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Por uma regulamentação da internet democrática

Iniciado em outubro de 2009, o governo brasileiro através do Ministério da Justiça, lançou uma consulta pública para discutir a regulamentação da internet no país. Segundo a assessoria da Secretaria de Assuntos Legislativos, setor responsável por coordenar a consulta, o objetivo era  regulamentar os direitos dos que usam a internet.

Ao término das suas primeira e segunda fase, foram cerca de 2000 contribuições, entre comentários, e-mails e referências propositivas em sites. Isto criou um ante-projeto de Lei, que aguarda na Casa Civil para ser enviado ao Congresso para aprovação.

Desde o início sabia-se dos gargalos que o debate iria enfrentar: guarda de logs,  responsabilização de provedores e, talvez o mais polêmico de todos, a retirada e monitoramento de conteúdos de sites, blogs, etc.

É preciso ter clareza de que este último ponto versa sobre o que as democracias modernas sempre defenderam: a liberdade de expressão e a livre circulação de conteúdos. Qualquer legislação que de alguma forma venha restringir estes direitos, que são pilares centrais de um Estado que se diz democrático, deve ser veementemente repelida e combatida de forma sistemática, com ampla mobilização da sociedade civil.

Posturas como a do site Amazon.com que em 2009 deletou de forma remota algumas das edições digitais de livros – e-books –  dos aparelhos Kindle de leitores que haviam comprado os título, não condiz com a atual estrutura em que se encontra a sociedade mundial.

Ora, o problema todo, é que  as edições eletrônicas dos livros já tinham sido adquiridas pelos consumidores. Isso já eliminaria qualquer incidência da empresa sobre os produtos. A empresa utilizou um acesso remoto, através de rede sem fio.

A postura do site, que é uma das maiores lojas de vendas on line do mundo, deixou os consumidores furiosos e gerou ondas de irritação online. Em sua defesa, a empresa alegou que os livros foram adicionados à loja Kindle por uma empresa que não detinha os direitos autorais.

No final do ano de 2010, tivemos o emblemático caso do site Wikileaks, que sofreu dura repressão do governo americano por ter divulgado documentos que embaixadas americanas espalhadas no mundo enviaram para a Casa Branca. Os documentos datam do período de 1966 a fevereiro de 2010. Em seu bojo, poucas informações relevantes.

O site foi imediatamente tirado do ar e seu fundador, Julian Assange, vítima de uma armação que o incriminava por crimes de abusos sexuais. No fundo, a acusação era pretexto do governo americano para prender o jornalista australiano.

Este ato demonstrou que o Estado que se auto declara como modelo de democracia mundial não tem habilidade para lidar com a liberdade de expressão e com a livre circulação de conteúdos na internet.

Mas os Estados Unidos não é o único país que de forma intransigente e autoritária proíbe a livre circulação da  informação na rede mundial de computadores e apela para a censura quando se sente ameaçado pela internet.

Vimos o mesmo acontecer recentemente no Egito, durante as manifestações da população que pedia a saída do presidente Hosni Mubarak, que há 30 anos dirige o país.

Os protestos, raros no país, tiveram suas origens de mobilização pela internet, por meio de uma página no Facebook. Os organizadores, que prometiam manter a mobilização até a queda do governo, diziam protestar contra a tortura, a pobreza, a corrupção e o desemprego. Os organizadores vinham usando também o Twitter para mobilizar as manifestações, mas o serviço de acessoa à rede foi bloqueado pelas autoridades. Mesmo assim, o primeiro-ministro, Ahmed Nazif, afirmou que o governo está comprometido com a liberdade de expressão.

Exemplos de posturas como as descritas acima devem sim servir para um propósito: o de que a regulamentação da internet no Brasil deve respeitar acima de tudo o princípio da liberdade de expressão e a livre circulação de conteúdos, possibilidade peculiar da rede mundial de computadores. O contrário disso, representa seguir o rumo da contramão da história.

Na primeira Conferência de Comunicação, realizada em dezembro de 2009, que contou com delegados da sociedade civil, do poder público e do setor empresarial, ficou clara a posição destes setores em relação ao tema. A resolução, aprovada de forma consensual, foi o posicionamento oficial da 1ª. Conferência Nacional de Comunicação em relação ao Marco Civil da Internet:

“Aprovação de lei que defina os direitos civis nas redes digitais que inclua, mas não se limite, a garantir a todos os cidadãos:

1 – O direito ao acesso à Internet sem distinção de renda, classe, credo, raça, cor, orientação sexual, sem discriminação física ou cultural;

2 – O direito à acessibilidade plena, independente das dificuldades físicas ou cognitivas que possam ter;

3 – O direito de abrir suas redes e compartilhar o sinal de internet, com ou sem fio;

4- O direito à comunicação não-vigiada.

