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As bandeiras da democratização da mídia

[Título original: "Transformar jornalismo em serviço público é o desafio da comunicação"]

Num ano dos mais movimentados no setor da comunicação, com as extinções da Lei de Imprensa e da obrigatoriedade do diploma de jornalismo para o exercício da profissão, corremos o risco de perder o foco de debates mais relevantes no sentido de organizar a democratização das comunicações no Brasil. É a análise do jornalista Renato Rovai, editor da Revista Fórum, entrevistado pelo Correio da Cidadania para tratar de alguns dos assuntos de total interesse tanto de comunicadores como do público, ambos cada vez mais um mesmo agente.

Quanto aos temas mais abordados pela grande mídia, Rovai relativiza sua importância, pois não alteram a realidade do jornalismo e nem mexem nas relações de poder, que realmente definem os "graus" de liberdade de expressão concedida a cada grupo social.

Por outro lado, destaca que do lado dos entusiastas da democratização da mídia fez falta uma pauta que visasse regular o exercício da profissão com o fim da lei de imprensa, de forma a contemplar todos que trabalham na área, sem distinção de formação.

De olho nas tendências do futuro na área da comunicação, Rovai destaca que os grandes conglomerados estão num momento de defensiva, o que se vê na avidez em controlar as novas tecnologias e no discreto trabalho de esvaziamento da Conferência Nacional da Comunicação. No entanto, se mostra otimista com algumas questões, como em relação ao veto do projeto do senador Eduardo Azeredo, que visa impor controles inviáveis no uso da internet e no próprio direito à troca de informações.

Em síntese, todos aqueles interessados em mudar os atuais rumos da comunicação devem se focar menos nos debates que foram travados na grande mídia e no judiciário brasileiro e mais nas bandeiras que tragam a democratização da comunicação e do acesso à informação no país, como, por exemplo, banda larga gratuita para todos e a instituição do jornalismo como um serviço público.

Como analisa a revogação total da antiga Lei de Imprensa?
Eu acho que em algumas questões na área da comunicação está deixando de se fazer um debate completo, o que tem criado alguns problemas. No caso da lei de imprensa, penso que a revogação em si não é problema, e sim deixar de se discutir algo para ocupar seu lugar, retirando-a sem apresentar alternativa.
Em boa medida isso acontece também porque o debate no Conselho Federal de Jornalismo foi malfeito. Naquela ocasião, deveria ter sido feito um debate sobre a construção de um conselho ou algo que regulamentasse a atividade profissional do jornalista e suas ações. Tais debates, tanto da lei de imprensa como do diploma, poderiam ter sido feitos de forma mais ampla, impedindo que tivéssemos um vácuo jurídico em algumas questões.

O fato de sua revogação ter partido também de campanha por parte dos grandes grupos do setor não é uma mostra que devemos ter o pé atrás com as conseqüências da extinção da lei? Não se corre o risco de a manipulação da informação ficar ainda mais descontrolada?
Os grandes conglomerados, as corporações midiáticas, evidentemente não agem por emoção. Tudo tem um interesse comercial, político e, por que não dizer, de grupo, corporativo também. Eu acho que eles tinham objetivos na revogação dessa Lei de Imprensa. Mas também é verdade que nós, do outro lado, não buscamos construir alternativas que pudessem ser implementadas na ausência de tais leis, como se viu nos últimos dois casos, tanto na lei de imprensa e como na questão da obrigatoriedade do diploma jornalístico.

Que ligação isso poderia ter com o fim da exigência de diploma, também defendido por tais correntes?
Bom, particularmente, eu não tenho posição favorável à obrigatoriedade, sou contra a necessidade do diploma de jornalismo para o exercício profissional. O que acho que precisa ter, e vejo alguns políticos agora fazendo esse parêntese de que não buscamos alternativas, é a regulamentação do exercício da profissão de jornalista. É preciso defender que o profissional, tendo ou não diploma, exercendo o papel de jornalista seja tratado como jornalista. E ficaria obrigado a respeitar certos critérios para essa atividade profissional, tanto do ponto de vista da lógica de sua inserção no mercado de trabalho – que de alguma forma ainda está preservado pela própria Fenaj, já que quando se contrata uma pessoa para jornalista ela deve receber o piso salarial – como também no que concerne às formulações éticas.
Dando uma outra característica, penso que deveria se recuperar alguma espécie de ordem ou conselho de jornalistas, de profissionais que exercem a profissão de jornalista, o que não deve ser vinculado à necessidade de a pessoa ter um diploma somente da faculdade de jornalismo. Vou dar uma opinião mais particular: se eu fosse guri e tivesse de fazer faculdade, provavelmente cursaria jornalismo, que era a profissão que eu gostaria de exercer, independentemente de ser obrigatório ou não o diploma. Na USP, um dos cursos mais concorridos é o de publicidade, área onde não há obrigatoriedade do diploma; na mesma linha, as pessoas não deixam de cursar história, mesmo sem a obrigação do diploma.
Acho que acabamos nos enredando numa armadilha que nos leva a fazer a defesa de uma coisa que interessa muito mais a grupos econômicos ligados à má educação do que ao próprio exercício profissional. Pode ser ingenuidade minha, mas não vejo que há uma combinação de ações para, digamos, liberalizar completamente a profissão. Até porque ela já é superliberalizada, os grandes grupos econômicos, em tese os maiores interessados na não-obrigatoriedade do diploma, já contratam gente não diplomada há muito tempo, dão de ombros para nossos sindicatos, que por sinal estão muito enfraquecidos. Exemplo disso foi o sindicato de São Paulo, que segundo suas próprias informações tem 30 mil filiados na base e uma eleição que foi acirrada, com duas chapas, teve 1300 votos. Creio que isso também tenha a ver as próprias formulações que têm sido feitas pelas entidades, dizendo muito mais respeito a questões cartoriais que a questões do dia-a-dia da atividade profissional, que inclusive não passa somente pelas redações dos grandes veículos corporativos. Nós da Fórum, vocês e diversos outros veículos estão também fazendo história no jornalismo de hoje, com profissionais também envolvidos, sem contar os movimentos sindical e social, que têm contratado cada vez mais profissionais da área. Eu não acredito que agora vão procurar gente que não tenha diploma. Sinceramente, eu não acredito nisso.

