montagem de uma nova rede de radiodifusão pública, a TV Brasil? Ela é necessária?
Vou responder em dois níveis. Um conceitual e outro mais prático. Conceitualmente, uma democracia precisa de uma forma de radiodifusão que não seja comercial. O espaço público, se dominado por formas de comunicação apenas comerciais, corre o risco de não ter como dar vazão a temas que não são economicamente interessantes, a conteúdos economicamente inviáveis. Um exemplo: se a TV Cultura, de São Paulo, ficar presa apenas àquilo que é lucrativo, jamais vai ter programas com orquestras sinfônicas. Esse gênero de música não tem muito apoio. Enfim, é necessária uma complementaridade entre o público e o comercial.

E a questão de ordem prática?
Não vejo sentido em perseguir um sonho de TV pública. É preciso que se trabalhe pela construção de um sistema de comunicação que conjugue rádio, TV e, sobretudo, internet. O sonho da TV pública é um sonho de 50 anos atrás, quando a Europa sai da Segunda Guerra debatendo de que forma o espaço público poderia ser protegido da colonização promovida pelo mercado e pelo capital. Um dos principais focos do debate em torno da nova emissora pública é o temor do controle e da manipulação do conteúdo. Quando alguém fala no risco de manipulação ou de uso político da comunicação pública no Brasil, eu digo que isso não é um risco, mas a regra. Sempre aconteceu. Tradicionalmente, as instituições públicas de radiodifusão são uma espécie de reserva ecológica do patrimonialismo. Um patrimonialismo simbólico, porque os governantes não se apropriam das coisas que estão lá, mas fazem com que elas trabalhem pela sua promoção pessoal. Quando comecei a tomar contato com esses lugares, percebi a existência de uma enorme quantidade de gente contratada sem concurso, por causa de afinidades políticas, não por competência.

Esse comportamento é generalizado nas televisões mantidas pelos Estados?
Quase todos os Estados da Federação têm hoje a sua rede institucional de comunicação, com rádio e televisão. E em quase todos é comum o uso político-partidário do conteúdo do que veiculam a favor do governo. É a tradição. Portanto, se existe um risco hoje no Brasil, é o de mudar esse quadro. Essas instituições precisam de transparência, de profissionalismo, de rigor administrativo – mais do que de recursos. O seu conteúdo deve ser comprometido com o direito de informação do cidadão, não servir de caixa de ressonância ou de linha auxiliar de promoção pessoal dos governantes.

A Cultura de São Paulo se encaixa nesse padrão?
Sempre existem exceções. A TV Cultura é responsável pelas melhores produções da TV pública no Brasil.

Por quê?
Porque teve momentos de autonomia de gestão, de independência. A TV Cultura tem um conselho com garantias formais de autonomia. Embora seja vulnerável a pressões do governo, esse conselho, pelas suas regras de funcionamento, pela maneira como é organizado, consegue ser independente. A Cultura é talvez o melhor exemplo que nós temos hoje de comunicação pública no Brasil.

Do que viu até agora, acha que a criação da nova rede está sendo conduzida de forma correta?
É evidente que existe a ameaça de manipulação. Mas se ela tiver – como está prometido – um conselho realmente independente, sem uma pauta governamental, é possível que no futuro o País ganhe com isso. Essa possibilidade não está fechada. Vamos esperar.

Como vê a introdução de anúncios publicitários na programação da Cultura?
Acho um erro, uma concessão estética e prática à lógica da comunicação comercial. A TV pública não deveria veicular anúncios de mercadorias e de serviços como qualquer outra TV comercial. Poderia veicular apoios institucionais, uma fórmula consagrada em vários lugares do mundo.

Ainda a TV Brasil: a idéia de sua criação ganhou corpo com as acusações, feitas pelo PT, de que a mídia distorceu fatos – especialmente na cobertura do mensalão e do dossiê Vedoin – para prejudicar o governo. Em mais de uma ocasião, falou-se na necessidade de uma contracorrente na área de informações. Como vê isso?
Essa é a pior razão do mundo para se construir uma mídia pública. Ela é necessária não porque a comunicação comercial seja de má ou de boa qualidade, mas por ser de outra natureza.

Acha que a mídia errou na cobertura dos episódios citados?
Existiram momentos de infelicidade na cobertura, mas o pior erro não aconteceu.