Qualquer marco regulatório que venha de encontro ao que foi aprovado na 1ª Conferência Nacional de Comunicação, deve ser encarado como uma afronta a liberdade de expressão e a livre circulação de conteúdos.

Reforçar este ponto chave no debate da regulação da internet do Brasil deve ser uma tarefa de todas e todos os brasileiros.

Não queremos empresas entrando em nossos sistemas e apagando arquivos, e muito menos ser preso por fazer divulgação de informação. Afinal, a sociedade merecer e deve ser informada.

Marcos Urupá é jornalista, advogado e associado ao Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

 

 

Critérios técnicos para outorgas de rádio e TV não servem para nada

[Título original: Critérios técnicos não servem para nada]

 

Em 7 de fevereiro de 1997, acontecia a primeira licitação para concessão de rádios FM e AM e para geradoras de televisão. Acabava assim a discricionariedade na outorga de emissoras de rádio e TV para dar lugar a critérios objetivos na classificação das propostas dos interessados em prestar os serviços de radiodifusão. Ainda que existissem brechas, mantendo vivo o clientelismo nas outorgas – mais especificamente nas concessões de rádios e TVs educativas e de retransmissoras de TV, que até hoje não necessitam de procedimento licitatório – tratava-se de uma conquista histórica. Não seriam mais o compadrio e o prestígio político que definiriam para quem outorgaríamos rádios e TVs comerciais, e sim a força das propostas técnicas e de preço apresentadas pelos concorrentes.

Mas hoje, passados exatos 14 anos, mais uma vez podemos constatar que o Estado vem sendo sistematicamente ludibriado. O que deveria ser uma concorrência de técnica e preço tornou-se, simplesmente, um leilão no qual leva a outorga quem pode pagar mais.

Das 905 licitações concluídas desde 1997 em que houve ao menos dois concorrentes, 846 foram vencidas pela empresa que apresentou a melhor oferta de preço. Em 16 casos o vencedor foi o concorrente que apresentou a melhor oferta técnica e a melhor oferta de preço. E em apenas 43 licitações a proposta técnica foi preponderante sobre a oferta de preço.

Os mecanismos

De acordo com os Decretos nº 1.720, de 1995, e nº 2.108, de 1996, que estabelecem as regras para as licitações nas outorgas de radiodifusão, critérios técnicos como o tempo destinado na programação a conteúdos jornalísticos, educativos e culturais e o número de programas produzidos na própria área de prestação do serviço deveriam contar pontos na escolha de quais seriam os vencedores dos processos licitatórios.

Essa pontuação ponderada entre técnica e preço tinha, como objetivo primordial, impedir que o poderio econômico passasse a ser o critério exclusivo para a definição dos que seriam agraciados com uma outorga de radiodifusão. A proteção foi estabelecida de maneira proporcional, de modo que as propostas de preço tivessem um peso maior para rádios e TVs com grande alcance, e uma importância menor para pequenas emissoras de radiodifusão de abrangência local. No caso de rádios em frequência modulada e de televisões de baixa potência e cobertura restrita, por exemplo, o peso da proposta técnica seria responsável por no mínimo 70% da pontuação atribuída aos concorrentes.

Como os mecanismos são burlados

O desequilíbrio que faz com que as propostas técnicas tenham, na maior parte das vezes, nenhuma influência na definição dos vencedores das licitações de radiodifusão ocorre porque o Ministério das Comunicações se deixa enganar.

Segundo dados do próprio ministério, das 9.719 propostas técnicas apresentadas em procedimentos licitatórios desde 1997, 8.812 (90,67%) alcançaram nota máxima em todos os quesitos de avaliação e 310 (3,19%) receberam nota entre 99 e 99,999. Na maior parte dos procedimentos licitatórios, todos os concorrentes empataram na avaliação técnica, e foi a proposta de preço que definiu o vencedor. 