E acredita na validade do argumento de que o fim da lei aumentará a liberdade de expressão? Isso não está muito mais condicionado às redes de interesses e poderes envolvidas diretamente na comunicação?
Acho que isso também não muda. A nosso favor, vejo que muda o seguinte: as rádios comunitárias, por exemplo, que não possuem profissionais de jornalismo formados, vão ter mais tranqüilidade para operar. Acho que beneficia também a ação da internet, onde há muita gente fazendo jornalismo. Vou dar um exemplo: Eduardo Guimarães, um blogueiro amigo, é comerciante e tem um dos blogs mais visitados no que diz respeito à mídia. Construiu o Movimento dos Sem Mídia, que virou uma ONG e tem ações interessantes contra os grupos corporativos. E ele não é jornalista diplomado. Amanhã ou depois, se alguém quisesse encasquetar com ele, poderia acuá-lo. Hoje ele tem mais liberdade. Do ponto de vista dos conglomerados midiáticos é bobagem, pois eles já dão de ombros para tudo isso há muito tempo.

O projeto de lei do deputado Eduardo Azeredo, chamado por algumas correntes de AI-5 digital, e as dificuldades em se conduzirem os preparativos para a Conferência Nacional da Comunicação não sugerem que podemos estar diante de uma ofensiva dos grandes grupos da comunicação no sentido de garantirem maior controle sobre a informação?
Bom, tenho dito, até usando uma expressão do professo Venício Lima, que em uma das palestras em que estivemos juntos fez uma citação do Gramsci que me parece muito adequada para o momento: o novo já nasceu e o velho ainda não morreu. Ou seja, há uma disputa colocada. Há uma revolução na área da comunicação e há muitas coisas novas surgindo. Ao mesmo tempo, os veículos, digamos, referendados no século passado, ainda continuam importantes e protagonistas, assim como os grandes grupos econômicos baseados nesse outro tempo. Essa disputa continuará ocorrendo. Ela ocorre tanto do ponto de vista dos interesses econômicos em jogo como por conta da disputa das tecnologias, a atual e a passada.
No caso da Conferência da Comunicação, tendo a pensar que ela será adiada. E não só porque as corporações midiáticas desejam, mas por uma necessidade real do calendário da construção, por parte dos movimentos do lado de cá. Estamos patinando em algumas coisas. E já sabíamos que eles iam tentar atrapalhar, sabíamos e era óbvio. Não podemos ser ingênuos, eles estão mesmo tentando atrapalhar, é o papel deles, pois querem uma conferência com 300 pessoas. Uma conferência que não mobilize e que discuta apenas questões da internet.
No caso do AI-5 digital é a mesma coisa. Os grandes grupos querem controlar a internet. E a possibilidade de conseguirem isso é tornando-a neutra. Isto é, que se possa identificar quem está fazendo o quê, de que jeito, de onde… Eles vão travar a disputa. Nós, do outro lado, temos de ficar vigilantes para que isso não ocorra. Houve uma grande mobilização, principalmente por parte do pessoal do Associação Software Livre, que já deu repercussão. Já houve um meio passo atrás em relação a esse projeto.
Quando ganhamos uma também é preciso falar. E acho que esse movimento liderado, entre outras pessoas, pelo Sergio Amadeu merece aplauso, porque conseguiu pelo menos retardar o processo. E acho que essa lei não será aprovada. Penso que a sociedade civil já conseguiu ser sensibilizada com o fato de que tal lei não pode ser aprovada. E por isso penso que ela não vingará.

Com o surgimento de diversas ferramentas informativas na internet, vantajosa a grupos que possuem menos voz nas mídias tradicionais, e a queda regular das vendas de jornais, não se está desviando o foco da discussão na área da comunicação sob argumentos etéreos e unânimes, tais quais "liberdade de expressão" e "entulho autoritário", ao invés de se buscarem essas novas formas de expansão da comunicação?
É muito curioso: essa mesma mídia que discute liberdade de expressão é a que de certa forma compactua com o golpe de Honduras. É a mesma mídia que supostamente defende liberdade de expressão que sustentou o golpe militar no Brasil. Os mesmos grupos: Estado de S. Paulo, Folha, Organizações Globo, não há novidade. Cada vez mais as pessoas vêem que eles não têm nenhum compromisso com liberdade de expressão. Assim, acabam tentando fazer ataques pontuais. No entanto, temos de tomar outros cuidados. Eu não acho que liberdade de expressão vem com o fim da obrigatoriedade do diploma ou com a queda de diversos pontos da Lei de Imprensa.
Eu penso que nossa pauta, por exemplo, tem de ser a conquista de banda larga gratuita à toda a população brasileira. É desse foco que estão desviando o debate, pois é preciso dizer que a discussão que vem sendo realizada é besteira e apontar caminhos para a sociedade. É preciso democratizar o acesso de banda larga a toda a população, é fundamental. E a banda larga brasileira tem de ser larga, não "larguinha". Além disso, podemos buscar a distribuição de computadores nas escolas, como já se faz no Uruguai, onde cada criança terá um laptop. É preciso criar bandeiras desse tipo, como a de toda criança ter um laptop, para que a alfabetização tenha outro nível no Brasil e nossas crianças tenham condições semelhantes às das crianças de países desenvolvidos no acesso à informação. Nós temos de sair com uma nova pauta, e nesse ponto é fundamental a internet.
No campo da democratização da comunicação, outra bandeira é transformar o jornalismo num serviço público, da sociedade. Como são o Ministério Público, o judiciário, as universidades federais. Precisamos construir uma comunicação pública no Brasil que não seja referendada na lógica estatal, mas dentro do que há de mais puro em termos de servir o público. Podemos também valorizar iniciativas nossas, como a dos Pontos de Mídia Livre. Inclusive, fui um dos idealizadores dessa proposta no Ministério da Cultura, ao lado da Ivana Bentes e Antonio Martins e também o Célio Turino. O próprio ministério tem uma iniciativa sensacional, a dos Pontos de Cultura, que ajudam a democratizar o acesso à mídia. Pontos de mídia livre significam que as pessoas têm liberdade para fazer comunicação. Essa é a pauta da modernidade, do século 21, ou ao menos de seu princípio.
Não acho que devemos deixar de discutir concessões. Também devemos, assim como a questão da radiodifusão. Mas talvez o que nos una mais e nos jogue mais pra frente seja a luta por bandeiras como as que citei.

