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O Duplo Perfil do Facebook

A internet mudou o mundo. Segue transformando-o. E a mais recente transformação é consequência da invenção do Facebook por Mark Zuckerberg. Seis anos atrás, aos 19 anos, ele lançou o mais bem sucedido e abrangente site de rede social. Porque, como a grande maioria dos garotos de sua geração, acreditou que uma idéia na cabeça e alguns códigos à mão o fariam bilionário. Acertou. Isso o torna a expressão perfeita do fluido capitalismo contemporâneo, que vive de nos vender – o que somos e fazemos – produzindo uma inestimável sensação de liberdade.

No ano que se encerrou, conforme registra o livro The Connector, lançado recentemente nos Estados Unidos, a invenção de Zuckerberg atingiu a marca de 550 milhões de usuários. “Uma em cada dúzia de seres humanos existentes no planeta usa a ferramenta. Elas falam 75 línguas e coletivamente gastam mais de 700 bilhões de minutos no Facebook todos os meses. No último mês de 2010 o site angariou uma de cada quatro páginas de internet visitadas nos Estados Unidos. Essa comunidade tem crescido ao ritmo de cerca de 700 mil pessoas por dia”.

Por essa e outras razões – algumas delas vamos tentar descrever neste texto –, o Facebook passou a concentrar a atenção dos homens e mulheres que dedicam suas vidas a pesquisar e avaliar os fenômenos políticos, econômicos, sociais e culturais que são reflexo da emergência da rede mundial de computadores.

É bom alertar, estamos diante de um paradoxo que não compreenderemos por meio de leituras dicotômicas. Para aquilo que é líquido, busque-se o recipiente correto, senão a análise escorre pelas frestas. Esse paradoxo consiste em: por um lado, a rede social de Zuckerberg é, sem sombra de dúvida, um elemento fundamental para a explosão do uso da web – inclusive proporcionando impactos políticos inestimáveis, como na Tunísia e no Egito; por outro, integra e aprofunda o movimento de cercamento às reais liberdades que marcaram a internet desde a sua criação.

Esse cerco à internet livre é produzido por uma aliança entre governos conservadores, indústria da propriedade cultural, empresas de telefonia e algumas das emergentes corporações do mundo das redes, com diferentes níveis de envolvimento de cada um desses atores.

O papel do Facebook nessa epopéia é o do monopólio, que busca transformar uma parte (um site) em todo (a rede). A ambição de Zuckerberg é que todo cidadão conectado à internet – atualmente cerca de 2 bilhões de seres humanos -, tenha um perfil no Facebook e possa se relacionar lateralmente por meio da ferramenta. Diz fazer isso porque quer ver o mundo mais “aberto e conectado”. Não é verdade.

Para entendermos porque essa declaração é falsa, primeiramente precisamos compreender a qual campo fazemos referência quando falamos do Facebook.

Segundo danah boyd, estudiosa do tema e consultora de grandes empresas do mundo, um site de rede social tem três características: 1) permitir ao usuário construir um perfil; 2) articular uma lista de amigos e conhecidos; e 3) visualizar e cruzar sua lista de amigos com os seus associados e com outras pessoas dentro do sistema.

O primeiro site com essas características foi lançado em 1997, portanto apenas um ano depois de a internet se tornar comercial no Brasil. A explosão desse modelo, no entanto, ocorreria a partir de 2002, com a criação do Friendster e, logo depois, do MySpace.

No Brasil, diferentemente de outros países, a experiência foi singular. O que o mundo vem experimentando nos últimos dois anos com o crescimento do Facebook (todos os seus “amigos” trocando mensagens, fotos, vídeos, entre outras informações, em um mesmo ambiente controlado), os brasileiros experimentaram a partir de 2004 com a invasão do Orkut, o site de relacionamento criado pelo Google que segue líder de audiência por aqui.

Até pouco tempo – e não seria impreciso demarcar que o Facebook também é responsável por isso – as redes sociais foram observadas apenas como fenômeno adolescente, sem grande importância ou impacto no ecossistema midiático. Nos últimos anos, no entanto, isso mudou, principalmente porque essas redes passaram a redefinir a forma como as pessoas consomem e circulam informações. Conforme escreve Grossman, um dos principais objetivos de Zuckerberg é mudar a “forma como a mídia é organizada, para reconstruí-la a partir da oligarquia benevolente de sua lista de amigos como princípio dessa reorganização”. Quando isso ficou evidente, o tema redes sociais ganhou outro tratamento por parte dos detentores de poder.