Ou seja, as regras que pretendiam privilegiar critérios de qualidade da programação e impedir que o poder econômico fosse preponderante na definição dos vencedores dos procedimentos licitatórios são de um fracasso desconcertante. A proposta técnica virou uma simples formalidade, pela qual quase todos os concorrentes passam com nota máxima.

Confiantes na falta de fiscalização do poder público, cuja capacidade de acompanhamento e avaliação da programação das emissoras de rádio e TV é notoriamente deficitária, as empresas que concorreram em procedimentos licitatórios prometem entregar o melhor conteúdo do mundo à população. Depois de vencida a licitação, oferecem o que bem entendem, com uma certeza quase plena de que aquilo que pactuaram no procedimento licitatório não precisará ser cumprido.

Liberdade de expressão de quem?

Ano novo; fôlego novo! Novas esperanças de que a discussão em torno da abusividade do direcionamento de publicidade às crianças fique ainda mais intensa e resulte em mudanças efetivas.

É com essa expectativa que o Projeto Criança e Consumo lança esse blog. Para ter mais espaço para se comunicar com a sociedade sobre assuntos diários e principalmente para ouvir o que a sociedade quer falar sobre temas relacionados ao consumo infantil.

E já começando o mês de janeiro agitado, não poderia deixar de comentar o artigo publicado no dia 5, na Folha de S. Paulo, intitulado ‘Propaganda, liberdade e desenvolvimento’ (para assinantes), escrito por Luiz Lara, presidente da ABAP – Associação Brasileira de Agências de Publicidade.

Mais uma vez conceitos distintos foram misturados e conclusões, a meu ver, equivocadas apresentadas pelo mercado publicitário. O texto começa dizendo o quanto o brasileiro gosta de publicidade e de como a aprovação de uma lei que regula os parâmetros de contratação das agências publicitárias pelo Poder Público foi uma conquista para o mercado. Passa, em seguida, a dizer que o Brasil conseguiu passar ao largo da crise econômica mundial também porque a publicidade no país não parou. Depois começa uma confusão de conceitos. A primeira aparece quando diz que a publicidade estimula a defesa da democracia porque financia os veículos de comunicação.

E eu que pensei que a democracia fosse uma conquista da sociedade garantida, inclusive, constitucionalmente…

Aliás, sobre esse argumento que tem sido repetido pelo mercado, no sentido de que a liberdade de expressão dos veículos de comunicação, pilar da democracia, seria dependente da publicidade para existir, gostaria de fazer uma breve reflexão. Se a liberdade de expressão depende de verbas publicitárias e não de uma garantia social e constitucional – como, insisto, eu acreditava! – então na verdade essa liberdade não existe, pois estaria, de alguma forma, submetida aos desejos e vontades dos anunciantes. Explico: uma revista que depende da verba publicitária para se expressar livremente nunca poderá criticar negativamente o anunciante que contribui com verbas polpudas. É isso, não?

Hum. Liberdade de expressão de quem, então?

Bom, mas voltando ao artigo. Em seguida é dito que a Abap confia no Conar como suficiente para dirimir questões atinentes à publicidade no país. E logo depois fala das expectativas de desenvolvimento do setor por conta da Copa do Mundo e da Olimpíada que se aproximam, para, então, dizer que ameaças pairam sobre a publicidade brasileira.

E a esse respeito cita projetos de lei, agências reguladoras e setores minoritários “que tentam impor seus pontos de vista de forma quase messiânica”. Pois então, mais uma vez um representante do mercado vem a público dizer que não confia no Poder Legislativo (porque seus Projetos de Lei não são bons), não confia no Executivo (porque suas agências extrapolam seus poderes legais), não confia no Judiciário (porque o Conar é suficiente para julgar as demandas do mercado) e não acredita na voz que vem da sociedade organizada (porque é minoritária).

Poxa, e eu que pensei que o Estado de Direito Democrático estava sustentado justamente nos três poderes da República, livres e independentes. Mas, para alguns do mercado publicitário, parece que é mesmo só a publicidade que o garantiria e, pior, sem qualquer interferência ou mesmo sujeição a esses poderes ou à vontade social, inclusive das minorias…

O artigo termina falando que a Abap permanecerá aberta ao diálogo com a sociedade. E eu termino por aqui dizendo que o Projeto Criança e Consumo, por ocasião do Levantamento do Dia das Crianças realizado no ano passado, enviou carta à Abap. Mas não recebeu resposta. Também tentamos nos reunir com a Associação, e não conseguimos. Então, acreditando que parte do que foi dito no aludido artigo diz respeito também ao nosso trabalho, manifesto aqui, publicamente, meu convite para conversarmos e termos esse diálogo.