Sem uma lei de imprensa, não acredita que setores minoritários ou discriminados pela grande mídia terão ainda menos espaço para se expressar, ainda que seja pela via do direito de resposta (outra lacuna esvaziada)?
Eu tenho cada vez mais a seguinte posição: deixemos como está essa mídia que conhecemos, pois ela por só vai se desgastar e se diminuir, e vamos nós mesmos construir aparelhos informativos. Vejo espaço para isso hoje. Não lutamos mais por faze, escrever, publicar. A luta é por audiência, pois já temos condições de pôr nossos veículos em pé; deixamos o patamar anterior, das décadas de 1980 e 90, quando não conseguíamos ter uma revista, um jornal, um site. Hoje os movimentos sociais estão articulados em rede, estão em outro nível. E falo do movimento gay, das mulheres, diversos, todos já têm outro protagonismo.
Agora precisamos ampliar a agenda, temos de buscar legislações, principalmente em relação a quem tem concessão, tem que diferenciar. Por exemplo, um produto impresso, como a Veja, que eu odeio, tem todo direito de fazer o que faz. Se a pessoa se sente agredida pelo jornalismo da Veja, pode entrar na justiça comum. Ainda é possível fazer isso. Mas quem tem concessão deveria respeitar um contrato público, pois recebeu aquilo. E devemos forçar esse contrato a ter um compromisso social maior. Privatizaram as concessões e fazem dela o que bem entendem para obter vantagens comerciais.

É esse tipo de debate que vem sendo evitado, aparentemente.
Os grupos econômicos, as corporações brasileiras, e as outras também, estão na defensiva. Estão perdendo espaço. Antes, se arvoravam em opinião pública, hoje, no limite, são opinião publicada em alguns veículos. Eles não são a esfera pública da comunicação. Até porque não considero que exista uma esfera pública da comunicação, existem algumas e eles são apenas uma delas. E dialogam com um público que é de elite e cada vez menor.
Há 15, 20 anos, a Globo era responsável por 70, 80 por cento da audiência do país. Isso porque pegamos audiência relativa, e não bruta. E hoje eles estão perdendo audiência bruta. Minha filha fica cinco, seis vezes mais tempo na frente do computador que da TV – ela tem 18 anos. Aí vão dizer que é algo da juventude. Mas no mínimo já significa que o consumidor do futuro está trocando de meio. E minha mãe, perto de fazer 70 anos, já fica hoje mais tempo na frente do computador também. Ou seja, eles estão perdendo até seu público mais tradicional. A pessoa se aproxima do computador e desiste de televisão, pois é um aparelho muito mais interessante, onde se pode participar, sem ser somente receptor.

Que caminho devem tomar os inumeráveis processos judiciais que correm por nossos tribunais envolvendo empresas de comunicação, jornalistas e quem tenha conflitos com essas partes? Algum dos lados tende a se beneficiar mais?
Sinceramente, não tenho avaliação a respeito. Não ouvi ninguém especializado para fazer essa avaliação e não sei exatamente a que pode levar. Mas suponho que muitos desses processos acabarão na justiça comum. Aliás, muitos já correm nessa instância, sem base na Lei de Imprensa. De qualquer forma, o veiculo ou o profissional tem de provar o que falam, e o cidadão que se sentir ofendido, lesado, ainda tem seus direitos resguardados. De toda forma, não tenho avaliação disso.

A disputa pró-Conferência de Comunicação

Defensora de primeira hora da realização de uma Conferência Nacional de Comunicação, a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP) acompanha de perto, como indicada pela Câmara dos Deputados, o processo de organização da primeira Confecom. Nesta entrevista ao Observatório do Direito à Comunicação, a deputada faz uma avaliação das dificuldades a serem superadas para que a conferência possa se realizar. Apesar dos percalços, Erundina é otimista em relação à força política acumulada pelos movimentos sociais em relação à pauta das comunicações. Segundo ela, a mobilização que levou à convocação da conferência torna possível mudanças significativas no setor.

Qual a sua avaliação do processo de convocação e organização da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) que está em curso?
O processo de convocação e organização da Conferência Nacional está se dando num ritmo muito lento, o que poderá comprometer a realização das etapas preparatórias. Temos menos de três meses para que elas se realizem e nem mesmo as estaduais foram ainda convocadas.

Como membro da Comissão Organizadora Nacional (CON), como a senhora avalia o andamento dessa comissão?
As quatro primeiras reuniões da Comissão Organizadora Nacional (CON), realizadas até agora, se deram num clima de muita disputa e desconfiança entre os membros dos segmentos ali representados, o que contribui para dificultar a construção de consenso e para a demora na tomada de decisões. Ao meu ver, isso também se deve ao fato de que muitos dos que compõem a comissão nunca participaram de uma conferência para definição de uma política pública. É o caso, por exemplo, dos empresários, cujos interesses são claramente antagônicos aos interesses dos representantes das outras entidades da sociedade civil, o que não deixa de ser uma rica experiência para todos os que dela participam.