Redes são pessoas

“As pessoas fazem as redes sociais para além delas mesmas”, explica André Lemos, professor da Universidade Federal da Bahia e autor, com Pierre Lévy, de O Futuro da Internet, lançado no ano passado. “A rede não é o canal por onde passam coisas, como pensamos comumente, mas algo fluido, movente: ela é a relação que se estabelece, a cada momento, entre os diversos atores. Ela é o que agrega. Ela faz o social”.

Como outras – mas melhor que qualquer uma – a ferramenta de Zuckerberg se propõe justamente facilitar a aproximação entre pessoas, o que só é possível porque as massas, de fato, aderiram à plataforma.

“O sucesso do Facebook demonstra que as pessoas querem se relacionar”, opina Sérgio Amadeu da Silveira, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e eleito em janeiro para uma das representações da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI-Br). “Ao contrário do que foi sentenciado pelos tecnofóbicos, a rede permite aproximar as pessoas e intensifica os relacionamentos. O Facebook e outras redes sociais são articuladores coletivos, por isso, canalizam os processos de convocação, mobilização e solidariedade”

Para Giselle Beiguelman, artista multimídia e professora da Universidade de São Paulo, “é importante perceber, no entanto, que ao mesmo tempo em que redes sociais como o Facebook abrem possibilidades inéditas de fomento do consumo e controle, tornam-se também dispositivos de uso crítico e criativo das mídias existentes. Por isso, apontam para diferentes concepções e tendências políticas da ecologia midiática atual.”

Essa ambivalência estrutura o paradoxo ao qual nos referimos anteriormente. Ao obcecadamente buscar fazer melhor aquilo que a web se propõe a fazer, mimetizando-a em um ambiente controlado, Zuckerberg constrói talvez a mais definitiva ameaça às liberdades que constituíram a estrutura inovadora da rede mundial de computadores.

Não à toa, Tim Berners Lee, o inventor da web, deixou de lado sua postura pouco beligerante, para se posicionar claramente contra esse movimento do Facebook em um artigo publicado no ano passado na Scientific American.

Em “Vida Longa a Web: um chamado pela continuidade dos padrões abertos e da neutralidade de rede”, Berners Lee faz duas críticas ao invento de Zuckerberg: a) ao não permitir que informações produzidas e publicadas em sites de rede social circulem livremente (você só as acessa se estiver vinculado ao banco de dados da empresa) esses projetos trabalham pela destruição da universalidade da web, que é uma de suas características mais fundamentais; b) seu crescimento exagerado conforma um monopólio que acabará por limitar a inovação.

Para entender a crítica descrita no ponto “a”, é preciso desfazer uma confusão comum entre dois termos que são comumente utilizados como sinônimos, mas não são: internet e web. Internet é uma rede de redes, evolução das pesquisas militares da segunda metade do século 20 que desembocaram no desenvolvimento de protocolos de interoperabilidade que permitiram a conexão entre diferentes redes físicas (como o Internet Protocol IP, criado por Vint Cerf).

A world wide web (WWW) foi criada no início dos anos 90 e pode ser explicada como uma camada visual da rede que para ser acessada necessita de um software de navegação (um navegador, como o Firefox, o Chrome ou o Internet Explorer). Todos os protocolos criados são de livre uso e constituiu-se então um Consórcio, chamado W3C, que se dedica a manter a abertura e a flexibilidade dessas aplicações, melhorando-as.

Para sustentar sua crítica de que o Facebook promove a fragmentação da web, Berners-Lee escreve: “o isolamento ocorre porque cada pedaço de informação não tem um endereço. (…) Conexões entre os dados só existem dentro de um site. Assim, quanto mais você entra, mais você se tranca em seu site de redes sociais tornando-o uma plataforma central, um silo fechado de conteúdo, e que não lhe dá total controle sobre suas informações. Quanto mais esse tipo de arquitetura ganha uso generalizado, mais a web torna-se fragmentada, e menos temos um único espaço de informação universal.”

Um monopólio e seu produto: nós

“O Facebook atua estranhamente como um concentrador de atenções e uma “draga” de conteúdos. Nele tudo pode entrar, mas nada pode sair”, reforça Sérgio Amadeu. “O Facebook apaga postagens e elimina perfis sem nenhuma obrigação de avisar os usuários. Atuou contra o Wikileaks atendendo os interesses do governo norte-americano. A democracia inexiste no convívio com os gestores do Facebook. Se o Facebook fosse um país seria uma ditadura e Mark Zuckerberg um déspota de novo tipo”.

Em entrevista publicada no livro The Connector, Zuckerberg admite o objetivo de constituir um gigantesco banco de dados sob seu controle. “Estamos tentando mapear o que existe no mundo”, diz ele. De acordo com Grossman, “ser membro do Facebook é o equivalente a ter um passaporte. Ou seja, ele é uma ferramenta para verificação de sua identidade, não apenas no Facebook, mas onde quer que se esteja online”.