Temos muito interesse em apresentar à Abap as razões do nosso trabalho e explicar que, absolutamente, não somos contrários à atividade publicitária. Trabalhamos para que as mensagens publicitárias e mercadológicas não sejam dirigidas diretamente aos menores de 12 anos, por conta da fase de desenvolvimento em que estão. E acreditamos sim na democracia, na liberdade de expressão e nas garantias da ordem econômica que estão previstas na nossa Constituição Federal.

Nossa busca é singela. Por uma infância livre de apelos comerciais.

Isabella Henriques é coordenadora geral do projeto Criança e Consumo do Instituto Alana

Por que e como se limita a propriedade cruzada

Na última semana, o jornal O Estado de S.Paulo publicou uma matéria na qual dizia que o governo havia desistido de estabelecer limites à propriedade cruzada. Para quem não sabe, propriedade cruzada é quando o mesmo grupo controla diferentes mídias, como TV, rádios e jornais. Na maior parte das democracias consolidadas, há limites a essa prática por se considerar que ela afeta a diversidade informativa. No Brasil, não existem limites, e justamente por isso esse é um dos temas em pauta no debate sobre uma nova lei para os serviços de comunicação audiovisual.

Aparentemente não foi bem isso que o ministro Paulo Bernardo afirmou, o que significa que o jornal resolveu dizer o não dito por conta própria. Curioso é que o mesmo jornal afirma regularmente ser a favor de medidas anticoncentração da mídia. Seria então um alerta às forças democráticas? Durante o último processo eleitoral, o Estadão declarou em editorial estar “de pleno acordo” com a necessidade de se discutir os limites à propriedade cruzada. E ainda: “não é de hoje que o Estado critica a concentração da propriedade na mídia e as facilidades para que um punhado de grupos econômicos controle, numa mesma praça, emissoras e publicações”.

Em 2003, o jornal fez mais de um editorial criticando a “cartelização da mídia” nos EUA, que iria surgir como resultado de medidas propostas pela FCC (Federal Communications Commission), órgão regulador das comunicações por lá. Aquele processo (e a revisão seguinte, de 2007) resultou num certo afrouxamento das regras norte-americanas, embora as mudanças mais liberalizantes propostas pela FCC tenham sido barradas pelo Poder Judiciário e pelo Congresso – com votos contrários inclusive dos republicanos –, após uma grande mobilização popular. Mas, afinal, por que esses limites são tão importantes a ponto de milhões de pessoas, em um país então governado por George W. Bush, terem se mobilizado para defendê-los?

Por quê

Historicamente, são duas as razões para se limitar a concentração de propriedade nas comunicações. A primeira é econômica, e pode ser entendida como tendo a mesma base das leis antitruste. A concentração em qualquer setor é considerada prejudicial ao consumidor porque gera um controle dos preços e da qualidade da oferta por poucos agentes econômicos, além de desestimular a inovação. Em alguns mercados entendidos como monopólios naturais (como a de transmissão de energia, de água ou telecomunicações), a concentração é tolerada, mas para combater seus efeitos são adotadas diversas medidas que evitam o exercício do 'poder de mercado significativo' que tem aquela empresa.

O segundo motivo tem mais a ver com questões sociais, políticas e culturais. Os meios de comunicação são os principais espaços de circulação de ideias, valores e pontos de vista, e portanto são as principais fontes dos cidadãos no processo diário de troca de informação e cultura. Se este espaço não reflete a diversidade e a pluralidade de determinada sociedade, uma parte das visões ou valores não circula, o que é uma ameaça à democracia. Assim, é preciso garantir pluralidade e diversidade nas comunicações para garantir a efetividade da democracia.

Uma das maneiras mais efetivas de se conseguir pluralidade e diversidade de conteúdos é garantindo que os meios de comunicação estejam em mãos de diferentes grupos, com diferentes interesses, que representem as visões de diferentes segmentos da sociedade. Ainda que a pluralidade na posse dos meios de comunicação não reflita necessariamente a pluralidade do conteúdo veiculado, na maior parte dos exemplos estudados essa correlação é positiva, especialmente no tocante à diversidade de ideias e pontos de vista (no caso da diversidade de tipos de programa, não necessariamente).