O que está sendo feito pela CON para reaver a verba inicialmente prevista para realização da Confecom de mais de R$ 8 milhões, e que foi reduzida para cerca de R$ 1,5 milhão?
Na primeira reunião da CON eu perguntei ao seu presidente, Dr. Marcelo Bechara, sobre a verba inicialmente prevista para a realização da Confecom e que fora reduzida em mais de 70%%. A resposta foi que o Minicom estaria em entendimentos com o Ministério do Planejamento com vistas à sua devolução. Não tenho informações mais concretas a respeito.

A Conferência consegue ser realizada com apenas esses R$ 1,5 milhão que sobraram?
Com um orçamento de apenas R$ 1,5 milhão a conferência não terá condição nenhuma de se realizar.

O que as entidades que estão nos seus estados, organizadas em Comissões Estaduais Pró-Conferência, devem esperar do regimento que vem sendo discutido na CON?
Não dá ainda para se avaliar que regimento resultará das discussões que estão sendo feitas na CON, pois as decisões sobre as questões mais polêmicas ainda não foram tomadas, como, por exemplo, o quórum para deliberação no âmbito da própria CON quando não houver consenso. Essa dificuldade tem retardado muito os trabalhos da comissão.

Na sua avaliação, que pontos centrais o regimento interno deve contemplar?
Na minha avaliação, os pontos centrais que o regimento interno deve contemplar são: os eixos temáticos que devem constar do “documento-referência”, como desdobramentos do tema central da 1ª Confecom; definição das diferentes etapas da conferência: caráter; âmbito geográfico; prazos; responsabilidade pela convocação; número de delegados e proporcionalidade da representação; critérios de escolha de delegados; definição de competências das comissões organizadoras das várias etapas da conferência, entre outras.

Com o que a senhora já presenciou na CON, dá para prever como será a disputa na Conferência Nacional de Comunicação?
Pelo que presenciei até agora na CON, minha previsão é de que a disputa na Conferência Nacional de Comunicação será uma das mais acirradas das que já se realizaram. Isto em razão de ser a primeira nesse setor, que envolve interesses poderosos em disputa por tratar-se de uma política pública estratégica, como são as comunicações.

Qual o maior desafio das Comissões Estaduais Pró-Conferência para os próximos meses?
Ao meu ver, o maior desafio das Comissões Estaduais Pró-Conferência para os próximos meses é conseguir que governadores e prefeitos convoquem as Conferências Estaduais e as Conferências Municipais e/ou Intermunicipais, respectivamente, e a realização dessas etapas preparatórias em tão pouco tempo.

Na sua opinião, quais os pontos centrais para serem debatidos e modificados nessa Confecom, e por quê?
Na minha opinião, os pontos centrais a serem debatidos nessa Confecom e que devem gerar propostas de modificação são: a revisão e atualização do marco regulatório das telecomunicações; mudança nos critérios de outorga e renovação de concessões, com vistas à democratização do acesso; a concentração da propriedade dos meios e o fim dos oligopólios; a descentralização.

Quais as perspectivas que a senhora tem para a etapa nacional da Conferência? Ao ser ver, ela vai trazer mudanças significativas para as comunicações no Brasil?
Minhas perspectivas para a etapa nacional da conferência são sustentadas no fato de que a convocação da 1ª Confecom foi uma importante conquista da sociedade civil organizada e, como tal, acumulou força política capaz de exigir mudanças significativas nas comunicações no Brasil. Oferecerá subsídios indispensáveis para a elaboração de uma Política de Comunicação Social para o país, cuja garantia de implantação será dada pelo apoio popular que o Movimento Pró-Conferência e as etapas preparatórias acumularam e que nos dão a segurança do pleno êxito da etapa nacional da conferência.

Cultura indígena e os meios de comunicação

[Título original: Cultura indígena e mídia]

Severiá Idiorié nasceu em um antigo território Karajá, próximo ao vilarejo de São José dos Bandeirantes, no Goiás. Aos sete anos de idade se mudou para Goiânia a fim de se dedicar aos estudos. Formada no curso de Letras Modernas, na Universidade Católica de Goiás, aos 25 anos mudou-se para a aldeia Wederã, localizada na Terra Indígena Pimentel Barbosa, em Canarana, Estado do Mato Grosso, onde atua como educadora.

A veiculação da cultura indígena na mídia ajuda a difundir os costumes e ideais do povo?
Sim, há cerca de 20 anos o pessoal da minha aldeia, Wederã, começou a trabalhar com a questão da imagem, do que nós queremos manter vivo por meio de vídeos e documentários que são feitos. Temos videomakers da comunidade que captam imagens do nosso cotidiano, na tentativa de relativizar o diálogo entre os povos. Através de um edital do Ministério da Cultura, que incentiva a nossa própria produção, fizemos umas trilhas e vídeos, como a Nutrição e Saúde Xavante, que é um trabalho que resgata a alimentação da mulher xavante. Há também o “Darini – Iniciação Espiritual Xavante”, de Caimi Waiassé e Jorge Prodoti, que foi selecionado pela 29ª Mostra de Cinema de São Paulo e ganhou o prêmio de melhor documentário indígena na Mostra de Cinema da Cidade do México. Outros documentários foram feitos e em algumas entrevistas o cinegrafista se aproximou mais do povo indígena, mostrando que a única diferença é a cultura, mas que todos querem educação, saúde e alimentação melhor no Brasil.