“Ferramentas como o Facebook estão no centro do chamado capitalismo cognitivo que precisam para existir mobilizar todas as forças afetivas, criativas, comunicacionais. Mobilizar a ‘vida’ como um todo”, escreve Ivana Bentes, coordenadora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Esses dispositivos servem simultâneamente a criação e ao controle, que é a forma de operar do pós-capitalismo, é a lógica do Google e do Facebook. Modular a ‘autonomia’ e a ‘liberdade’ indispensáveis na produção atual imaterial (design, moda, estilos de vida, conhecimento, tudo que é inovação).”

Tim Wu, ativista pela liberdade da rede, professor de direito da Universidade de Columbia, autor do livro The Master Switch – The Rise and Fall of Information Empires, ajuda-nos a explicar o que vem ocorrendo com a web com base naquilo que ele chama de o ciclo padrão de desenvolvimento midiático. Ele apresentou essa sua interpretação no Seminário sobre Cidadania Digital organizado por Amadeu da Silveira em 2009. Para ele, ao surgir, uma mídia se caracteriza por: abertura, amadorismo e competição. Depois, tende à formação de monopólios proprietários fechados. Isso estaria agora ocorrendo com a internet, a qual estaria deixando para trás o tempo da inovação em direção ao domínio de grandes monopólios (entre os quais o Facebook).

A arquitetura de padrões abertos e distribuídos da internet permitiu que a inovação brotasse no quintal de casa. No Vale do Silício garagens viraram museus, onde estão registrados os primórdios dos objetos e interfaces que hoje todos utilizamos. A principal contradição no caso do Facebook é a de ter se beneficiado desse ambiente inovador para agora traí-los, em um movimento que ninguém é capaz de definir onde desembocará, uma vez que sobram dúvidas sobre qual será o destino que Zuckerberg dará para todo esse arsenal informação que ele passou a comandar.

Giselle, para quem todas essas críticas são essenciais, soma mais alguns elementos a esse paradoxo que estamos descrevendo: “a vulnerabilidade das informações pessoais no Facebook é constantemente apontada como um dos seus problemas. Contudo, é bom lembrar, que num mundo mediado por bancos de dados de toda sorte – de programas de busca a redes sociais, passando pelas ‘Amazons’ da vida e as catracas da empresa e da escola –, somos uma espécie de plataforma que disponibiliza informações e hábitos conforme construímos nossas identidades públicas nos diversos serviços relacionados ao nosso consumo, lazer e trabalho”.

O caso do Egito

Em meio a críticas e desconfianças, o Facebook segue avançando. Uma das razões para isso, segundo Grossman, é que o “Facebook faz mais o ciberespaço como o mundo real: maçante, mas civilizado. Considerando que as pessoas levavam uma vida dupla, o real eo virtual, agora eles levam como uma só novamente.”

Outra razão que ajuda a explicar o sucesso da ferramenta é a crescente utilização da plataforma para fins políticos, como no caso dos protestos contra o ditador egípicio Hosni Mubarak. No período em que as manifestações tiveram início (e antes de o governo “desligar” a internet como forma de reprimir as movimentações) o Facebook chegou a concentrar 40% de todo o tráfego de dados daquele país.

Isso demonstra que os bancos de dados que nos espreitam também são instrumentos que servem à desobediência. “Facebook e Google oferecem ferramentas de expressão, de ativismo, de criação (os dispositivos como potência são incríveis!) e ao mesmo tempo ‘capturam’ essa potência, monetizam”, descreve Ivana. “A batalha do pós-capitalismo, a matéria do Facebook são os  fluxos da própria vida. Nós somos o produto, mas nós somos os sujeitos da colaboração, das trocas, da cooperação social. O desespero do capital hoje é ser tão nômade e fluido quanto a vida, daí as ferramentas de colaboração serem hoje as mesmas do comando e do controle.”

O caso do Egito é emblemático não só do uso da internet para movimentações políticas, mas em especial do uso feito do Facebook. Foi por meio do site de rede social o Movimento Jovem 6 de Abril organizou suas primeiras manifestações. Conforme descrito em matéria publicada pelo The New York Times, os organizadores reuniram mais de 90 mil assinaturas online e com isso conseguiram encorajar as pessoas a irem para a rua.