Como

Limites à propriedade cruzada tem a ver fundamentalmente com essa segunda justificativa. Países como Estados Unidos, França e Reino Unido adotam esses limites por entenderem que a concentração de vozes afeta suas democracias. É importante notar que nesses países esses limites são antigos, mas têm sido revistos e, via de regra, mantidos – ainda que relaxados, em alguns casos. Mesmo com todos os processos liberalizantes, revisões regulares de seus marcos regulatórios e convergência tecnológica, esses países seguem mantendo enxergando a propriedade cruzada como um problema.

O que aconteceu nas últimas décadas foi uma complexificação dos critérios de análise adotados, incluindo alcance e audiência como critérios definidores. Os Estados Unidos, por exemplo, tinham uma regra clássica de limite à concentração cruzada em âmbito local: nenhuma emissora poderia ser dona de um jornal que circulasse na cidade em que ela atua.

Essa regra foi levemente flexibilizada em 2007, quando se passou a levar em conta o índice de audiência das emissoras e o número de meios de comunicação independentes presentes naquela localidade. Mas essa flexibilização só vale para as vinte maiores áreas de mercado dos EUA (são 210 no total) e só acontece se o canal de TV não está entre os quatro mais vistos e se restam pelo menos oito meios independentes. Dá para ver, portanto, que a flexibilização é a exceção, não a regra.

Na França, há regras para propriedade cruzada em âmbito nacional e em âmbito local. Em cada localidade, nenhuma pessoa pode deter ao mesmo tempo licenças para TV, rádio e jornal de circulação geral distribuídos na área de alcance da TV ou da rádio. No Reino Unido, nenhuma pessoa pode adquirir uma licença do Canal 3 (segundo maior canal de TV, primeiro entre os canais privados) se ela detém um ou mais jornais de circulação nacional que tenham juntos mais que 20% do mercado. Essa regra vale também para o âmbito local. No caso britânico, há outras regras que utilizam um complexo sistema de pontuação para sopesar o impacto de licenças nacionais e locais de TV e rádio e jornais de circulação local e nacional.

Como se vê, nem com as mais agressivas tentativas de liberalização conseguiu-se chegar perto da situação brasileira, que simplesmente não prevê limites à propriedade cruzada. Exemplos como o da Globo no Rio de Janeiro, que controla a principal TV, as principais rádios e o único jornal da cidade voltado ao público formador de opinião (sem contar TV a cabo, distribuidora de filmes etc.) são completamente impensáveis em democracias avançadas. Assim, independentemente da fórmula que irá adotar, se o Brasil quiser aprovar um novo marco regulatório para o setor que seja de fato fortalecedor da diversidade informativa, e portanto de nossa democracia, essa questão não pode estar ausente. A despeito do que digam Estados e Globos.

 

João Brant, é coordenador do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Por um Irdeb efetivamente público

No atual renascimento do Sistema Público de Comunicação do país as TV's e rádios estaduais cumprem um papel estratégico que pode e deve ser melhor aproveitado pela sociedade civil e agentes estatais. Historicamente essas emissoras têm alto nível de fragilidade e dependência frente ao Executivo, somado por baixo investimento, o que torna a valorização da diversidade cultural o único trunfo, porém de traço elitista. Tal quadro favoreceu que as emissoras comerciais nos estados se tornassem as referências no acompanhamento da vida regional, fincadas sob o "coronelismo midiático" e baixo índice de conteúdo local.

Na Bahia o ex-senador Antônio Carlos Magalhães (ACM), Ministro das Comunicações do Governo Sarney, era a principal liderança na redemocratização e estimulou o desenvolvimento da filiada da Rede Globo, a Rede Bahia, pertencente a sua família. Os parceiros de ACM também se beneficiaram, políticos do DEM-BA representam hoje 58% das concessões de radiodifusão entregues as políticos no estado segundo o projeto Donos da Mídia. Nos últimos dez anos outra força se consolidou localmente, a TV Itapoan, afiliada da Record e vinculada a Igreja Universal do Reino de Deus.

O Instituto de Radiodifusão Pública da Bahia (Irdeb) é a maior alternativa ao poderio político e religioso das emissoras comerciais no estado, mas ficou de molho por muito tempo, em consonância ao panorama nacional. Nos passos para montagem do segundo governo Jaques Wagner o Irdeb se tornou alvo de divergências sobre seu futuro. Com a criação da Secretaria de Comunicação (Secom) se especula que a Rádio Educadora e TVE Bahia, os dois troncos do Irdeb, sejam incorporados a Secom e deixem a Secretaria de Cultura (Secult).

