A internet mudou o mundo. Segue transformando-o. E a mais recente transformação é consequência da invenção do Facebook por Mark Zuckerberg. Seis anos atrás, aos 19 anos, ele lançou o mais bem sucedido e abrangente site de rede social. Porque, como a grande maioria dos garotos de sua geração, acreditou que uma idéia na cabeça e alguns códigos à mão o fariam bilionário. Acertou. Isso o torna a expressão perfeita do fluido capitalismo contemporâneo, que vive de nos vender – o que somos e fazemos – produzindo uma inestimável sensação de liberdade.
No ano que se encerrou, conforme registra o livro The Connector, lançado recentemente nos Estados Unidos, a invenção de Zuckerberg atingiu a marca de 550 milhões de usuários. “Uma em cada dúzia de seres humanos existentes no planeta usa a ferramenta. Elas falam 75 línguas e coletivamente gastam mais de 700 bilhões de minutos no Facebook todos os meses. No último mês de 2010 o site angariou uma de cada quatro páginas de internet visitadas nos Estados Unidos. Essa comunidade tem crescido ao ritmo de cerca de 700 mil pessoas por dia”.
Por essa e outras razões – algumas delas vamos tentar descrever neste texto –, o Facebook passou a concentrar a atenção dos homens e mulheres que dedicam suas vidas a pesquisar e avaliar os fenômenos políticos, econômicos, sociais e culturais que são reflexo da emergência da rede mundial de computadores.
É bom alertar, estamos diante de um paradoxo que não compreenderemos por meio de leituras dicotômicas. Para aquilo que é líquido, busque-se o recipiente correto, senão a análise escorre pelas frestas. Esse paradoxo consiste em: por um lado, a rede social de Zuckerberg é, sem sombra de dúvida, um elemento fundamental para a explosão do uso da web – inclusive proporcionando impactos políticos inestimáveis, como na Tunísia e no Egito; por outro, integra e aprofunda o movimento de cercamento às reais liberdades que marcaram a internet desde a sua criação.
Esse cerco à internet livre é produzido por uma aliança entre governos conservadores, indústria da propriedade cultural, empresas de telefonia e algumas das emergentes corporações do mundo das redes, com diferentes níveis de envolvimento de cada um desses atores.
O papel do Facebook nessa epopéia é o do monopólio, que busca transformar uma parte (um site) em todo (a rede). A ambição de Zuckerberg é que todo cidadão conectado à internet – atualmente cerca de 2 bilhões de seres humanos -, tenha um perfil no Facebook e possa se relacionar lateralmente por meio da ferramenta. Diz fazer isso porque quer ver o mundo mais “aberto e conectado”. Não é verdade.
Para entendermos porque essa declaração é falsa, primeiramente precisamos compreender a qual campo fazemos referência quando falamos do Facebook.
Segundo danah boyd, estudiosa do tema e consultora de grandes empresas do mundo, um site de rede social tem três características: 1) permitir ao usuário construir um perfil; 2) articular uma lista de amigos e conhecidos; e 3) visualizar e cruzar sua lista de amigos com os seus associados e com outras pessoas dentro do sistema.
O primeiro site com essas características foi lançado em 1997, portanto apenas um ano depois de a internet se tornar comercial no Brasil. A explosão desse modelo, no entanto, ocorreria a partir de 2002, com a criação do Friendster e, logo depois, do MySpace.
No Brasil, diferentemente de outros países, a experiência foi singular. O que o mundo vem experimentando nos últimos dois anos com o crescimento do Facebook (todos os seus “amigos” trocando mensagens, fotos, vídeos, entre outras informações, em um mesmo ambiente controlado), os brasileiros experimentaram a partir de 2004 com a invasão do Orkut, o site de relacionamento criado pelo Google que segue líder de audiência por aqui.
Até pouco tempo – e não seria impreciso demarcar que o Facebook também é responsável por isso – as redes sociais foram observadas apenas como fenômeno adolescente, sem grande importância ou impacto no ecossistema midiático. Nos últimos anos, no entanto, isso mudou, principalmente porque essas redes passaram a redefinir a forma como as pessoas consomem e circulam informações. Conforme escreve Grossman, um dos principais objetivos de Zuckerberg é mudar a “forma como a mídia é organizada, para reconstruí-la a partir da oligarquia benevolente de sua lista de amigos como princípio dessa reorganização”. Quando isso ficou evidente, o tema redes sociais ganhou outro tratamento por parte dos detentores de poder.