Por outro lado, de que maneira a aldeia é influenciada pela mídia?
Viver isolado ou não para o meu povo é o seguinte: por mais que a gente quisesse ficar só nas aldeias, já não é mais possível. A Funai [Fundação Nacional do Índio] e outras políticas que estão sendo feitas no Congresso visam preservar a cultura indígena, no entanto por mais que exista essa preocupação, tem alguns momentos que não conseguimos evitar esse acesso. Quando isso ocorre conosco, há o mesmo efeito que nas comunidades não-indígenas. Nossos jovens, por exemplo, vão achar mais interessante ver um filme do que o jornal e maior paciência para ouvir músicas, do que um noticiário no rádio. Dentro da nossa comunidade, levamos para as escolas textos e livros que despertem questionamentos e análise do que vai servir desta nova cultura. A preocupação do cacique é de sempre abrir espaço para esses diálogos e de que os jovens sejam aconselhados pelos mais velhos e professores. A comunidade inteira tenta fazer esse “conselho social”, sobre o que é positivo para nós usarmos.

Isso altera a dinâmica da cultura?
Em alguns lugares, sim. No caso o que acho mais perigoso, é a questão da roupa, a nudez não é um problema, desde que você a observe de um ponto de vista cultural, mas, quando a nudez é vista pelo olhar do fálico, do não-índio, isto é perigoso. Porque a gente não olha para certas partes do corpo do outro, como os seios e as genitálias como objetos de desejo, você acaba introduzindo novos valores. Tem outra questão importante nisto, que é em relação ao individualismo. Em algumas comunidades, o dinheiro já não é mais um bem coletivo, e sim um bem individual. Isso se torna um processo capitalista: se antes a caça e a pesca eram repartidas entre todos, agora, quando o assunto é dinheiro, que não é um bem próprio da comunidade, os índios dão o mesmo valor que o não-índio. Eles pensam que se trabalharam e conquistaram aquilo, vão repartir somente com a minha família e os mais próximos. Isso é perigoso porque o dinheiro levou pobreza a alguns povos. Os índios pensam que todos os brancos são ricos, com cinco ou seis carros na garagem, morando em uma bela casa, com a geladeira sempre cheia e que com estas riquezas eles são felizes.

A introdução destes novos valores traz quais consequências à aldeia?
Há várias histórias de estupros e de raptos que ocorreram ao longo do tempo e fizeram com que a comunidade indígena criasse estereótipos de que os homens brancos são maus. Por exemplo, quando uma criança faz malcriação algumas pessoas da tribo dizem: “se você não ficar quieto, o branco vai vir te pegar e te levar embora”. Daí, nós temos que falar que não são todos os brancos que vão chegar, raptar e levar embora nossos filhos. É uma relação dialética entre os povos. Passa por aquilo que alguns estudiosos chamam de “o caminho do conhecimento”: ele passa pelo pensar, pelo sentir e pela ação. Então como é que você vai fazer isso e de que maneira transmitiremos essa aprendizagem? Falamos para eles observarem as pessoas que nos visitam, que geralmente são funcionários da Funasa [Fundação Nacional de Saúde] ou da Funai, ou é uma pessoa que veio fazer um trabalho de mestrado ou doutorado. Essas pessoas chegam e traem respostas paras os questionamentos deles e os nossos.

Sendo assim é importante registrar e exibir ritos, festas e manifestações do povo indígena?
É importante desde que a comunidade não-indígena deixe claro qual é o objetivo daquele filme, o que eles pretendem mostrar, de que maneira isso será apresentado. Os ritos, que são ritos mesmo, de segredo e tudo mais, não são mostrados, e outros temas que achamos que não serão compreendidos pelas comunidades não-indígenas, nós não gravamos, nem autorizamos sua reprodução. Eu acho que a comunidade tem de ter essa preocupação de conviver com as outras pessoas, pois elas saem enriquecidas com esses trabalhos. Temos alguns cinegrafistas de origem xavante que captam imagens que mostram que nem todo homem branco segue o estereótipo criado pela mídia, este outro lado diminui o nosso preconceito.

Atualmente com essa questão da convivência, do viver junto, as relações entre o índio e o não-índio estão mais estreitas, ou ainda estão muito distantes do ideal?
Para algumas pessoas esta relação está muito próxima, mas para outras não. Então não dá para fazer algo quantitativo. Antes, as pessoas tinham a gente como objeto de pesquisa, como seres de uma realidade muito distante, mas esses núcleos de educadores e de formadores de opinião já não possuem mais esta imagem do índio. De onde eu venho, nós temos uma filosofia de que, se em um diálogo com um grupo de dez pessoas, ao menos um refletir sobre o assunto, já é algo significativo. Dependendo do que ela pensou e foi tocada, ela começa a agir. Por isso, evoluímos em algumas questões e em outras, não. Quando há a conscientização de que todos somos seres humanos, iguais nesta questão do biótipo, mas diferentes somente na visão de mundo, na maneira como educamos nossos filhos, tendemos a gerar uma convivência pacífica. Mas isso não quer dizer que os conflitos acabaram, aliás, o conflito até acrescenta, desde que ele não seja armado, apenas ideológico.

A batalha da mídia na América Latina

A América Latina tem se destacado no cenário internacional pelas sucessivas vitórias da forças de esquerda nas eleições presidenciais. Nestas experiências de caráter mais ou menos transformador, os meios de comunicação vêm assumindo papel fundamental, seja como forças de resistência às mudanças ou como instrumentos de disputa de hegemonia de seus promotores.

Uma análise deste quadro complexo e rico está no livro "A Batalha da Mídia" (Pão e Rosas, 2009), escrito pelo professor Dênis de Moraes. A obra discute o papel da comunicação nas lutas políticas em curso na região a partir da investigacão sobre como os governos progressistas latino-americanos têm agido em relação à mídia, seja no campo das políticas públicas para a área, seja na disputa contra grupos midiáticos opositores.

O autor analisou as alterações promovidas no ambiente regulatório do setor nos vários países e identificou que as novas políticas de comunicação de governos progressistas da região buscam viabilizar legislações antimonopólicas, apoiar meios alternativos e comunitários e estimular a produção audiovisual independente.

Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), sed iado em Buenos Aires, Argentina. É professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e  do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Autor e organizador de d iversos l ivros, entre os quais Cultura mediática y poder mundial (Norma, 2006), Sociedade midiatizada (Mauad, 2006),Combates e utopias: os intelectuais num mundo em crise (Record, 2004) e Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder (Record, 2003).
 
Nesta entrevista concedida ao Observatório do Direito à Comunicação, Dênis de Moraes fala sobre as experiências que encontrou em sua pesquisa e acerca de lições que podem ser adotadas no Brasil.

Como você analisa a importância das batalhas em torno da comunicação no processo atual de transformação na América Latina?

A comunicação tem importância estratégica no processo de transformação na América Latina. Trata-se de um campo de luta entre diferentes propostas hegemônicas, no quadro geral dos embates políticos e culturais que têm origem na totalidade social. É na arena da comunicação que se trava, neste momento, uma das mais renhidas batalhas pelo controle do imaginário social na região. De um lado, estão as elites políticas e econômicas associadas, por identidade de propósitos de dominação, à chamada grande mídia, formando um bloco privatista que tudo faz para manter a sua influência ideológica e suas ambições lucrativas.

De outro lado, estão as forças sociais e políticas que apóiam governos progressistas empenhados em superar os malefícios provocados por décadas de neoliberalismo, assumindo compromissos com a justiça social, com a inclusão das massas no processo de desenvolvimento e com a diversidade informativa e cultural. Há um cabo-de-guerra entre ações governamentais em favor da descentralização e da diversificação dos sistemas de comunicação e as violentas campanhas midiáticas em defesa de seus históricos privilégios e mandonismos. Sob alegação de que exerce uma hipotética função social específica (informar a coletividade), a mídia não quer submeter-se a freios de contenção e se põe fora do alcance das leis e da regulação estatal.

A opinião pública é induzida ao convencimento de que só tem relevância aquilo que os meios divulgam. Não somente é uma mistificação, como permite, perigosamente, a absorção de tarefas, funções e papéis tradicionalmente desempenhados por instâncias representativas da sociedade. Pela primeira vez na América Latina, essa posição hipertrofiada dos meios, coligada à absurda concentração dos setores de informação e entretenimento nas mãos de um reduzido número de corporações, está sendo contestada frontalmente, e em vários países podemos perceber providências concretas para se tentar reverter quadro tão adverso ao pluralismo.

Penso que a democratização dos sistemas de comunicação se insere numa moldura mais ampla, de revigoramento da esfera pública e do papel regulador e ativo do Estado na vida socioeconômica e cultural – o que depende, entre outros fatores, de políticas consistentes de promoção social e educação, formas de defesa e ampliação dos direitos de cidadania, gestão participativa na tomada de decisões, controle do capital especulativo, políticas externas independentes, redistribuição e elevação de renda e geração de empregos. Que não tenhamos ilusão: não cessarão as imprecações do conservadorismo, e os atritos com conglomerados de comunicação vão agudizar-se à medida que se acelere a velocidade das mudanças. Daí ser imperioso esclarecermos a opinião pública e desenvolvermos mobilizações e pressões para reclamar intervenções democratizadoras e afirmá-las frente às resistências das elites e da mídia.

Em que países você identificou políticas de comunicação orientadas para superação do atual quadro de hegemonia neoliberal no continente? Que experiências de contra-hegemonia você destacaria?

Os governos de Venezuela, Equador e Bolívia – que formam um bloco de poder nacionalista, antineoliberal, antiimperialista e de esquerda – têm sido os mais coerentes e ativos na rejeição à mercantilização da informação e ao monopólio privado da mídia e ao seu predomínio desmedido no mundo social. Naqueles três países, qualificados pelo sociólogo argentino Atílio Boron, como “o eixo da esperança” na América Latina, as intervenções governamentais visam enfrentar a concentração da mídia com legislações antimonopólicas e antioligopólicas, ao mesmo tempo em que põem em vigor um conjunto de medidas para diversificar as fontes de emissão, estimular meios alternativos e comunitários, apoiar a geração e a divulgação de conteúdos regionais e locais, revalorizar os meios públicos e redirecionar fomentos e patrocínios à produção audiovisual independente.

Tais medidas contam com o respaldo das maiorias parlamentares no legislativo e de movimentos sociais e entidades que lutam pela democratização da comunicação. O meu livro "A batalha da Mídia" apresenta um amplo e detalhado painel de tais providências, incluindo iniciativas análogas que estão em curso ou em vias de execução em outros países latino-americanos, com distintos graus de profundidade e eficácia. Sabemos que não é tarefa fácil, principalmente quando políticas públicas colocam em xeque conveniências de elites políticas, empresariais e midiáticas. Os governos de Hugo Chávez, Rafael Correa e Evo Moraes estão sendo obrigados a travar duras pelejas para que suas propostas renovadoras sobrevivam às campanhas orquestradas pela mídia e por grupos conservadores, cujo alvo é debilitá-los perante a opinião pública.

Que experiências de políticas públicas analisadas pela pesquisa podem ser tomadas como exemplos interessantes para o Brasil?

As novas Constituições do Equador e da Bolívia consagram e protegem o direito à informação veraz e plural, instituindo mecanismos de combate à concentração e às oligopolização e assegurando a setores sociais e comunitários uma participação real na área de comunicação, incluindo o acesso à radiodifusão sob concessão pública. Também devem ser destacadas: a nova legislação de radiodifusão comunitária do Uruguai, considerada pela Amarc uma das mais avançadas do mundo; a nova lei geral de comunicação da Argentina, de clara inspiração antimonopólica e antioligopólica, em tramitação no Congresso; e a nova Lei do Audiovisual da Venezuela, que coíbe o controle da distribuição e da exibição cinematográficas por cartéis norte-americanos, garantindo reserva de mercado para filmes nacionais e latino-americanos e instituindo taxação dos lucros dos cartéis.

Merecem ainda ser apreciadas outras experiências, como, por exemplo, a cadeia de rádios dos povos originários da Bolívia, concebida por Evo Morales; os fundos de financiamento à produção independente para televisão e à regionalização da mídia patrocinados pelo governo de Michelle Bachelet no Chile; os inovadores canais públicos de televisão educativa e cultural Encuentro, criado pelo presidente Néstor Kirchner na Argentina, e Vive TV, levado ao ar pelo presidente Chávez na Venezuela; o programa de apoio ao audiovisual independente no Brasil; as modalidades de integração e intercâmbios entre órgãos públicos latino-americanos, como que acontece no canal Telesur, entre agências de notícias e emissoras de televisão estatais e com os mecanismos de co-produção e co-distribuição cinematográficas.

Mas nada disso será levado adiante, no Brasil ou em qualquer país, se faltarem vontade política aos governantes e sustentação popular. A feição progressista de um mandato não se mede por intenções retóricas nem por aptidão para contemporizar; mede-se, isto sim, pela coragem para inverter a pirâmide e colocar no alto tudo aquilo que estava sufocado e travado. O que pressupõe fazer cumprir deliberações democratizadoras. Este me parece ser o norte do presidente do Equador, Rafael Correa, ao tomar, em novembro de 2008, uma decisão importante e inédita na América Latina: designou uma comissão formada por especialistas nacionais e internacionais para realizar auditoria das licenças de rádio e televisão, com base nas disposições antimonopólicas da nova Constituição daquele país.

Aí está um exemplo fabuloso a ser seguido, com o propósito de dar transparência, legitimidade e garantias a um regime justo de concessão de canais de rádio e televisão. Um regime que ponha termo ao que Venício Artur de Lima bem definiu como “coronelismo eletrônico” e assegure equidade entre os setores público, privado e comunitário na divisão das outorgas e variedade de programação dos canais.

Dentro desse panorama de transformações na América Latina como você analisa a importância da Conferência Nacional de Comunicação, convocada para o final de 2009 no Brasil?

A Conferência é uma oportunidade extraordinária para a discussão e o encaminhamento de proposições que contribuam para a estruturação de um sistema de comunicação mais justo e democrático no Brasil. Por isso, devemos nos esforçar para realçar junto à sociedade sua importância neste momento histórico, inclusive salientando o direito que o exercício da cidadania nos confere de interferir nos rumos da comunicação no país.  Contudo, não devemos cultivar ilusões, nem acreditar que males crônicos serão equacionados, por encanto, em função da repercussão dos trabalhos da Conferência. Não podemos esquecer que o mesmo governo Lula que convocou a Conferência praticamente nada fez em sete dos seus oito anos de mandato para modificar o quadro geral da comunicação no país.

Aí está a anacrônica legislação de radiodifusão que não me deixa mentir. Também não podemos desconhecer a força dos lobbies e interesses empresariais do setor. Penso que é essencial aumentar o grau de organização e de articulação de entidades e segmentos da sociedade civil que lutam pela democratização da comunicação, bem como buscar meios mais efetivos e conseqüentes de esclarecimento e convencimento da opinião pública sobre a relevância da comunicação para o desenvolvimento humano em bases igualitárias. Esses esforços me parecem decisivos, sobretudo para intensificar a pressão organizada de áreas reivindicantes da sociedade civil sobre os poderes públicos, e assim, no curso de persistentes campanhas e longas batalhas, construir, gradualmente, uma outra comunicação no país.

A Conferência, sem dúvida, poderá ter desdobramentos válidos e promissores. Mas não percamos de vista que enfrentamos e enfrentaremos inimigos poderosos, inclusive ramificados nas instituições hegemônicas. Daí a necessidade de avançarmos também no plano das mobilizações e campanhas permanentes, tanto para exigir e cobrar providências aos poderes públicos quanto para esclarecer a opinião pública sobre a necessidade urgente de políticas públicas que protejam e promovam o interesse coletivo contra ambições monopólicas privadas.

Gramsci é o autor mais presente nas suas análises, nos quatro ensaios de seu livro. Qual é a importância desse autor na compreensão das batalhas travadas na atualidade?  

O pensamento crítico de Antonio Gramsci, brilhante filósofo marxista italiano, é uma fértil fonte inspiradora na luta por efetivas transformações sociais e na compreensão das disputas políticas, ideológicas e culturais que se manifestam no contexto concreto da luta de classes. Considero extremamente atual a argumentação de Gramsci sobre as possibilidades humanizadoras para a existência. Segundo ele, perseguir o consenso em torno de concepções emancipadoras pressupõe recusar e combater proposições que tentam, intencionalmente, afastar os homens da consciência contra o conformismo, a apatia e a alienação.

Se observamos atentamente o que se passa à nossa volta, perceberemos o quanto de proposital e insidioso existe nos discursos  hegemônicos; quase sempre, eles atenuam os efeitos perversos do capitalismo, arrefecer o espírito crítico e neutralizar as vozes dissonantes e questionadoras. Também reputo como fundamental a contribuição de Gramsci a um entendimento ampliado do conceito de hegemonia, tão valioso para desvendarmos os jogos de consenso e dissenso que caracterizam a produção de sentido nos meios de comunicação. Gramsci nos faz ver que a hegemonia não se reduz à coerção militar e à superioridade econômica, pois decorre também de batalhas permanentes pela conquista da liderança cultural e político-ideológica de uma classe ou bloco de classes sobre as outras.

A hegemonia não é, por conseguinte, uma construção monolítica, e sim o resultado das medições de forças entre blocos e classes, traduzindo formas variáveis de conservação ou reversão do domínio material e imaterial que atravessam o campo midiático, sendo por ele influenciadas. Tem a ver, portanto, com entrechoques de valores e visões de mundo. A teoria da hegemonia de Gramsci permite-nos meditar sobre o lugar crucial dos meios de comunicação na contemporaneidade, a partir de sua condição privilegiada de produtores e distribuidores de conteúdos. Os veículos atuam na sociedade civil como aparelhos privados de hegemonia (organismos relativamente autônomos em face do Estado em sentido estrito).

São os agentes da hegemonia, os portadores materiais das ideologias que almejam sedimentar apoios na sociedade civil, seja para manter a dominação, seja para contraditar seus pressupostos. Assim sendo, situar a mídia como aparelho privado de hegemonia torna-se decisivo para avaliarmos, na exata medida, sua inserção no plano político-cultural, como caixas de ressonância de posições presentes nos embates sociais. Ao mesmo tempo, as teorias gramscianas ajudam-nos bastante a vislumbrar horizontes alternativos, mobilizar coligações de forças afins e construir ações contra-hegemônicas, com o propósito de intervirmos sistematicamente na difusão de informações e idéias que concorram para a formação progressiva de outros consensos em torno de concepções democratizadoras da vida social e da própria comunicação.

TV pública: contraponto à TV comercial

Os Estados Unidos têm 356 estações de TV pública. Em relação ao Brasil, que conta com 199 emissoras educativas com concessão outorgada pelo governo, o número não chega a ser surpreendente. Mas a distância não está na quantidade de emissoras. As TVs brasileiras que se autodenominam públicas tiveram orçamento de cerca de R$ 500 milhões em 2008. As dos EUA receberam US$ 2 bilhões (R$ 4 bilhões). Aqui, elas dependem basicamente de recursos do governo. Lá, mais da metade da verba vem de doações.

A presidente da American Public TV, Cynthia Fenneman, esteve no Brasil, na semana passada, para participar do 2º Fórum Nacional de TVs Públicas. A APT é a segunda maior distribuidora de conteúdo para as TVs públicas -a primeira é a Public Broadcasting Service. Executiva com 33 anos de experiência em TV e com 12 prêmios Emmy (o Oscar da televisão americana) no currículo, ela julga a TV pública uma contraposição necessária às "calorias vazias" das TVs comerciais.

O que justifica um país pobre gastar dinheiro com TV pública?

Com o crescimento da programação extremamente comercial, que eu chamo de calorias vazias, nas emissoras privadas, a televisão pública torna-se imperativa, para expor pontos de vista diferentes, com viés educativo, para formar cidadãos. Para isso, é importante que ela tenha autonomia em relação ao governo e à propaganda comercial.

É possível ter autonomia e depender de recursos do Estado? Como é o modelo nos EUA?

Se somarmos todas as verbas destinadas ao sistema público nos EUA, o orçamento ultrapassa US$ 2 bilhões por ano. As fontes são as doações dos cidadãos e de fundações – responsáveis por mais de 50% do orçamento –, recursos do governo, patrocínios de programas, publicidade corporativa e venda de produtos culturais. A doação individual é de US$ 100 em média, mas há pessoas ricas que contribuem com até US$ 1 milhão. O governo não dá dinheiro diretamente a TVs públicas. Isso é muito importante. Os recursos são entregues à entidade que os representa, a Corporação para a Televisão Pública.

Há uma discussão no Brasil sobre a necessidade de eliminar a propaganda comercial nas TVs educativas. A publicidade é admitida na TV pública norte-americana?

Temos o patrocínio corporativo, mas a propaganda comercial não é admitida. No intervalo dos programas podem ser exibidos anúncios de 10, 15 ou 30 segundos. Um fabricante de carros que esteja patrocinando o programa pode mostrar o carro, de modo sutil, sem estimular a compra.

Por que a propaganda comercial é incompatível com a TV pública?

Para que as empresas não influenciem no conteúdo. Seria impróprio um anúncio exaltando um produto farmacêutico na TV pública, ou merchandising de produtos de consumo.

As emissoras comerciais contribuem financeiramente para os canais públicos?

Os EUA não seguem esse modelo inglês. Eu bem que gostaria. Fazemos algumas coproduções com emissoras comerciais, mas não são frequentes. O mais comum é a cooperação entre TVs públicas.

Nas TVs públicas dos EUA há programas recorrentes também na TV comercial. O que diferencia o conteúdo de uma e outra?

Nos propomos a oferecer entretenimento com consciência. Programas de gastronomia são apresentados por profissionais com longo background de especialização, que efetivamente ensinam a preparar o prato. Nas TVs comerciais há preferência por rostos bonitos. O interesse principal não é ensinar a cozinhar.

Seria uma TV menos glamorosa?

O glamour não é o foco central, o que não impede que se busque pessoas com apelo visual e estética.

A audiência é um assunto tabu para grande parte das TVs públicas brasileiras. Qual é a audiência das TVs públicas nos EUA?

A audiência média no horário nobre é 1,2%, mas chega a 5% em alguns programas nos fins de semana. É um bom desempenho. A audiência média dos canais HBO e History Channel é de 0,8%, e a do Discovery, 0,7%. Há 190 canais de TV nos EUA. A TV pública está em 15º lugar em audiência.

Como os canais públicos se comportaram na cobertura da gestão Bush? Há autonomia editorial?

No governo Bush, parte dos telespectadores reclamava que a cobertura era muito liberal, mas outra parcela reclamava do oposto. As emissoras buscam uma linha neutra. A pressão vem de congressistas que querem reduzir o repasse do governo para a TV pública com o argumento de que há áreas mais prioritárias. Contrapomos essa pressão apresentando ao Congresso aspectos positivos da TV pública.

Vocês já têm clareza sobre o modelo de negócios viável para as novas mídias, como a internet?

É um grande desafio. O que fazer quando os conteúdos passam a ser oferecidos gratuitamente na internet? O financiamento das TVs públicas foi pensado para os custos da TV tradicional.