À internet, sem dúvida, coube um papel fundamental, mas é preciso também relativizá-lo. “No caso do conflito no Egito, a rede de atores é composta por instâncias diversas: pessoas, discursos, redes sociais (Facebook e Twitter, os mais usados), SMS e telefones celulares, cartazes em praça pública, repercussão na mídia internacional, debates televisivos, luta corporal etc”, explica Lemos. “Nesse sentido, acho excelente que o Facebook seja usado para articular pessoas para a causa egípcia. Isso para além do Facebook. As redes sociais são um elemento importante de publicização do descontentamento egípcio, mas elas não fazem, sozinhas, a revolução”

Para Ivana Bentes, “o decisivo é que o desejo, a criação, a colaboração vem antes e não se reduzem ao comando, transbordam os dispositivos, mesmo quando são capturadas, rastreadas, monetizadas. Para ser mais brutal eu diria que por enquanto precisamos também dos Facebooks e Googles para fazer a insurreição digital que será decisiva para inventarmos uma nova política para o século XXI. Pós-Google e Pós-Face”.

* Este texto foi construído a partir do diálogo com os professores André Lemos (Universidade Federal da Bahia – UFBA), Gisele Beiguelman (Universidade de São Paulo – USP), Ivana Bentes (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ) e Sérgio Amadeu da Silveira (Universidade Federal do ABC – UFABC).

Rodrigo Savazoni é Webproducer e realizador multimídia. Diretor do Laboratório Brasileiro de Cultura Digital e um dos criadores da Casa da Cultura Digital. Co-organizou os livros “Vozes da Democracia” (Imprensa Oficial, 2007) e “Cultura Digital.BR” (Azougue, 2009). Também foi professor do curso de pós-gradução de jornalismo on-line da PUC-SP. Em 2008, foi editor especial do estadao.com.br, responsável pelo desenvolvimento do projeto Vereador Digital, entre outros. Entre 2004 e 2007 conduziu a reformulação da Agência Brasil como chefe de redação

MinC e a reforma da LDA: todos estão convidados?

O recente estágio da discussão sobre a reforma da Lei de Direito Autoral (Lei 9.610/98), encabeçada pelo MinC (Ministério da Cultura), suscita alguns questionamentos, quiçá preocupações. Dentre os principais: quem de fato o Ministério da Cultura quer envolver nesse debate? Seu objetivo é ampliar ou reduzir o diálogo? Propõe, o MinC, o movimento de expansão da discussão a outros segmentos, igualmente atingidos pela legislação autoral, ou vai restringi-la apenas aos “criadores” e seus “representantes”?

A dúvida é pertinente, pois se passaram mais de seis anos de construção coletiva do projeto de reforma da LDA, de debate público efetivo acerca dos principais pontos e temas que deveriam ser nela abarcados. Construção coletiva por incluir vários segmentos historicamente negligenciados nesse processo, como o movimento de professores e estudantes, as organizações da sociedade civil ligadas à educação e à democratização da comunicação, os coletivos de cultura digital, as entidades de defesa do consumidor e os indivíduos em geral, incentivados a participar, independentemente de qualquer requisito de institucionalidade. Isso tudo somado obviamente ao setor artístico, criativo, autoral e da indústria cultural. Todos esses setores encorajados a participar pelo próprio Ministério da Cultura. Todos esses atores legitimados para opinar e devidamente ouvidos pelo governo.

Ora, se a legislação autoral é fator preponderante para a concretização de diversos outros direitos do cidadão, como o acesso ao conhecimento, à informação e aos serviços e produtos culturais, constata-se: natural que esse debate seja o mais ampliado possível. Essencial a inserção de campos os mais diversos na elaboração de uma nova lei. Importante que isso seja uma política de governo, fomentada pelo discurso dos governantes e por ações práticas, como a consulta pública, a qualificação do debate, com a realização de seminários e encontros com interfaces diferentes, e a manutenção de compromissos públicos assumidos.

Ocorre que, hoje, vislumbra-se o movimento contrário por parte do Ministério da Cultura. Desde o início do ano, a toada é de brecar o andamento do projeto de reforma da LDA, construído de forma democrática e transparente, com o pretexto de ouvir os artistas, os criadores, como se simplesmente eles não tivessem participado anteriormente desse processo.

Com essa postura, o MinC simplesmente desconsidera que grande parte desse trabalho teve a imprescindível contribuição da sociedade civil, da cultura e outros campos. “Reabre” a discussão, porém, deixando muito claro que voz terá mais peso a partir de agora. As aspas, logo atrás, evidenciam isso: o anteprojeto da reforma foi (re)colocado no site do MinC, para essa nova “audição” dos artistas, mas o relatório com todas as contribuições da população, assimiladas ou rejeitadas no texto, até agora não foi disponibilizado.