É salutar que tal infra-estrutura seja mais valorizada pelos atores políticos estatais, mas é preciso que sociedade civil também participe desta discussão a fim de fortalecer e consolidar a natureza pública do Irdeb. É o momento do Governo do Estado convocar Seminários, Consultas e principalmente um Conselho Curador com a presença de organizações sociais, artistas, produtores independentes e intelectuais no intuito de fortalecer o Irdeb ao torná-lo efetivamente público e não estatal, como ainda é.

 

EBC e diversidade

Tal medida converge a tendência nacional puxada pelo surgimento da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) em 2007 e a formação da Rede Pública Nacional de Televisão em 2010. No caso da EBC já existe um Conselho Curador em funcionamento com membros da sociedade civil e seus últimos três integrantes foram indicados por uma ampla Consulta Pública antes de serem efetivados pelo presidente da república. Enquanto isso o Conselho Curador do Irdeb é composto por membros do Executivo e um da associação dos funcionários. Já a Rede Nacional se referencia como alternativa para o poderio das redes comerciais e tem como um dos pontos acordado pelos parceiros a formação de Conselhos sob referência da EBC, afim de ampliar os fluxos de financiamento da União para os estados.

Todos esses passos foram e são acompanhados de forma intensa pela atual gestão do Irdeb, capitaneada pelo cineasta Póla Ribeiro. A Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), hoje presidida por Póla, é uma entidade responsável diretamente pela integração e fortalecimento do Sistema Público.

Nos últimos quatro anos, Póla teve ao seu lado o contexto nacional e posição do Governador de que a rádio e a TV pública da Bahia devem ser geridos com independência. Dessa forma a gestão atual teve a guarita da Secult para dar maior credibilidade as informações veiculadas na grade de programação. Além disso, intensificou o papel de valorização da diversidade e pluralidade, em especial pela adoção da faixa Negra na rádio, a transmissão do carnaval Ouro Negro na TV e recentemente o programa Liberdade Religiosa, referência nacional para substituir o tom proselitista pelo ecumênico nas emissoras públicas.

Já a produção audiovisual se protagonizou pelo fomento e difusão a produção independente e local, cumprindo um papel pouco comum das emissoras comerciais. Atuando em parceria com a Diretoria de Audiovisual (Dimas), o investimento no audiovisual saiu de R$ 256 mil em 2006 para quase R$ 7 milhões em 2009. Porém apenas R$ 250 mil foram destinados para pilotos de programa de TV. Pouco, levando em consideração que a TVE é a emissora que mais valoriza a produção local na Bahia, reservando 14,78% da programação, segundo levantamento do Observatório do Direito à Comunicação.

 

Financiamento

 

A contribuição do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social para o Fórum de TV's Públicas em 2009 cita que: "A política de financiamento deve permitir que as emissoras mantenham uma programação de qualidade e façam frente às emissoras comerciais, a partir da adoção de novos modelos de negócio baseados em redes solidárias de produção e distribuição de conteúdo, com forte participação da produção independente". Ou seja, está em jogo um potencial inestimável da TV pública em dinamizar a economia local, tendo o DOC-TV a grande referência na concatenação da cadeia produtiva do audiovisual, dando a televisão o protagonismo na difusão.

Pois bem, falta muito para o Irdeb se firmar como referência às emissoras comerciais na Bahia. A gestão efetivamente pública também deve ser acompanhada de modelo de financiamento que inclua um fundo com orçamento perene, protegido das mudanças quadrienais do executivo e abastecido por um percentual superior a 15% das receitas publicitárias do governo, ainda balizadas pela audiência. Situação que faz o maior anunciante do mercado publicitário local, o governo do estado, beneficiar as emissoras comerciais tradicionalmente constituídas pelas práticas do "coronelismo midiático", adicionadas pelo poder emergente dos evangélicos e neopentencostais. Diga-se de passagem, muitas dessas emissoras comerciais são viciadas em violar os direitos humanos, em especial nos programas policialescos transmitidos a luz do dia.