Qual seria?
Não ter feito a cobertura. Podem ter acontecido distorções, preconceitos, julgamentos, mas foi no interior de um movimento correto na sua essência, que é informar o público. A imprensa cumpriu seu dever de apurar, informar e levantar o debate, permitindo que as partes se manifestassem. Nos debates internos, nos setores de comunicação pública, mais de uma vez eu disse: vamos tomar mais cuidado nas restrições à imprensa, porque, se dependesse de nós, da Radiobrás e das outras emissoras públicas, o País não teria ficado sabendo do que aconteceu. As nossas ferramentas de cobertura na época chegaram atrasadas a esse evento. Depois nós fizemos uma elogiada cobertura, com mais de 3.500 matérias veiculadas pela Agência Brasil sobre o mensalão, mas é importantíssimo registrar que não foi a cobertura da Radiobrás que levantou o tema. Foi a imprensa comercial.

O governo precisa de meios para defender suas causas?
O governo deve ficar longe da função de mediar o debate público. Uma das garantias do funcionamento democrático reside justamente nesse ponto: governo governa, mas não faz a mediação do debate público. Ele não deve ter uma emissora que ponha em pauta aquilo que lhe interesse.

O senhor tem se dedicado a estudar a internet. Acha que ela deve substituir os atuais meios de comunicação, como os jornais?
A internet deveria ser comparada mais à rede elétrica do que a um meio de comunicação propriamente dito. Ela transforma informação em energia elétrica, abastecendo todos os pontos. Não é um meio de comunicação, mas um ambiente para vários meios – a mídia escrita, a publicidade, games. Você tem ali todo tipo de interconexão, de aproximação entre pólos diferentes, por meios diferentes. É um ambiente, e nesse sentido não disputa com outros meios de comunicação.

Como vê a questão da confiabilidade das informações numa rede que aceita e redistribui tudo?
Essa é questão mais fascinante. O cidadão começa a se perguntar cada vez mais, e com razão, em quem confiar? Estão surgindo respostas novas. De um lado ele tende a buscar selos de responsabilidade tradicionais – e aí os jornais saem na frente, assegurando posições, com a garantia de que a informação foi apurada e trabalhada, sem a contaminação de interesses comerciais, governamentais ou de grupos de influências. Por outro lado, existem soluções inovadoras. Um exemplo é a Wikipedia, enciclopédia elaborada anonimamente e cada vez mais mencionada como uma fonte confiável de informação. A internet traz essas possibilidades que antes não estavam postas. De qualquer maneira, o problema da credibilidade é nevrálgico.

Na Radiobrás, o senhor foi pressionado por petistas a dar uma cor mais partidária à cobertura dos fatos, numa situação que levaria à partidarização de um órgão público. Acha que o PT confunde partido com governo e Estado?
Essa confusão é outra tradição perversa da política brasileira. Está longe de ter sido inventada pelo PT. Em outras épocas, ela foi mais grave, porque envolvia partido, governo, Estado e famílias, com oligarquias que prevaleciam dentro e fora do governo, agindo como poder público, dominando meios de comunicação supostamente privados, numa promiscuidade tenebrosa. A vacina contra isso é o esclarecimento da opinião pública – por mais iluminista que pareça a formulação.

Como vê os gastos governamentais com propaganda?
Isso é no mínimo muito discutível. Em primeiro lugar porque raramente algumas dessas peças de publicidade governamental são realmente de utilidade pública. Quase sempre a utilidade pública é um pretexto, para que fique um rescaldo de imagem positiva do governo. Não se fala o nome do governante, mas se inventa um logotipo comercial, uma marca para aquela administração – sempre com a intenção de que reverta em capital eleitoral. No interior, em cidades de pequeno e médio porte, a situação é mais grave. Ali se encontra uma seqüência enorme de emissoras de rádio e pequenos jornais que não sobrevivem sem as verbas públicas dos municípios e dos Estados. Nos grandes centros, os grandes jornais atendem aos requisitos formais da independência editorial. Se o governo corta o anúncio dessas empresas, elas não vão à falência. Mas no interior o risco é grande – e, por isso, o dinheiro público jogado em veículos comerciais se converte num instrumento de pressão e de cooptação.

Por que não continuou à frente da Radiobrás?
Entrei para ficar só um governo, porque nunca tive intenção de ser administrador público de carreira e porque o rodízio é bom. Na função pública, é importante a consciência de que a gente não refunda nada, não cria, não inaugura. A gente absorve a experiência de quem veio antes, dá seqüência aos bons projetos e deixa uma perspectiva ao que vem depois. Essa ilusão de que você é fundamental só atesta que não confia na dinâmica natural das renovações da democracia.

Estende isso a todos os cargos públicos?
Todos. Inclusive à Presidência. Nada mais indigno que um presidente da República que julgue ser melhor para a sociedade a permanência dele no cargo indefinidamente. No fundo, está dizendo que a sociedade não é capaz de produzir soluções melhores do que ele.