Esse reinício de debate já se dá, portanto, com falta de clareza, especialmente no que tange aos seus objetivos. A ideia de construir um projeto de revisão da lei autoral que a torne compatível com outros diplomas legais e outros direitos de cidadania será mantida? Por exemplo, na relação com a defesa do consumidor. A LDA atual permite vários abusos aos direitos dos consumidores, como a possibilidade de inserção de restrições tecnológicas nos produtos culturais, como CDs e DVDs, que impedem a livre e integral fruição do bem, já adquirido, sem qualquer finalidade de lucro; impede a interoperabilidade, de maneira que o consumidor pratica um ato ilícito quando passa uma música de seu computador pro tocador portátil; e impede a cópia privada, por exemplo, de um livro, para uso doméstico e para fins de estudo.

Fala-se muito, hoje em dia, em economia da cultura. Nesse terreno, dá-se uma interconexão muito clara entre a legislação autoral e o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). Se é possível falar em cadeias de produção e consumo culturais consolidados; ciclos diferenciados de criação, distribuição, circulação, difusão e fruição dos bens culturais; arranjos produtivos locais; sistemas e redes de trocas criativas; e novos modelos de comercialização digital. Se existe essa dinâmica, e se ela é central para o desenvolvimento do país, a ponto inclusive de e a recém-criada Secretaria de Economia da Cultura no MinC, essa dinâmica possui fornecedores de produtos e serviços culturais e os seus destinatários: os consumidores da cultura. A parte hipossuficiente, por essência, da relação, a ser protegida em todas as legislações que lidam com relações de consumo, como é o caso.

Para que essa dinâmica seja saudável e equilibrada, há que se compatibilizar LDA e CDC.  E, mais que isso, é imprescindível a presença do Estado, como garantem os artigos 5º, XXXIII, e 170, V, da Constituição. Para a defesa do consumidor no mercado de consumo cultural, para impedir abusos, garantir a transparência e evitar práticas anticoncorrenciais, garantindo a liberdade de escolha, o CDC exige a supervisão do Estado, corroborando a Constituição. A Lei de Direito Autoral, não. Inexiste nela esse diálogo com outros diplomas legais, o que coloca a LDA num patamar quase de direito absoluto – caráter, inclusive, defendido pelas associações coletoras de direitos autorais, cuja atividade que não sofre qualquer tipo de controle social.

O exemplo do consumidor evidencia o alcance da LDA em outros campos. Outros poderiam ser citados: a necessidade de permissão da digitalização plena de acervos, para a educação e o patrimônio histórico; a própria cópia educacional, o xeroxnão comercial, para universitários; uma licença especial de execução de músicas para rádios comunitárias, na área da comunicação; ou a previsão de produção de obras com acessibilidade especial para pessoas com deficiência.

Tais demandas foram debatidas durante muitos anos e só puderam ser incorporadas ao projeto de reforma da LDA pelo espaço aberto e pela disposição do governo ao diálogo amplo, para além da “exclusiva” atenção ao segmento artístico. O projeto, contudo, está por hora encostado. A freada foi comemorada pelas associações coletoras de direitos autorais mundo afora, da qual fazem parte o Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais (Ecad) e afins. E a Ministra tem recebido cumprimentos especiais da indústria fonográfica e do Ministério de Comércio Exterior dos Estados Unidos. Por aqui, não existem motivos pra comemorar.

Aos consumidores, pessoas com deficiência, estudantes, professores, bibliotecários, militantes da liberdade de expressão, artistas e autores, ficam as dúvidas: haverá a oportunidade de diálogo franco entre todas as áreas afetas aos direitos autorais? O novo projeto equilibrará legislações e interesses diversos? A reabertura do processo de revisão é real, pra fazê-lo andar? Ou trata-se de um processo protocolar, de cunho protelatório? Estão todos novamente convidados a participar ou apenas alguns são os legítimos participantes do processo? Em suma, para todos aqueles que participaram efetivamente, durante esses anos, da construção colaborativa de uma nova e mais justa LDA, fica a interrogação: que fim dará a reforma?

Guilherme Varella é advogado do Idec

Da TV educativa à TV pública

Por meio da Portaria No 70, de 29 de março de 2011, o Ministério das Comunicações colocou em consulta pública uma proposta de ato normativo que estabelece novos critérios para a concessão de outorgas para a prestação de serviços de televisão educativa.

O ato pretende instituir nas educativas um processo seletivo que já é praticado no caso das emissoras comunitárias. O Minicom soltaria um aviso de habilitação em locais com canais disponíveis e receberia as propostas dos interessados em prestar o serviço. Em 60 dias, a proposta deve ser apresentada, acompanhada de uma lista de documentos fixada no anexo da portaria.

O ato reforça a preferência a entes de direito público interno prevista no artigo 34 da Lei 4.117 (o Código Brasileiro de Telecomunicações), o que na prática dá vantagem às universidades. Embora isso já existisse, tal dispositivo precisa ser cumprido na prática, pois há casos como na cidade de Goiânia em que instituições de ensino foram preteridas por fundações ligadas à igrejas.