Redes são pessoas
“As pessoas fazem as redes sociais para além delas mesmas”, explica André Lemos, professor da Universidade Federal da Bahia e autor, com Pierre Lévy, de O Futuro da Internet, lançado no ano passado. “A rede não é o canal por onde passam coisas, como pensamos comumente, mas algo fluido, movente: ela é a relação que se estabelece, a cada momento, entre os diversos atores. Ela é o que agrega. Ela faz o social”.
Como outras – mas melhor que qualquer uma – a ferramenta de Zuckerberg se propõe justamente facilitar a aproximação entre pessoas, o que só é possível porque as massas, de fato, aderiram à plataforma.
“O sucesso do Facebook demonstra que as pessoas querem se relacionar”, opina Sérgio Amadeu da Silveira, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e eleito em janeiro para uma das representações da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI-Br). “Ao contrário do que foi sentenciado pelos tecnofóbicos, a rede permite aproximar as pessoas e intensifica os relacionamentos. O Facebook e outras redes sociais são articuladores coletivos, por isso, canalizam os processos de convocação, mobilização e solidariedade”
Para Giselle Beiguelman, artista multimídia e professora da Universidade de São Paulo, “é importante perceber, no entanto, que ao mesmo tempo em que redes sociais como o Facebook abrem possibilidades inéditas de fomento do consumo e controle, tornam-se também dispositivos de uso crítico e criativo das mídias existentes. Por isso, apontam para diferentes concepções e tendências políticas da ecologia midiática atual.”
Essa ambivalência estrutura o paradoxo ao qual nos referimos anteriormente. Ao obcecadamente buscar fazer melhor aquilo que a web se propõe a fazer, mimetizando-a em um ambiente controlado, Zuckerberg constrói talvez a mais definitiva ameaça às liberdades que constituíram a estrutura inovadora da rede mundial de computadores.
Não à toa, Tim Berners Lee, o inventor da web, deixou de lado sua postura pouco beligerante, para se posicionar claramente contra esse movimento do Facebook em um artigo publicado no ano passado na Scientific American.
Em “Vida Longa a Web: um chamado pela continuidade dos padrões abertos e da neutralidade de rede”, Berners Lee faz duas críticas ao invento de Zuckerberg: a) ao não permitir que informações produzidas e publicadas em sites de rede social circulem livremente (você só as acessa se estiver vinculado ao banco de dados da empresa) esses projetos trabalham pela destruição da universalidade da web, que é uma de suas características mais fundamentais; b) seu crescimento exagerado conforma um monopólio que acabará por limitar a inovação.
Para entender a crítica descrita no ponto “a”, é preciso desfazer uma confusão comum entre dois termos que são comumente utilizados como sinônimos, mas não são: internet e web. Internet é uma rede de redes, evolução das pesquisas militares da segunda metade do século 20 que desembocaram no desenvolvimento de protocolos de interoperabilidade que permitiram a conexão entre diferentes redes físicas (como o Internet Protocol IP, criado por Vint Cerf).
A world wide web (WWW) foi criada no início dos anos 90 e pode ser explicada como uma camada visual da rede que para ser acessada necessita de um software de navegação (um navegador, como o Firefox, o Chrome ou o Internet Explorer). Todos os protocolos criados são de livre uso e constituiu-se então um Consórcio, chamado W3C, que se dedica a manter a abertura e a flexibilidade dessas aplicações, melhorando-as.
Para sustentar sua crítica de que o Facebook promove a fragmentação da web, Berners-Lee escreve: “o isolamento ocorre porque cada pedaço de informação não tem um endereço. (…) Conexões entre os dados só existem dentro de um site. Assim, quanto mais você entra, mais você se tranca em seu site de redes sociais tornando-o uma plataforma central, um silo fechado de conteúdo, e que não lhe dá total controle sobre suas informações. Quanto mais esse tipo de arquitetura ganha uso generalizado, mais a web torna-se fragmentada, e menos temos um único espaço de informação universal.”
Um monopólio e seu produto: nós
“O Facebook atua estranhamente como um concentrador de atenções e uma “draga” de conteúdos. Nele tudo pode entrar, mas nada pode sair”, reforça Sérgio Amadeu. “O Facebook apaga postagens e elimina perfis sem nenhuma obrigação de avisar os usuários. Atuou contra o Wikileaks atendendo os interesses do governo norte-americano. A democracia inexiste no convívio com os gestores do Facebook. Se o Facebook fosse um país seria uma ditadura e Mark Zuckerberg um déspota de novo tipo”.
Em entrevista publicada no livro The Connector, Zuckerberg admite o objetivo de constituir um gigantesco banco de dados sob seu controle. “Estamos tentando mapear o que existe no mundo”, diz ele. De acordo com Grossman, “ser membro do Facebook é o equivalente a ter um passaporte. Ou seja, ele é uma ferramenta para verificação de sua identidade, não apenas no Facebook, mas onde quer que se esteja online”.
“Ferramentas como o Facebook estão no centro do chamado capitalismo cognitivo que precisam para existir mobilizar todas as forças afetivas, criativas, comunicacionais. Mobilizar a ‘vida’ como um todo”, escreve Ivana Bentes, coordenadora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Esses dispositivos servem simultâneamente a criação e ao controle, que é a forma de operar do pós-capitalismo, é a lógica do Google e do Facebook. Modular a ‘autonomia’ e a ‘liberdade’ indispensáveis na produção atual imaterial (design, moda, estilos de vida, conhecimento, tudo que é inovação).”
Tim Wu, ativista pela liberdade da rede, professor de direito da Universidade de Columbia, autor do livro The Master Switch – The Rise and Fall of Information Empires, ajuda-nos a explicar o que vem ocorrendo com a web com base naquilo que ele chama de o ciclo padrão de desenvolvimento midiático. Ele apresentou essa sua interpretação no Seminário sobre Cidadania Digital organizado por Amadeu da Silveira em 2009. Para ele, ao surgir, uma mídia se caracteriza por: abertura, amadorismo e competição. Depois, tende à formação de monopólios proprietários fechados. Isso estaria agora ocorrendo com a internet, a qual estaria deixando para trás o tempo da inovação em direção ao domínio de grandes monopólios (entre os quais o Facebook).
A arquitetura de padrões abertos e distribuídos da internet permitiu que a inovação brotasse no quintal de casa. No Vale do Silício garagens viraram museus, onde estão registrados os primórdios dos objetos e interfaces que hoje todos utilizamos. A principal contradição no caso do Facebook é a de ter se beneficiado desse ambiente inovador para agora traí-los, em um movimento que ninguém é capaz de definir onde desembocará, uma vez que sobram dúvidas sobre qual será o destino que Zuckerberg dará para todo esse arsenal informação que ele passou a comandar.
Giselle, para quem todas essas críticas são essenciais, soma mais alguns elementos a esse paradoxo que estamos descrevendo: “a vulnerabilidade das informações pessoais no Facebook é constantemente apontada como um dos seus problemas. Contudo, é bom lembrar, que num mundo mediado por bancos de dados de toda sorte – de programas de busca a redes sociais, passando pelas ‘Amazons’ da vida e as catracas da empresa e da escola –, somos uma espécie de plataforma que disponibiliza informações e hábitos conforme construímos nossas identidades públicas nos diversos serviços relacionados ao nosso consumo, lazer e trabalho”.
O caso do Egito
Em meio a críticas e desconfianças, o Facebook segue avançando. Uma das razões para isso, segundo Grossman, é que o “Facebook faz mais o ciberespaço como o mundo real: maçante, mas civilizado. Considerando que as pessoas levavam uma vida dupla, o real eo virtual, agora eles levam como uma só novamente.”
Outra razão que ajuda a explicar o sucesso da ferramenta é a crescente utilização da plataforma para fins políticos, como no caso dos protestos contra o ditador egípicio Hosni Mubarak. No período em que as manifestações tiveram início (e antes de o governo “desligar” a internet como forma de reprimir as movimentações) o Facebook chegou a concentrar 40% de todo o tráfego de dados daquele país.
Isso demonstra que os bancos de dados que nos espreitam também são instrumentos que servem à desobediência. “Facebook e Google oferecem ferramentas de expressão, de ativismo, de criação (os dispositivos como potência são incríveis!) e ao mesmo tempo ‘capturam’ essa potência, monetizam”, descreve Ivana. “A batalha do pós-capitalismo, a matéria do Facebook são os fluxos da própria vida. Nós somos o produto, mas nós somos os sujeitos da colaboração, das trocas, da cooperação social. O desespero do capital hoje é ser tão nômade e fluido quanto a vida, daí as ferramentas de colaboração serem hoje as mesmas do comando e do controle.”
O caso do Egito é emblemático não só do uso da internet para movimentações políticas, mas em especial do uso feito do Facebook. Foi por meio do site de rede social o Movimento Jovem 6 de Abril organizou suas primeiras manifestações. