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Os desafios no mundo da comunicação dos jovens

Em entrevista ao site do RIO MÍDIA, Per Lundgren, diretor do comitê organizador da Cúpula Mundial de Mídia para Crianças e Adolescentes de Karlstad (Suécia), em 2010, informa que o tema central do evento é: Os desafios no mundo da comunicação dos jovens. “Esse é o tema geral que será subdividido em cinco perspectivas: Comunicação para mudar; Educação e desenvolvimento de crianças; Ética e responsabilidade social; Economia, políticas e leis; e Criação de conteúdo digital por crianças e jovens”, adianta Per, professor da Universidade de Karlstad.

Segundo Per, o encontro vem sendo planejado desde 2004, logo após a realização da 4ª Cúpula Mundial de Mídia para Crianças e Adolescentes. O comitê organizador espera reunir em Karlstad dois mil delegados de 100 países.

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Como estão os preparativos para a Cúpula Mundial de 2010, em Karlstad?
Per Lundgren –
Estamos nos preparando desde a inspiradora cúpula de 2004, realizada no Rio de Janeiro. Desde então tivemos inúmeros encontros em diferentes locais ao redor do mundo para ouvir, entender e discutir as diversas perspectivas.

Compreendemos que o respeito pelas diferenças culturais precisa ser levado em consideração. Em setembro do ano passado, os integrantes da Fundação de Cúpulas de Mídia (World Summit Foundation) vieram até Karlstad para planejar o encontro com o comitê geral. A partir deste mês, estamos convidando as pessoas e/ou instituições a participarem do Grupo de Consulta para sugerir tópicos, baseados no tema central do encontro, a serem trabalhados. Já lançamos também o nosso primeiro boletim on-line, com notícias sobre o processo de preparação da Cúpula.

Qual será o tema central da Cúpula de 2010?
Per Lundgren –
Em 1995, Benjamin Barber, professor de Ciências Políticas da Universidade de Maryland e autor de Jihad vs. McWorld, afirmou que “é hora de reconhecer que os verdadeiros tutores de nossos filhos não são mais os professores das escolas e das
universidades, mas, sim, os produtores de filmes, os publicitários e os divulgadores da cultura pop. A Disney faz mais do que Duke; Spielberg tem mais influência que Stanford; e a MTV se sai melhor do que MIT”. Queremos expandir nossas perspectivas para o mundo todo, sabendo que as perguntas e respostas diferem-se não só pelo o que você é, mas também por onde você está. 

Hoje em dia, qualquer um pode, a um custo baixo, ter acesso ao computador, Internet, educação e produzir texto, som, imagem e animação. Isso é relevante principalmente para a geração mais nova. Cidadãos bem-educados também conseguem se comunicar por meio de computadores, celulares e serviços on-line para publicar e divulgar instantaneamente conteúdos para todo o mundo. Ferramentas de busca, comunidades e outros serviços on-line ajudam cada vez mais a desenvolver novos conhecimentos. O programa de Letramento para a mídia das Nações Unidas (www.wskarlstad2010.se) é um exemplo da nossa ambição de usar a tecnologia ao redor do mundo para melhorar o diálogo entre culturas, entre países que falam árabe e países ocidentais. Portanto, Os desafios no mundo da comunicação dos jovens é o tema geral da Cúpula de Karlstad, que está dividido em cinco perspectivas:

– Comunicação para mudar
De que forma, a comunicação em diferentes mídias pode apoiar mudanças sociais necessárias?

– Educação e desenvolvimento de crianças
Como o letramento para mídia e a mídia educativa podem fazer a diferença?

– Ética e responsabilidade social
Em um mundo de mídia global não regulada, como é possível melhorar a qualidade da mídia para crianças e jovens?

– Economia, políticas e leis
A partir da perspectiva de crianças e jovens, quais medidas e passos devem ser levados em consideração para suprir os desafios da mídia mundial?

– Criação de conteúdo digital
O que acontece quando jovens são capazes de criar conteúdo de mídia digital (com valores centrais como inclusão, igualdade, uniformidade e diálogo intercultural)? Como a mídia de hoje e de amanhã pode ganhar qualidade de criação de conteúdo de mídia digital? Como as crianças e os jovens podem melhorar o entendimento global de criação de conteúdo de mídia? 


Quais atividades estão planejadas?
Per Lundgren –
 Haverá espaço para palestras, exibição de produtos, seminários, debates sobre novas pesquisas, oficinas de produções de jovens e apresentações de experiências culturais, bem como encontros informais durante os intervalos das discussões. É parte do plano também produzir um livro com as principais contribuições dos participantes e as falas mais importantes dos palestrantes. As atividades serão planejadas para atender às expectativas de uma cúpula mundial para educadores, produtores e profissionais preocupados com a mídia de/e para crianças e jovens.


Como os adolescentes poderão participar?
Per Lundgren –
Os jovens podem participar desde já no planejamento da Cúpula. E, lógico, também podem participar presencialmente e/ou virtualmente do encontro. Durante os dias do evento, eles poderão se dividir entre oficinas, apresentações de produtos e seminários. O primeiro passo é preencher o formulário de interesse que está em nossa página na web. Lá, os adolescentes podem fazer sugestões de idéias e atividades. Aquele que se cadastrar receberá regularmente um boletim com nossas notícias.


Na sua opinião, quais são as contribuições principais das cúpulas mundiais anteriores? 
Per Lundgren –
Os responsáveis de cada cúpula organizaram e colocaram em prática os objetivos dos integrantes do Conselho da Fundação, refletindo assim a compreensão das questões encontradas em cada região. Entrelaçada por um conjunto de valores compartilhados, essa dinâmica enriqueceu bastante as cúpulas. Os resultados e detalhes podem ser encontrados nos relatórios de cada uma das cúpulas. Começamos com a discussão sobre a televisão, porém, agora, outras mídias também são relevantes. As crianças estão desenvolvendo um importante papel. As nossas preocupações direcionam-se mais diretamente para a educação na mídia de entretenimento e a comercialização da mídia para crianças.

Quais são as suas expectativas para a Cúpula de 2010?
Per Lundgren –
Acredito que a cúpula reunirá dois mil delegados de 100 países e que ela preparará um novo mundo de mídia, para crianças e adolescentes, no século XXI. Com a mobilização, engajamento e apoio de movimentos internacionais, acredito que poderemos, juntos, criar um novo formato de conferência mundial, com oportunidades para redes de trabalho, debate, desafios, interatividade e oficinas para dividir perspectivas, experiências e habilidades.

A cidadania e a produção de informação

Em 8 de março, a agência Carta Maior promoveu uma reunião para discutir a mídia nos nossos dias. Mais de quarenta jornalistas, professores de comunicação e ativistas da área de comunicação participaram do encontro que debateu a luta contra a hegemonia conservadora no âmbito da disseminação de informação no Brasil. Uma dessas pessoas é a professora Ivana Bentes Oliveira, doutora em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde hoje é diretora da Escola de Comunicação.

Nesta entrevista, Ivana fala sobre as grandes corporações de mídia, do papel da imprensa alternativa, analisa os cursos de comunicação e a obrigatoriedade do diploma.

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Como a senhora, que já atuou em importantes veículos de comunicação e hoje trabalha na área acadêmica da comunicação, analisa a grande imprensa brasileira, tanto televisiva e radiofônica quanto impressa e on-line?
Ivana Bentes Oliveira – A primeira coisa que percebemos é uma redundância muito grande de pauta. A impressão, quando se abre todos os jornais diários, é que se tem as mesmas manchetes. Claro que há sempre os fatos do dia, mas o perfil dos jornais é muito parecido, o que leva a uma homogeneidade muito grande. Eu penso que seja preciso uma diversidade maior na grande imprensa. E, mais do que uma proposta editorial, ela deve vir da participação de segmentos de pessoas de grupos distintos, com visões políticas e de mundo diferentes, para combater essa homogeneidade entre os jornais e as linhas editoriais.

Uma outra questão que penso ser decisiva está relacionada ao fato de que as mudanças só são possíveis a partir do momento em que você rompe um pouco com esse modelo do jornalismo tradicional da grande empresa corporativa e passa a utilizar uma tecnologia como a internet ou outras possibilidades eletrônicas. Tudo isso abre um panorama para uma nova diversidade. Qualquer sujeito, hoje, pode se tornar um produtor de mídia. Esse me parece o horizonte da universalização dessa atividade que já foi pensada como uma atividade de especialista. Hoje, é uma demanda de cidadania a produção de informação, análise, interpretação. Além da diversidade em relação ao que é produzido.


E como a senhora analisa o papel da chamada “imprensa alternativa” ou da “imprensa de esquerda” no Brasil?
Eu penso que ela se encontra num meio termo. Temos vários projetos interessantes de mídia independente hoje, principalmente em revistas e na própria internet. Então, a grande beneficiada com essa mudança de contexto tecnológico, e até econômico, com o barateamento dessas tecnologias, é a mídia independente. Ela sempre teve problemas históricos de sustentabilidade econômica, de visibilidade política, de mercado, mas sobreviveu, durante todo esse tempo, num trabalho de guerrilha: é singular e individual. Só foi a partir do próprio advento da internet que essa mídia independente passou a ter alguma visibilidade.

Então, agências como a Carta Maior, Carta Capital, Vermelho, e mesmo os sites de jornalistas, como os de Paulo Henrique Amorim – ligado a uma emissora, mas com uma marca de singularidade muito grande – e de Luís Nassif, que funcionam como formadores de opinião, com discurso de análise da própria mídia, fazendo uma espécie de não só observatório neutro da mídia, mas representando uma militância, um engajamento, trazem um trabalho um pouco parecido com os professores universitários que deveriam se debruçar ainda mais sobre essa mídia. Parece-me que estamos vivendo um momento de transição com essa possibilidade da explosão do que chamamos sempre de mídia independente – que sempre existiu, mas com extremas dificuldades.

Nós temos uma concentração não só econômica, mas alimentada pelo próprio campo público, com a má distribuição das verbas publicitárias que não incentiva a mídia independente. Esse é um quadro um pouco crítico, mas absolutamente produtivo, na medida em que essa crise tem produzido alternativas muito distintas de modos de produção de mídia que não têm relação simplesmente com essa mídia mainstreaming. Estamos num momento de transição de décadas de concentracionismo, de uma homogeneidade, de uma fórmula que está mais do que desgastada em termos de mídia, de produção de informação e uma descentralização. Além disso, temos uma fragmentação que, obviamente, precisa também ser analisada sob um olhar crítico, analítico, mas é extremamente interessante para todas as áreas. Essa transição de tecnologia e até de mentalidade amadureceu muito e deu alguns saltos nos últimos anos.


Alguns pesquisadores pensam a comunicação a partir dos processos midiáticos permitidos, principalmente a partir da década de 1990. Assim sendo, falam da importância de se pensar a comunicação, antes de tudo, para além do jornalismo. Qual é a sua análise dos cursos de comunicação brasileiros em relação não apenas ao fazer jornalístico, mas ao pensar jornalisticamente?
Ivana Bentes Oliveira – Eu acredito que ainda seja um pensamento muito tímido,  porque dificilmente vimos algum curso de jornalismo ou de comunicação intervindo politicamente nos fatos enquanto eles acontecem. Há uma dificuldade de intervenção, de uma análise “a quente”. Há uma tendência, nos cursos de jornalismo e comunicação, àquilo que chamamos de Profeta do Dia Seguinte, ou seja, de esperar que os fatos aconteçam, passem e só depois sejam comentados. Não há, nesse caso, muita importância de quem traz, por exemplo, um questionamento político depois que o momento quente passou. Há analistas da mídia, por exemplo, esses que vão para os congressos como Intercom e Compôs, que fazem as análises já frias. Ou seja, eles não possuem nenhum poder de intervenção imediata no campo político.

Não que os pesquisadores precisem ser ativistas, mas é preciso haver uma relação mais orgânica de quem produz mídia com a realidade dos fatos. Deveria existir um trânsito maior com essa mídia independente, aliás com todos os tipos de produções midiáticas. E, sem dúvida, fazer a passagem da velha questão do jornalismo para a questão da comunicação, que é muito mais ampla. Hoje, de forma concreta, a experiência audiovisual desloca totalmente a função e o foco do jornalismo impresso, que continua sendo importantíssimo, mas precisa ser pensado nesse campo ampliado.

Temos grupos de mídias audiovisuais, de rádio comunitária, TV comunitária, blogs, sites, que são feitos inclusive por não jornalistas. Então, hoje eu defendo o seguinte: o campo jornalístico é importante demais para ficar só com os jornalistas, parafraseando um dito de que a guerra é importante demais para ser resolvida pelos senhores da guerra. Também penso que a comunicação seja importante demais para ficar só num nicho, num gueto de jornalismo. A comunicação sempre interveio na vida de todo mundo, mas hoje temos um consumidor de informação que virou, ao mesmo tempo, um produtor de mídia.

A questão da produção hoje, portanto, precisa ser pensada de forma ampliada. Os cursos de comunicação precisam mudar essa mentalidade. Precisamos sair da especificidade, pois, atualmente, a comunicação é um direito. Nós temos vários ativistas que trabalham com a questão do direito à informação. Desse modo, é preciso começar a pensar a informar esse produtor de mídia independente das formações. Parece-me que os cursos já estão pensando em seguir esse caminho, ou seja, apontar um trânsito maior entre as habilitações.

É preciso também repensar a formação. Por isso, alguns cursos já estão refazendo os seus currículos. No entanto, considero importante que essas reformulações de currículo sejam feitas por meio de um diálogo com quem está fora da universidade, sejam jornalistas, sejam movimentos sociais, seja o pessoal do midiativismo, porque me parece que a diversidade e o pensamento novo precisam ser elaborados em conjunto. Trata-se de uma discussão importante, mas que não pode ser feita só por professores. Assim, precisamos nos aproximar cada vez mais de quem está fora da universidade.

Possuímos uma quantidade enorme de produtores de mídia que não estão nas universidades e nem nas grandes empresas. É necessário incorporar essa produção, ajudar, qualificar e formar qualquer pessoa que vá trabalhar com mídia. Precisamos disputar esse novo produtor de mídia. É restritivo demais pensar só no jornalismo como centro da discussão midiática. Claro que ele tem suas especificidades, sobretudo o impresso. Entretanto, diante desse quadro, não é possível pensarmos em coisas mais instigantes sem ampliar seu campo.

Além dos cursos, algumas empresas jornalísticas estão incorporando aos seus meios de recursos humanos os métodos dos cursos de trainee para, de certa forma, ensinar e moldar o jornalista. Qual é a sua análise desse tipo de treinamento?
Há um avanço sobre a formação. Estou falando de diversificação, de incorporar metodologias. A partir do momento em que você tem uma entrada muito cedo do mercado na vida do estudante, isso interfere na formação e se corre o risco de adestrar, limitar essa formação. Penso que seja preciso demonizar experiências, mas é também é necessário haver algum tipo de acompanhamento ou, em alguns casos, não aceitar esse tipo de gerência na formação. Caso contrário, nos cursos universitários, que representariam o último lugar onde você ainda teria essa formação ampliada, valorizando os discursos políticos, existirá um fechamento, trazendo constrangimentos, limites e formatações para o aluno, antes mesmo de ele sair do curso.

Talvez fosse muito mais interessante que as experiências de estágio nas empresas tivessem um acompanhamento qualitativo maior. É complicado se descobrir que nossos alunos estão sendo utilizados para trabalhar com telemarketing, vendas, distribuição de folheto. A saída do estudante dos cursos é um momento difícil, de crise, de mudança de vida, um momento de transformação, e os cursos devem estar atentos a isso também.

Qual é a sua opinião sobre o diploma de jornalismo hoje?
Nesse item, a minha opinião é muito clara. Acredito que hoje o diploma represente uma reserva de legitimação dos sindicatos. É claro que os sindicatos tiveram uma importância histórica nas lutas políticas e vão continuar a ter, mas também considero que devemos passar por um momento de mudança dessa mentalidade, porque quem faz jornalismo hoje não é só jornalista. Nós temos vários outros grupos sociais produzindo jornalismo. A partir do momento em que os sindicatos exigem o diploma de jornalista, cuidam apenas daquele com carteira assinada e sindicalizado. Eles estão excluindo, deixando de prestar atenção num fenômeno global que é o cognitariado, que abrange as pessoas que trabalham com produção de conhecimento a partir da mídia, desse campo de comunicação, encontradas em diversas áreas.

Para mim, os sindicatos não podem cuidar apenas dos sindicalizados e dos que têm diploma de jornalista. Precisam é cuidar do freelancer, das pessoas com menos condições de inserção nas grandes mídias. Creio que o diploma já foi importante, mas não é mais. As escolas de comunicação precisam vender qualidade e não reserva de mercado para um determinado profissional.

Então, surge uma argumentação contrária, afirmando que isso é fazer o jogo das empresas. Vejamos que as empresas já burlam o diploma de todas as formas, como os colunistas. Sempre peço aos meus alunos para analisarem qual é o maior salário das redações e o resultado é sempre o mesmo: os colunistas. Quantos deles são formados em jornalismo? Quase nenhum! Os cronistas, os editores, os colunistas, isto é, os cargos mais nobres da redação são ocupados, geralmente, por não jornalistas. E isso há décadas! Eu considero muito saudável o fato de que sociólogos, antropólogos, filósofos, economistas e artistas escrevam nos jornais. O jornalista não tem mais aquele perfil fechado. Se a exigência do diploma acabasse amanhã, os cursos de comunicação continuariam iguais. Os cursos que fazem a diferença dentro da formação desse profissional continuam formando profissionais de qualidade. O que muda e o que acaba são os cursos que realmente vendiam apenas o diploma.

Recentemente, Luís Nassif, em seu blog, divulgou um dossiê sobre a Veja, que ele chama de o “maior fenômeno de antijornalismo dos últimos anos”. Qual é a sua opinião sobre o tipo de jornalismo que essa revista faz?
O jornalismo da Veja já virou motivo de piada nos cursos de Jornalismo e comunicação. E é ótimo para dar exemplo porque é de tal forma deformado, repensado, direcionado que acaba se tornando uma caricatura do antijornalismo. Não existia isso no Brasil. A Veja veio para explicitar um pensamento conservador reativo que existia sem visibilidade porque as pessoas tinham vergonha de se posicionar dessa forma. Ela apresenta um jogo forte sendo feito e para isso lança mão de manchetes sensacionalistas, de uma constante criação de pautas. O que Nassif faz, em sua análise, é indicar a explicitação de uma linha editorial que existia de uma forma velada. É claro que todo mundo que leu a Veja, porque muita gente deixou de lê-la, tinha essa impressão de uma linha editorial conservadora. No entanto, o Nassif veio explicitar uma constatação em vários meios. A revista é muito estudada nos cursos dentro da linha de um jornalismo construído. Desse modo, é importantíssimo o que o Nassif vem fazendo, além de muito corajoso, pois está sendo criminalizado, interpelado judicialmente.

Atualmente, inclusive, precisa responder por questões que estão na boca de todos e que ele materializou. É preciso haver um movimento de apoio a ele, de apoio a uma analista contra uma corporação. Levar essa questão às escolas de comunicação e às mídias independentes é muito importante, além da divulgação desse dossiê. E, veja você, o Nassif é um economista que escreve em jornais e conseguiu por meio de um blog uma repercussão enorme no meio comunicacional. Perceba só o poder que apenas um indivíduo, sem uma relação com nenhum meio da grande imprensa, tem contra uma grande corporação.


Ainda no campo dos blogs, com o advento da internet, as formas de comunicar ampliaram, assim como o mercado de trabalho. O que há de novo dentro do fazer jornalístico depois da internet?
E o que podemos prever para o futuro?
É claro que há alguma crítica em relação à apuração, à falta da face a face. O que você descobre numa entrevista olhando no olho e criando um clima atmosférico pode ser bem diferente do que numa entrevista por e-mail, por exemplo, na qual as perguntas estão dadas e a interação não é tão grande. Sou a favor de sair para as ruas, do jornalista captador da atmosfera das ruas. No entanto, isso é circunstancial, porque há uma potencialização enorme desse fazer jornalístico nesse sentido, a começar pelo alcance que as tecnologias permitem. A internet acaba com a hierarquia da importância que precisa ser, em primeiro lugar, legitimada socialmente. Claro que as grandes corporações estão incorporando esses espaços, como os blogs, que são uma espécie de singularidade dentro daquele limite de espaço do horário nobre. Por outro lado, pensemos na eleição do Lula para o segundo mandato. Lembremos de toda aquela saraivada de denúncias feitas pelos meios de comunicação, uma campanha eleitoral por eles tentando intervir na eleição. Houve a reação, o contradiscurso, que surgiu nos blogs, nas listas de e-mails, dos sites, da mídia independente.

Tudo isso foi muito importante no momento em que aconteceu a difusão de uma contra-informação, com uma rapidez muito grande que seria impossível se não houvesse a internet. Essa possibilidade veloz de uma reação gera uma disputa midiática que não é possível não considerar relevante. O acesso à diversidade é absolutamente facilitada e, claro, a mídia independente precisa apostar nesses meios. No entanto, a tecnologia não faz milagre. Por isso, precisa haver um pensamento político por trás, além de políticas públicas e de se democratizar a internet no Brasil. É necessário existir um provedor público de graça para todos. Isso tudo aponta para uma mudança, para uma ruptura importante. É uma multiplicação da informação dentro de apenas um clique. 

A TV digital e o risco à recepção livre e aberta

A festa realizada pelas emissoras de televisão em dezembro para marcar a entrada em funcionamento da TV digital no Brasil não significou, de perto ou de longe, que o processo de digitalização da radiodifusão esteja completo. São diversas as decisões adiadas pelo governo em prol da manutenção do calendário de transição inventado pelo Ministério das Comunicações ao escolher o padrão japonês (ISDB) como plataforma tecnológica para a TV digital brasileira. Uma delas, e talvez a mais significativa, é a definição de regras para o uso de mecanismos de controle anticópia, como são chamados no Brasil os sistemas DRM – Digital Rights Management.

Nesta entrevista concedida ao Observatório do Direito à Comunicação, Pedro Mizukami, pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-RJ, explica que as funções dos DRM nos sistemas de TV digital podem ir muito além de impedir a cópia dos conteúdos. Mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP, Mizukami diz que a liberação do uso destes sistemas nos aparelhos receptores pode significar uma mudança profunda na lógica da TV brasileira, inclusive no seu caráter de recepção livre e aberta, como prevê a Constituição.

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A inclusão de mecanismos anticópia nos conversores e aparelhos de TV digital é uma polêmica que vem se arrastando desde os primeiros debates sobre a escolha da tecnologia a ser implantada no Brasil. Agora, o governo dá sinais de que cederá às pressões do empresariado e permitirá a instalação de sistemas de DRM (Digital Rights Management) nos aparelhos de alta-definição. Do ponto de vista legal, quais as implicações de uma decisão como esta?
Uma decisão do Executivo obrigando a adoção de sistemas de DRM na TV digital seria ilegal e inconstitucional. A questão é bastante complexa e deve ser analisada sob ângulos diversos, muito além do discurso usual que dá ênfase exclusiva à proteção aos direitos autorais. Há uma multiplicidade de interesses, direitos e deveres em jogo, veiculados por uma pluralidade de normas constitucionais e legais, que precisam, necessariamente, ser levados em consideração. É preciso pensar nos danos diretos e colaterais que sistemas como o proposto poderiam causar, implicando sérias ofensas à livre iniciativa, defesa da concorrência, autonomia tecnológica, possibilidades de inovação e direitos do consumidor, sem falar em violações a usos permitidos de conteúdo protegido por normas de direito de autor que independem de qualquer autorização dos titulares (limitações e exceções aos direitos autorais, particularmente as dispostas no art. 46 da Lei de Direitos Autorais). Além disso, sistemas de DRM contrariam diretamente o perfil de liberdade e abertura que o SBTVD deve ter por mandamento constitucional. O art. 155, X, “d” da Constituição se refere aos serviços de radiodifusão sonora de e de imagem como de recepção “livre e aberta”. E a própria legislação da TVD garante que nada muda com a digitalização. O art. 4º do Decreto n.º 5.820/06 (referente aos limites de atuação do Comitê de Desenvolvimento do Sistema Brasileiro de Televisão Digital) diz: “O acesso ao SBTVD-T será assegurado ao público em geral, de forma livre e gratuita, a fim de garantir o adequado cumprimento das condições de exploração objeto das outorgas”.

E a ausência de qualquer definição do Executivo, deixando em aberto a possibilidade de instalação?
A implementação desses sistemas por radiodifusores e fabricantes de hardware – ainda que ausente decisão do Executivo neste sentido –, seria igualmente questionável sob um ponto de vista jurídico. Mas há outro problema jurídico e político tão grave quanto as possíveis conseqüências da adoção de um sistema de DRM no SBTVD que precisa ser ressaltado: a total falta de transparência que tem marcado os debates em torno da questão. Decisões têm sido tomadas atrás de portas fechadas, e as informações que chegam até o público são escassas e, pelo menos em um caso, contraditórias. Vide as recentes manchetes diametralmente opostas publicadas nos jornais Folha de São Paulo e O Globo.

E em que medida esta é uma questão legal?
Falta de transparência em um processo tão importante, envolvendo concessão para a exploração de um serviço crucial como o de radiodifusão, não é algo compatível com o modelo de Estado Democrático de Direito adotado pelo Brasil, e tampouco respeita o princípio da publicidade ao qual se encontra submetida a Administração Pública (art. 37, caput, da Constituição).

A justificativa apresentada pelos empresários – que vão dos concessionários de TV aos grandes estúdios de Hollywood – é a pirataria…
O termo “pirataria” é extremamente questionável, em razão de sua maleabilidade. Quem é, afinal, “pirata”? Quem grava um programa na TV para assisti-lo depois? Quem instala uma cópia do Windows Vista em seu computador sem observar o que dispõe o licenciamento do programa? Quem vende uma cópia do mesmo programa? Quem faz uma performance musical em praça pública, a título gratuito, sem pagar os direitos referentes à execução? “Pirataria” é um rótulo flexível, que é utilizado de forma igualmente flexível. Juridicamente, fala-se em “violação de direitos autorais”, algo que representa um número considerável de condutas bastante diferentes, que devem ser vistas de modo igualmente diferente.

No caso da TV digital, faz sentido alertar para esta “pirataria”?
No que diz respeito à implementação de sistemas de DRM em geral – não apenas em se tratando de TV digital – a justificativa do “combate à pirataria” é utilizada de forma estratégica, de modo a ocultar as principais funções e objetivos da tecnologia envolvida.

Quais as funções dos sistemas DRM que não estão sendo discutidas às claras?
O que sistemas de DRM fazem é muito mais do que simplesmente estabelecer uma arquitetura para o controle de acesso e reprodução de informação. Na verdade, sistemas de DRM, em sentido estrito, são arranjos tecnológicos complexos, destinados à execução automatizada de contratos eletrônicos, acoplados a instrumentos de monitoramento de consumo. Proteção anticópia faz parte de sistemas de DRM, evidentemente, mas coibir reprodução é apenas uma dentre outras funções exercidas, a serviço de um objetivo maior. Este objetivo, resumidamente, não é combater a pirataria, mas estabelecer uma infra-estrutura tecnológica que permita a titulares de direitos autorais praticar discriminação de preços de forma abusiva.

O que isso significa em termos práticos?
É possível, a partir de sistemas de monitoramento, fazer perfis detalhados dos hábitos de consumo de qualquer pessoa e ajustar os preços do conteúdo oferecido conforme estes perfis. Se um consumidor está disposto a pagar R$ 5 por uma música, e outro está disposto a pagar R$ 15, cobra-se conforme faixas de preços condizentes com a disposição de pagar que cada consumidor tenha em relação a um mesmo bem, escondendo-se variações díspares de preço por trás de “promoções”, “pacotes” ou “planos”. Fora de uma arquitetura de DRM, fica muito difícil determinar com eficiência quais são as faixas de preço que se pode estabelecer, o que limita a possibilidade de discriminação. Além disso, pode ser problemático fazer com que certas disposições contratuais sejam executadas conforme o previsto, bem como conseguir adesão de consumidores a faixas de preços que se revelam muito contrastantes, em relação a um bem idêntico.

É uma função bem diferente de “impedir cópias”…
Sendo os sistemas de DRM aparatos tecnológicos que, por um lado, impedem os consumidores de manipular informação fora dos limites traçados por um contrato de licença – ainda quando a manipulação seria perfeitamente legal –, e por outro viabilizam a elaboração de perfis de consumo que tornam a discriminação de preços mais eficiente e, sobretudo, menos transparente ao consumidor, as tecnologias em questão acabam tendo menos a ver com “combate à pirataria” e mais a ver com a imposição de um modelo de negócios fundado em discriminação de preços abusiva.

Quais as implicações disto para o modelo da TV digital?
Teoricamente a programação do SBTVD é aberta e o modelo de negócios dos radiodifusores seria sustentado por publicidade, como ocorre tradicionalmente. Dependendo, todavia, do padrão de DRM adotado, é possível transformar a TV digital em um sistema de entrega de conteúdo pay-per-view e pay-per-listen. Além de bloquear usos legítimos de conteúdo, como já afirmado em resposta à primeira questão, outra possibilidade que se abre é a de se transferir para a TV aberta o modelo de negócios da TV a cabo. Os radiodifusores podem até negar que essa seja a intenção, mas estudando-se alguns dos padrões técnicos estabelecidos internacionalmente, é impossível chegar a uma conclusão diversa do que a de que algumas infra-estruturas existentes de DRM foram concebidas exatamente para este tipo de uso.

O governo diz que precisa tirar o DRM dos conversores mais simples porque o preço do aparelho está muito alto. Por outro lado, o acordo desenhado agora impõe o sistema aos aparelhos mais sofisticados. O consumidor não fica, assim, encurralado entre estas duas opções?
O consumidor fica em uma posição no mínimo ingrata. O processo de fixação de padrões técnicos para o SBTVD tem assumido um nítido caráter antidemocrático. Estamos expostos a informações ambíguas e a um estado de constante incerteza quanto ao futuro da TV digital no Brasil, quando a totalidade do processo deveria ser transparente e aberta à participação da sociedade civil. Não se sabe muito bem qual será o desfecho da questão, se e quais sistemas de DRM serão adotados, se haverá ou não uma norma jurídica obrigando a adoção desses sistemas ou se os próprios radiodifusores e fabricantes de conversores chegaram ou chegarão a um acordo mútuo comprometendo-se em favor da adoção recíproca de determinados padrões técnicos de DRM. O problema, na verdade, não é encurralar um potencial consumidor entre as duas opções mencionadas, mas o que de fato acontecerá com todos os consumidores, atuais e futuros. Ou corre-se o risco de comprar um aparelho caro e que eventualmente não funcione (em razão de não se adequar a determinados padrões técnicos), ou de adquirir um aparelho que funcione, mas funcione submetido a todas as restrições e violações de direitos provocadas por um sistema de DRM.

Por último, existe alguma chance do governo optar por outro tipo de controle de conteúdo que não a barreira nos receptores? Por exemplo, uma criptografia na fonte?
Apesar de existir, de fato, alguma chance do governo optar por uma criptografia na fonte sustentando um padrão técnico por meio de uma norma jurídica, a criptografia pode ser feita na fonte pelos próprios radiodifusores de forma autônoma. Se os fabricantes de conversores, a seu turno, aderirem aos mesmos padrões, e não houver a opção de se comprar um conversor que não obedeça a esses padrões e ao mesmo tempo funcione, o resultado prático será exatamente o mesmo caso o governo expressamente imponha o padrão. Seria um acinte maior, é claro, se houvesse disposição legal ou infra-legal no sentido de que o padrão fosse obrigatório. Mas meramente fazer vistas grossas à implementação de um padrão técnico pode causar efeitos práticos idênticos.

Como funciona este “controle por fora”?
Especificações técnicas relativas a sistemas de DRM são fixadas, usualmente, por consórcios corporativos internacionais. Um acordo entre os vários atores envolvidos em um determinado ecossistema tecnológico – por exemplo, a TV digital – pode levar à adoção generalizada, trans-industrial, de um determinado padrão técnico que institua um sistema de DRM. Se o consumidor não tiver a opção real de comprar um aparelho que fuja aos padrões e ainda assim funcione, o controle estará instituído, independentemente de qualquer decisão governamental. As organizações que fixam padrões técnicos, as chamadas SSOs (Standards-Setting Organizations), acabam funcionando quase como entidades legiferantes, bastando uma ofensiva adequadamente planejada de lobby para forçar o Legislativo de um país (ou mesmo uma agência reguladora do Executivo) a converter padrões técnicos fixados privativamente em direito publicamente posto. Estamos, em outras palavras, atualmente enfrentando problemas jurídicos, tecnológicos e sobretudo políticos, sem ter os instrumentos necessários para reagir às pressões corporativas exercidas sobre os agentes envolvidos nos processos decisórios relativos à implementação do SBTVD.

Além do entretenimento

Na madrugada da última quarta-feira, dia 12, o Senado aprovou a Medida Provisória que cria a TV Brasil, que já operava desde o dia 2 de dezembro do ano passado. Em entrevista ao RIO MÍDIA, o diretor-geral da emissora, Orlando Senna, garantiu que 40% da grade serão preenchidos com produções voltadas para crianças e adolescentes. “O que se observa, de uma forma geral, é que falta para esta faixa etária uma programação que contenha informação, educação e valores éticos. A maior parte do que está no ar se resume apenas ao entretenimento”, avaliou.

Orlando Senna também frisou que a TV Brasil trará um novo modelo de fazer e ver televisão. Os telespectadores participarão não apenas criticando, mas produzindo. Câmeras, celulares e outros meios digitais serão colocados à disposição da população em diversas regiões do país.

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Produção de qualidade para crianças e jovens. Na sua avaliação, como podemos definir mídia de qualidade?
Orlando Senna – A mídia de qualidade tem três aspectos principais a serem considerados. A qualidade técnica que implica em sinal de televisão, som e imagem, com definição e sem degradação. A qualidade artística, ou seja, a forma de expressão do conteúdo, a estética. E a qualidade do conteúdo, uma perna importantíssima deste tripé, principalmente quando se destina à crianças e adolescentes que, por ainda não possuírem juízo crítico apurado, estão vulneráveis às informações recebidas, merecendo todo cuidado e atenção possíveis. O que se observa, de uma forma geral, é que falta para esta faixa etária uma programação que contenha informação, educação e valores éticos. A maior parte do que está no ar se resume apenas ao entretenimento.

De que forma a produção brasileira voltada para crianças e jovens terá espaço na TV Brasil?
A TV Brasil dedicará, na sua nova grade, um espaço privilegiado para crianças e jovens. Essas faixas ocuparão cerca de 40% de toda a programação.


Que projetos existem para esta área? Estão previstos recursos, linhas de financiamento para produzir mídia de qualidade para o público infanto-juvenil? Haverá produção própria ou independente?
Os projetos são muitos. Além das produções próprias, serão lançados, ainda no primeiro semestre deste ano, editais para produtores independentes no valor de aproximadamente R$ 8 milhões, dedicados a essas faixas etárias. Há projetos incluindo desenhos animados e uma série de 40 episódios para adolescentes.

E qual será o espaço da educação, do entretenimento e da cultura na TV Brasil?
A razão de ser de uma TV Pública é a formação e o desenvolvimento da cidadania, lastreando-se na diversidade cultural, na pluralidade de pontos-de-vista, na isenção jornalística e na inclusão audiovisual. Sua obrigação é informar, educar e entreter. E essa será a escala de prioridades para a ocupação de espaço desses assuntos.

Em uma TV Brasil, qual deve ser o papel do público? Mero espectador?
De forma alguma. A TV Brasil é o espelho eletrônico da sociedade brasileira. O público é o protagonista e não apenas uma multidão de espectadores passivos. O público não só vai poder criticar e sugerir, como também produzir conteúdo por meio de câmeras, celulares e outros meios que serão colocados à disposição da população em todas as regiões do país, seja nos Pontos de Culturas [projeto do Governo Federal/Ministério da Cultura], nos cineclubes e nas associações comunitárias. A TV Brasil está desenvolvendo um sofisticado programa de internet para que o público possa interagir com a emissora, inclusive em tempo real. A TV Brasil veio para revolucionar completamente a relação emissora-telespectador, estimulando o espectador a evoluir da passividade para uma atitude ativa, participativa.

De que forma a TV Brasil vai garantir de fato a participação da sociedade?
Em primeira instância por meio do seu Conselho Curador, orgão maior da TV Brasil, composto por representantes da maioria dos setores da sociedade brasileira, que tem a função de orientar e fiscalizar rigorosamente o funcionamento da TV Brasil. Em segundo lugar, pelas razões que expusemos anteriormente, ou seja, a sociedade brasileira vai compartilhar a produção da programação com os profissionais da emissora.

Qual o posicionamento da direção da TV Brasil com relação as críticas do processo de escolha dos integrantes do Conselho? O Conselho já tem atuado e de que forma?
O processo de escolha do Conselho não foge a nenhum critério utilizado no resto do mundo. Na Inglaterra, o primeiro Conselho, o Board of Governors, foi inteiramente escolhido pelo Primeiro Ministro e avalizado pela rainha. Depois de janeiro de 2007, o BBC Trust, o atual Conselho Curador deles, com 12 membros, foi escolhido pelo Ministério da Cultura, com representantes dos diversos setores sociais. Os nomes são levados à rainha que os sanciona ou não e escolhe um membro do Parlamento para presidir. Na França, o Conselho tem apenas nove membros, nomeados pelo Presidente da República, pelo Senado e pela Câmara dos Deputados. Tudo no mundo pode ser aperfeiçoado e a forma de composição do nosso Conselho Curador também, mas temos a certeza de que começamos com critérios corretos. No momento, os atuais conselheiros estão avaliando a proposta de auto-renovação, na qual a escolha dos futuros membros seria feita a partir de consultas diretas, do atual grupo, à sociedade. O Conselho já está atuando. Ele tem feito recomendações essenciais, como a exigência de que a TV Brasil opere de forma plural em todos os seus programas.

O que os brasileiros podem esperar da TV Brasil?
Ainda pouca gente compreende realmente a profundidade da transformação de uma sociedade quando surge uma televisão pública de verdade, gerida e alimentada editorialmente pela população. Muitos ainda confundem TV pública com TV estatal. Não deveria haver essa confusão, já que uma é a voz da sociedade e a outra, a voz do governo. Se o governo quisesse uma TV estatal não precisaria criar a TV Brasil. Ele já possuía as emissoras da Radiobrás que, inclusive, vão deixar de existir. Embora financiada inicialmente pelo Estado, a TV Pública pertence à sociedade, que deverá participar, criticar e fiscalizar. A TV Brasil não é um empreendimento de meia dúzia de pessoas. Ela tem que ser feita pela sociedade brasileira que é a verdadeira dona da emissora. A TV Brasil será o que o povo brasileiro quiser e fizer dela, é um trabalho conjunto. Os brasileiros podem esperar da TV Brasil um novo instrumento de exercício da cidadania, um espaço para a manifestação de sua multiplicidade humana, cultural, religiosa, política, uma fonte independente e popular de informação e conhecimento, uma tribuna eletrônica para discussão das grandes questões nacionais, uma nova maneira de fazer e ver televisão.

A hegemonia do privado sobre o Estado

* Reproduzido da revista MídiaComDemocracia nº 7, fevereiro/2008, publicação do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC)


Por Ana Rita Marini

A luta pela democratização dos meios de comunicação no Brasil tem quase três décadas e já cunhou alguns nomes de expressão. Um deles é Murilo César Ramos – jornalista, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília –, militante das buscas coletivas por políticas mais justas para as comunicações no país desde quando, ainda principiante, na faculdade, suas inquietações o levaram a procurar respostas e formulações para reverter o que denomina "as distorções de poder no jornalismo". Uma vez nessa "trilha", participou ativamente dos mais importantes capítulos da história da democratização da comunicação brasileira, entre eles a Assembléia Nacional Constituinte e a formulação da Lei do Cabo. 

Murilo Ramos preocupa-se, hoje, com um novo marco regulatório que resgate o caráter público da radiodifusão e almeja uma Conferência Nacional ampla e plural, que dê conta da agenda político-normativa pautada até agora pelos movimentos pela democratização da comunicação. A partir de Brasília, onde trabalha e reside, concedeu por e-mail esta entrevista.

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Sua participação na luta pela democratização da comunicação no Brasil é destacada. Como foi o início dessa luta, o que a motivou e a motiva ainda hoje?
Murilo César Ramos – Se é destacada, sinceramente, não sei. Mas é, com certeza, longa. São 25 anos de participação em movimentos e organizações de luta por mais democracia na comunicação brasileira. Sempre a partir da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Foi como professor que canalizei de modo concreto os sentimentos difusos que tinha desde o início da carreira profissional, no final dos anos 1960, em Curitiba, sobre as distorções de poder no jornalismo. Sou grato até hoje a um amigo jornalista que, infelizmente, perdi de vista: Geraldo Hasse. Ele me fez ler Ilusões Perdidas, de Balzac, livro a que somei, alguns anos depois, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto. Nesses livros está boa parte da inspiração que busquei para, nas lutas coletivas, tentar mudar democraticamente o jornalismo e as instituições de comunicação como um todo. Devo ainda muito, mas muito mesmo, ao meu primeiro orientando de mestrado, na UnB: Daniel Herz. No início dos anos 1980, foi o Daniel que, ao discutirmos o que poderia ser sua dissertação de mestrado, me descortinou fatos e processos sobre a comunicação no Brasil que até então desconhecia. Na dialética orientador-orientando, que construí com Daniel Herz e que derivou para uma amizade fraterna, duradoura até a sua morte tão prematura, está a motivação que me alimenta, na academia e fora dela, a lutar por uma comunicação mais democrática em nosso país.

Qual sua opinião sobre os movimentos pela democratização da comunicação no país?
M. C. R. – Foi com um amplo movimento que tudo começou, entre os anos 1960 e 1970, unindo forças sindicais e sociais, partidos políticos, parlamentares e academia; primeiro na luta contra a ditadura militar e a censura; depois, por eleições diretas; e, adiante, por uma Constituição democrática. Na época do Congresso Constituinte, já se tinha uma frente nacional que dominava as propostas democráticas nascidas no âmbito da Unesco e que propunha uma nova ordem mundial da informação e da comunicação, decorrente de políticas democráticas de comunicação. As derrotas e as vitórias no processo constituinte (mais derrotas que vitórias) levaram ao nascimento, nos anos 1990, do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. O FNDC, herdeiro do processo de formulação e luta vindo dos anos 1960, é, junto com a radiodifusão comunitária, inspirador de movimentos e instituições mais recentes, como o Coletivo Intervozes. Constituinte, Conselho de Comunicação Social, TV a Cabo, radiodifusã o comunitária, privatização do Sistema Telebrás, TV Digital, um novo marco regulatório para a radiodifusão: todos esses processos têm incrustada neles a marca do movimento pela democratização da comunicação no Brasil, um dos mais importantes em todo o mundo.


Este governo federal é criticado freqüentemente pelos movimentos pela democratização da comunicação. As propostas da Ancinav, do Conselho Federal dos Jornalistas e o desfecho da TV Digital são apontados como exemplos de uma postura passiva. Os radiodifusores comunitários reclamam de que são mais perseguidos e que aumentaram as dificuldades para se legalizarem. Na sua opinião, a que se deve esse comportamento? Trata-se de uma subserviência do governo ao mercado?
M. C. R. – É o que parece. Os governos se sucedem, mas não se impõem sobre o mercado, sobre as empresas de comunicações, em especial sobre as de radiodifusão. Iniciativas surgem, da sociedade, de setores do próprio governo, como foi o caso do projeto da Ancinav no primeiro mandato do presidente Lula, mas quando se chega perto de uma decisão, voltam a se impor os interesses do patronato da comunicação. Nada disso deve nos surpreender muito em uma sociedade capitalista. Mas, no caso da radiodifusão, nosso ambiente político-normativo está entre os mais entregues ao mercado de que tenho notícia. Nem na sociedade mais capitalista e consumista do mundo, os Estados Unidos, é assim. Como não o é na Grã-Bretanha, na França, na Suécia, e assim por diante.

Sabendo-se que o Ministério das Comunicações, historicamente, não formula políticas de comunicação, quem as formula, em sua opinião? O governo continua abdicando dessa prerrogativa?
M. C. R. – Se o governo abre mão de formular as políticas para a comunicação, e ele de fato costuma abrir, elas se realizam por meio dos interesses empresariais, das corporações, que têm no lucro seu objetivo quase que exclusivo. São as políticas dos fatos consumados, sem qualquer participação social mais ampla. É a hegemonia privado-comercial sobre o Estado, que compromete a democracia mesmo no liberalismo.


Com a convergência tecnológica dos meios de comunicação, cresceu o debate sobre a criação de um marco regulatório para as comunicações. É possível construí-lo face à diversidade de meios e interesses abarcados? Quais os principais itens a constar na "espinha dorsal" desse marco? A Constituição Federal precisa ser revista em seu capítulo V?
M. C. R. – Não tenho dúvidas de que o Capítulo da Comunicação Social precisa ser revisto, embora reconheça ser essa uma daquelas missões quase impossíveis, dada a correlação de forças que temos hoje e que não deverá ser alterada em pouco tempo. Ele é uma colcha de retalhos mal costurada, com sérios problemas conceituais e de arranjos legais, resultantes da batalha perdida pelo movimento de democratização da comunicação durante o processo de elaboração constitucional. Qualquer novo marco regulatório para as comunicações, que inclua o rádio e a televisão, precisa resgatar, por exemplo, o caráter público de toda a radiodifusão, reconhecendo que a idéia de complementaridade entre sistemas privado, público e estatal é uma armadilha que tende a tornar o público e o estatal simples guetos diante de um colossal sistema privado-comercial. Esse resgate inclui o debate das anomalias jurídicas que são os institutos da concessão e da permissão na radiodifusão brasileira. É preciso submete r a radiodifusão privado-comercial a relações contratuais claras com o Poder Público e a instrumentos regulatórios e fiscalizatórios eficazes e transparentes. É preciso dar cabo de absurdos como a constitucionalização dos prazos de outorgas de radiodifusão. Esse é um dispositivo que chega a ser cômico. Em suma, pensar um em novo marco regulatório para a comunicação sem começar por uma revisão ampla do Capítulo da Comunicação Social é pensar o certo, mas com a estratégia errada.

A sociedade está reivindicando e o governo se comprometeu em realizar a Conferência Nacional de Comunicação em 2008. O que o senhor espera da Conferência? Quais as suas sugestões para o bom andamento dessa iniciativa?
M. C. R. – Só uma Conferência nos moldes da que se discute hoje dará conta das tarefas que apontei anteriormente, meros exemplos de uma agenda político-normativa mais ampla que o movimento pela democratização da comunicação discute há décadas. Eu espero muito da Conferência, mas espero, acima de tudo, e antes de mais nada, que sejamos fortes e coesos o suficiente para realizá-la, pois os seus opositores por ora estão na muda, mas, se perceberem que de fato ela acontecerá, se mobilizarão e farão grande pressão sobre os poderes Executivo e Legislativo para que ambos se afastem da iniciativa. Se isso acontecer, a Conferência poderá se transformar em um mero evento de protesto cívico.


A entrada das empresas de telecomunicação nos serviços de transmissão de conteúdo audiovisual sofre oposição acirrada dos radiodifusores. O ingresso das teles na transmissão de conteúdos não significará o fim e/ou a fragilização do atual modelo de radiodifusão? Como estabelecer critérios que regulem suas novas atividades?
M. C. R. – Não vejo problema na entrada das empresas de telecomunicações no mercado de televisão por assinatura. Como consultor, tenho trabalhado para que isso aconteça. Mais operadores de televisão por assinatura pode significar a ampliação do acesso a esse serviço por mais pessoas, ainda que ele vá manter, por muito tempo, o seu caráter essencialmente elitista. Já a possibilidade de as empresas de telecomunicações oferecerem televisão por assinatura de forma alguma ameaça o sistema de radiodifusão. Esse é um argumento engendrado pela Globo para, fundamentalmente, manter o seu domínio quase absoluto sobre a produção audiovisual brasileira. O Congresso Nacional discute no momento essa questão. E, por mais incrível que pareça, a radiodifusão, ou melhor, a Globo, continua a levar vantagem. Ao mesmo tempo em que ela "concede" às teles o direito de distribuir programações audiovisuais mediante assinatura, as impede de sequer financiar produções independentes. A "política audiovisual" da Globo é mais restritiva do que a da própria Ancine, disfarçada de proteção à "cultura" nacional, o nome que ela dá ao seu virtual monopólio sobre a produção audiovisual.

O Conselho de Comunicação Social está parado há mais de um ano. O que a comunicação (e a sociedade) perde com isso? Como fazê-lo atuar novamente – e com mais poder?
M. C. R. – Sempre fui e continuo cético quanto ao Conselho de Comunicação Social. Ele foi aparelhado pelos interesses privado-comerciais e não vejo chance de isso mudar no curto e no médio prazos. Espero, como disse há pouco, que a Conferência Nacional aconteça e que dela nasça, entre outras medidas, um órgão regulador eficaz e autônomo para a radiodifusão. É disso que precisamos, e não de um inócuo órgão auxiliar do Congresso Nacional.

As concessões em radiodifusão no País entraram na pauta legislativa no último ano, mas o espaço é reconhecidamente comprometido, com mais de 70 parlamentares proprietários de rádios e TVs. Como é possível rever a regulamentação das concessões? E fiscalizá-las?
M. C. R. – Só com a adoção de um novo marco regulatório, de uma nova lei, que venha acompanhada, como já frisei, de instrumentos regulatórios autônomos e eficazes. A radiodifusão não pode continuar a ser regulada pelo Ministério das Comunicações, isso é tudo o que os radiodifusores querem. E as outorgas de radiodifusão precisam deixar de ser submetidas ao escrutínio interessado, e interesseiro, do Congresso Nacional.


Os cursos de Comunicação Social no País não costumam estender seus currículos em disciplinas que tratem de políticas de comunicação e mesmo de política em geral. O estudante e a academia estão despolitizados? Qual é o perfil dos profissionais que buscam a pós-graduação nesta área?
M. C. R. – Nossos cursos de Comunicação são esquizofrênicos. Instrumentais e meramente profissionalizantes na graduação; acadêmicos e voltados para a pesquisa na pós-graduação. Quando selecionamos alunos e alunas para nossos mestrados e doutorados, constatamos, quase sempre, uma tendência desanimadora: em competição com estudantes de áreas afins, como Ciência Política, Sociologia, por exemplo, os estudantes oriundos da Comunicação em geral saem-se pior. Na graduação, queremos ser jornalistas, publicitários, e queremos que os currículos se espelhem nas exigências do mercado. Na pós-graduação, queremos ser professores e pesquisadores e preferimos os referenciais teóricos críticos, contestadores do status quo. Por isso, sou favorável a uma mudança substantiva no perfil acadêmico dos cursos de Comunicação, na graduação, aproximando-os mais das Ciências Humanas e Sociais. Com isso, eles se aproximariam mais dos cursos de pós-graduação e diminuiríamos o fosso hoje existente ent re graduação e pós-graduação. Para mim, esse é o problema central dos nossos cursos, e não a despolitização do estudantado. Não acho que meus alunos e alunas de hoje prezem menos a política do que aqueles que tive nos anos 1980. Mais do que eles e elas, mudou a política, após o colapso da União Soviética, que abriu caminho para a hegemonia neoliberal dos anos 1990. Resgatar o pensamento crítico é o nosso maior desafio político hoje, na academia e fora dela.

Quem é o vilão da democratização da comunicação?
M. C. R. – A hegemonia, que parece eterna, do empresariado da radiodifusão sobre a política e os políticos. Sei que esse é um raciocínio que parece simples e simplista demais. Mas, quanto mais estudo, trabalho e milito no campo da comunicação, mais me convenço disso.  

* Murilo César Ramos é pós-doutor em Comunicação pela Unicamp, doutor em Comunicação pela University of Missouri-Columbia, EUA e professor na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), onde coordena o Laboratório de Políticas de Comunicação (LaPCom).