O documento define os critérios de avaliação dos candidatos. Dois dos mais importantes são a representatividade da instituição de ensino à qual o proponente tem de estar vinculado e a participação de membros dessa instituição na direção do ente concorrente. Concretamente, a nova regra obriga que os pleiteantes estejam associados a uma universidade – na forma de uma fundação, por exemplo – , exigência que não existe hoje.

As outorgas educativas

O esforço de racionalizar os procedimentos de análise das outorgas sinalizado pela nova gestão do Minicom é louvável. Entidades da sociedade civil já vêm há anos apontando o faroeste das concessões de rádio e TV e destacando a necessidade de garantir transparência, democracia e agilidade ao processamento das autorizações. Mas, neste caso específico, o Minicom peca por não ir fundo na solução necessária ao caso das educativas. Mas antes de maiores considerações, vale recuperar o que são essas autorizações.

O serviço de televisão com fins educativos foi criado no Decreto-Lei 236 de 1967. Ele aparece em um movimento de criação de emissoras que respondiam ao projeto dos militares de utilizar este meio como forma barata e segura de difusão de conteúdos para uma população com baixa instrução e jogada como mão-de-obra em um mercado em rápida industrialização.

O Artigo 13o, que trata da nova licença, veda a publicidade, bem como qualquer tipo de patrocínio, e define o escopo da programação: “a televisão educativa se destinará à divulgação de programas educacionais, mediante a transmissão de aulas, conferências, palestras e debates”. Ou seja, essas emissoras tinham um limite muito claro como canais de transmissão de conteúdos que hoje conhecemos na forma de “telecursos” e outras formas de falas de personalidades ou discussões ancoradas.

A primeira emissora educativa foi a TV Universitária de Pernambuco. Em seguida surgiram as educativas controladas pelos governos estaduais. Já o governo federal preferiu se reservar o papel de produtor, com a Fundação Centro Brasileiro de Televisão Educativa, que na década de 1970 ganharia a responsabilidade pela gestão da TVE.

Inicialmente, a licença educativa acabou atendendo à tentativa de constituir um meio massivo de qualificação profissional. Mas rapidamente passou a ser a forma pela qual se edificou o frágil “sistema público” (de cunho claramente institucional governamental1) brasileiro. Mas isso não significa que a licença só possa ser obtida por entes de direito público. Muito pelo contrário. E é aí que mora o vício de origem da TV Educativa.

A licença se estrutura a partir de uma finalidade (veicular conteúdo educativo), e não de uma modalidade de radiodifusão. Isso significa que ela pode ser dada a um ente privado, como acontece hoje com diversas fundações vinculadas a igrejas que mantém canais de TV em vários estados do país. Com a Constituição Brasileira de 1988, essa contradição ficou mais evidente, uma vez que o Artigo 223 prevê a complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal.

Como esse capítulo nunca foi inteiramente regulamentado (é possível falar em regulamentação parcial com a Lei 11.652, que criou a Empresa Brasil de Comunicação), ficou a contradição de uma licença baseada em uma finalidade e uma modalidade sem uma definição nem tipo de autorização específico. Soma-se a isso o fato da obrigação de conteúdos educativos ter perdido validade na prática. Desde praticamente o nascimento dessas emissoras elas veiculam outros tipos de programas e as sucessivas gestões do Ministério das Comunicações sempre permitiram essa prática.

O problema é outro

Voltando à consulta do Minicom, a ponderação central desse artigo é: que sentido faz racionalizar o procedimento de uma licença inadequada tanto do ponto de vista da concepção de uma arquitetura adequada do marco regulatório quanto da sua implementação prática?

Em vez disso, seria mais importante que o Minicom agilizasse a apresentação da proposta de reforma do marco regulatório e que, nela, mudasse as licenças de modo que elas reflitam as novas modalidades do sistema de mídia, público, privado e estatal.

A autorização para o sistema privado poderia ser obtida por empresas, mas também por entes privados sem fins lucrativos, como fundações, associações, sindicatos etc…. a exemplo do que acontece na Argentina. Nos dois casos, deveriam ser respeitadas as regras de limitação de propriedade (em especial que garantam o controle por brasileiros e a proibição de concentração em oligopólios) e de obrigações de conteúdo, a partir da noção de que esses entes prestam um serviço público sob concessão do Estado.

A licença para o sistema estatal seria dada para emissoras vinculadas a determinas instituições dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, nas três esferas da Federação. Entrariam aí a NBR, a TV do Governo Federal, as TVs Câmara, Senado e Justiça, bem como os veículos de assembleias legislativas, câmaras de vereadores, prefeituras e afins.

E a permissão para o Sistema Público seria concedida a entes estatais especificamente criados para esse fim que tivessem em sua estrutura instâncias controladas pela sociedade por meio de suas representações.

Não queremos, com isso, desvalorizar os conteúdos educativos. Eles continuam importantes. E devem fazer parte das grades das emissoras, sejam elas públicas, estatais ou privadas. Mas concluímos reiterando que no cenário atual não contribui para uma arquitetura adequada do sistema de mídia brasileiro a previsão de emissoras voltadas exclusivamente a esse gênero informativo.

Para entender a concepção de público e estatal assumida neste artigo favor ver a dissertação “TV Pública no Brasil: o surgimento da TV Brasil e sua inserção no modo de regulação setorial da televisão brasileira ”, de nossa autoria.

Jonas Valente é integrante da Coordenação Executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, secretário-geral do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal e pesquisador do Laboratório de Políticas e Comunicação da Unb (Lapcom).

 

Os retrocessos da política de comunicação do Pará

Em dezembro de 2009, o Brasil viveu um momento histórico: acontecia a primeira Conferência Nacional de Comunicação, capitaneada pelo Governo Federal.

Demanda histórica da sociedade civil que defende a democratização da comunicação, e mesmo com suas atipicidades, a I Confecom foi um momento marcante, onde a comunicação ganhava relevância e ocupava de maneira institucionalizada as pautas políticas dos estados e do país.

Quando foi anunciada pelo presidente Lula, durante o Fórum Social Mundial que aconteceu em janeiro de 2009 em Belém, todos da sociedade civil brasileira já aguardavam os comportamentos dos estados para a convocação das etapas estaduais.

Em abril de 2009, saiu o decreto que convocava oficialmente a I Conferência Nacional de Comunicação, e colocava aos poderes executivos dos estados a convocação das etapas estaduais.

É importante ressaltar que mesmo antes de Lula anunciar a Confecom durante o Fórum Social Mundial, o governo do Pará, através da Secom – Secretaria de Comunicação, já fazia o debate sobre a Conferência de Comunicação. A Diretoria de Comunicação Popular da recém criada Secretaria já tinha a preocupação de debater com a sociedade uma política de comunicação tanto para o estado quanto para país.

Até o final do prazo para a convocação da realização das etapas estaduais, apenas o governo do Pará havia convocado oficialmente a sociedade civil para debater os rumos da comunicação no Brasil. No estado de São Paulo por exemplo, governado pelo PSDB, a etapa estadual foi convocada pela Assembleia Legislativa.

Durante todo o ano de 2009, todos estavam voltados para o debate sobre a comunicação. E a criação da Secom veio fortalecer a proposta, já encabeçada a tempos pelo governo federal, de criação de uma política de comunicação para o estado do pará e fortalecer o debate que já acontecia no Brasil, com ampla participação da sociedade.

Pois bem….Depois de todo esse acúmulo, o que temos hoje? Já se passam cerca de 90 dias de governo no Pará e não se tem nenhuma manifestação sobre o assunto.

Até o momento, o atual secretário e sua diretoria não se manifestaram sobre as resoluções tiradas na Conferência Estadual de Comunicação, muito menos sobre a possibilidade de criação de um grupo para discutir o Conselho Estadual de Comunicação.

Observa-se a Secom-Pa completamente desconectada dos debates sobre a política de comunicação brasileira. Isso reflete um retrocesso na política de comunicação no Pará.

Creio que a atual gestão ainda não compreendeu o real papel da Secretaria de Comunicação. Ou então, tenta desviá-la da sua principal finalidade. Ações como a expansão do sinal da da TV Cultura (que diga-se de passagem, foi a única proposta de uma TV Pública estadual aprovada em GT na Conferência Nacional), a retomada da Rádio Cultura OT, o NavegaPará, o fortalecimento do diálogo com a sociedade, a criação do Conselho Curador da Funtelpa, etc…Não podem ser simplesmente abandonadas.

Ao mesmo tempo, observa-se uma ausência do Pará nos principais debates sobre a comunicação que afloram no Brasil tais como a nova Lei do FUST – Fundo de Universalização do Sistema de Telecomunicações, o PNBL – Plano Nacional de Banda Larga, o novo marco regulatório para a comunicação no Brasil, e as concepções e premissas do sistema público de comunicação.

É inadmissível o retrocesso dos avanços alcançados nesta área até aqui. Cabe à sociedade ficar atenta e não deixar cair no esquecimento todo o avanço que o estado do Pará teve na área da política de comunicação.


Marcos Urupá
é jornalista, advogado e associado do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

Pontos de Cultura – O sonho de Mário de Andrade

Faz-se necessário urgentemente que a arte retorne às suas fontes legítimas. Faz-se imprescindível que adquiramos uma perfeita consciência, direi mais, um perfeito comportamento artístico diante da vida, uma atitude estética, disciplinada, livre, mas legítima, severa apesar de insubmissa, disciplina de todo o ser, para que alcancemos realmente a arte. Só então o indivíduo retornará ao humano. Porque na arte verdadeira o humano é a fatalidade. (Mário de Andrade – O Baile das Quatro Artes)

Os pontos de cultura são, na essência, a alma brasileira arregaçando as mangas. Eles são a mutação contemporânea aonde as matérias-primas naturais realizam a história universal da celebração dos homens da nossa época e da nossa terra fundamentados num fato concreto.

O que mais se constitui em perspectiva de valor num universo extremamente diversificado como são os pontos de cultura? Esse universo enriquecido como exercício de uma nova política de cultura é a própria dialética da vida brasileira que constitui um extraordinário caldo cultural e que, se pensarmos ousadamente, é o principal instrumento adequado à realização fulminante de um outro mundo, onde o valor dos sentidos está longe das pretensões e cobiça do território industrial que valoriza, hoje, um deserto.

O que precisa ficar claro é que os objetivos materiais manufaturados com que a indústria cultural atravessou o século perderam a eficácia de suas ações pela revolução das tecnologias de informação. Mas, ao contrário dessa realidade, o MinC se move em meio a uma tormenta de pretensões e cobiças que povoam o corporativismo como uma dívida eterna, mesmo quando se aumenta a previsibilidade de que o universo dos camarins e da ribalta perdeu o mercado e sua capacidade de nortear os objetivos da economia da cultura.

A universalidade empírica é a grande esperança. Não se faz política pública por intermédio dos mitos, de sistemas onde o descrédito humano elabora a sua conduta de modo sistêmico. Precisamos de uma nova clareza e densidade amparadas pela ressurreição das idéias possíveis apenas pelas práticas de solidariedade.

Se a globalização cultural é perversa, quando segue as normas da financeirização, ela também nos autoriza uma outra percepção, uma outra proposição, um outro discurso crítico nas relações de causa e efeito. Essa dialética contemporânea tem como papel principal o reordenamento da mudança da visibilidade histórica que está em processo numa fundamental quebra de paradigmas.

Cultura não é somente essencial àquilo que é invenção do artista. A arte é a essência da humanidade. Introduzir no Brasil um espírito desprevenido de alma que não traga verdadeiramente interesses à cultura brasileira, é fomentar objetivos perniciosos de destruição do nosso caráter nacional para fabricar fatos que caracterizem uma indústria. Isso é sufocar os nossos talentos na fonte.

O que quer justificar a cultura neoliberal que anda especulando mundo afora? Impor uma cultura sem nacionalidade e inteiramente incompreensível ao povo brasileiro? O que se quer é ignorar o Brasil e deformar a cultura em sua nascente?

O que se quer, na verdade, é fingir que o Brasil não tem o extraordinário conjunto de pontos de cultura que hoje representam uma nação digna de uma bandeira, com valor autêntico e com traços fundamentais da nossa autonomia e sentido, um vulcão de idéias produzidas por mais de 8milhões de cidadãos brasileiros.

Política pública de cultura não se faz com fábricas de truques, à meia-ciência, substituindo a pesquisa, o talento, o sonho e a paixão por um método de contorcionismo cerebral que nada tem de comum com as características específicas do temperamento nacional, como é o caso da tendência deformadora que busca a todo custo e modo a simpatia da indústria cultural.

O que é fundamental para a cultura de um país? Pense essencial.

Como disse Mário de Andrade: “É preciso não esquecer que cada um de nós é seu próprio maior artista ou o único criador das obras-primas que corresponde às necessidades e desejos da sua própria personalidade”.

Cultura não é feita de assinatura de contratos. Uma sinfonia não se realiza para poucos, puros e nobres. A compreensão de uma cultura e todo o seu desenvolvimento é dirigida essencialmente e bem acessível à gente do povo, feita, sobretudo com técnica dentro de sua mais pura sinceridade. Os Pontos de Cultura são uma estonteante narrativa do povo brasileiro, um sentimento de cultura feito com senso de justiça, amor e liberdade.

O Ministério da Cultura de Ana de Hollanda enseja um mal empregado conceito de cultura, sem justificação ou razão humana. Esse tom obscuro não é a tônica de nossa revelação como sociedade, notabilizada por frases feitas, principalmente pelo conceito traiçoeiro com determinada habilidade “intelectual”. Tudo para atender às associações, às editoras, aos medalhões, ao Ecad e, consequentemente às gravadoras multinacionais.

 

Carlos Henrique Machado Freitas é bandolinista, compositor e pesquisador