O processo de valorização da TV pública também passa pela valorização humana. Por isso, a abertura de concursos e plano de cargos e salários se faz necessária pois os trabalhadores lotados no Irdeb foram historicamente entregues a própria sorte, sem cursos devidos de especialização, tratados como velharias técnicas, como as deixadas pelas gestões anteriores. No levantamento do Sindicado dos Trabalhadores em Rádio, TV e Publicidade (Sinterp) para campanha salarial de 2011, os ordenados dos concursados do Irde chegam a margear a metade do piso das emissoras comerciais.

Comunitária

 

Enxergar a comunicação e cultura como setores desvencilhados do desenvolvimento socioeconômicos de um estado tradicionalmente paupérrimo como a Bahia é outro estigma que tem sido desconstruído pela emissora pública-estatal. É da atual Secom e da Rádio Educadora a responsabilidade de tocar o programa Ondas Livres voltado para o comunicador comunitário atendendo as resoluções das Conferências de Cultura e Comunicação. O Ondas Livres, se for realizado na sua inteireza, envolve formação e criação de um portal para os comunicadores comunitários do estado realizarem intercâmbios de conteúdos e experiências de sustentabilidade.

A comunicação comunitária ainda é o regime de concessão mais criminalizado no país. O problema ainda é de maior responsabilidade federal, porém nada impede que os governos estaduais assumam políticas que beneficiem esse setor. A Bahia ainda detém a maior população rural nacional, com 4,5 milhões de habitantes conforme aponta o IBGE de 2003. Fora a parabólica e seus conteúdos do eixo Rio-São Paulo, a rádio comunitária (Radcom) é muitas vezes o único meio de comunicação para realizar campanhas educativas e dar informes essenciais para o dia a dia dessas comunidades. Cabe então ao Irdeb ser o gérmen no desenvolvimento de políticas para Radcom, por ser a maior infra-estrutura pública de comunicação da Bahia, também dotada de maiores hábitos que evitam atrelamento político da informação comunitária ao poder estatal.

Digitalização

Ao ser dotado de efetiva participação social e maiores recursos físicos e humanos, o Irdeb tende a se preparar para intensas transformações da TV Digital que podem o credenciar a outro patamar no cenário local e nacional. O decreto do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) de 2006, reservou as emissoras públicas quatro canais: I) Cultura; II) Cidadania; III) Educação; IV) Executivo.

Caso o governo do estado não opte por um Operador de Rede próprio, existe a possibilidade real de ficar subordinado ao Operador nacional e praticamente perder a faixa o espectro que lhe pertence. Caso contrário pode transformar o sinal da TVE em mais três canais locais e desafogar os interesses do Executivo das finalidades educativas e culturais. Sem contar que em muitos países o espectro é utilizado no provimento de internet em alta velocidade, enfim, um bem que não pode ser desperdiçado aleatoriamente, como a faixa de espectro de Ondas Curtas (OC) que pertencia ao Irdeb e foi perdida por desuso dos governos anteriores – as OC têm utilização militares, comerciais e civis, com alcance internacional, são as faixas que permitiam os rádios mais antigos captarem programas em espanhol, inglês e francês.

Assim, antes de se preparar para o futuro tecnológico, o Irdeb continua com problemas sérios do "passado". Correm nos discursos dos atuais gestores que as torres de transmissão do Irdeb eram utilizadas pela Rede Bahia em diversas cidades, quando Jaques Wagner venceu o pleito de 2006. Pra completar, o sinal do Irdeb costumeiramente estava fora do ar, enquanto a filiada da Globo em pleno funcionamento. Além de resolver esse embrulho, Wagner assumiu o compromisso de revitalizar e criar novas torres para o sinal chegar em todas as regiões do estado. O problema é que cabe a Secretaria de Infra-Estrutura (Seinfra) cuidar destas torres e até o fim de 2009 isso era papel de um gestor do PMDB, que pouco mobilizou a empreitada.

Independente pra qual Secretaria o Irdeb fique vinculado é necessário que os gestores assumam o compromisso de potencializar essa estrutura. Torná-lo efetivamente público com a convocação de um novo Conselho Curador é o primeiro passo para dar maior legitimidade ao Irdeb, fazendo com que a sociedade sinta-se integrante dele e não como mais uma ferramenta a  serviço daqueles que estão no poder, seja qual for a origem ou prática política.

Pedro Caribé é jornalista, repórter do Observatório do Direito à Comunicação, associado do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e integrante do Centro de Comunicação, Democracia e Cidadania da Facom/UFBA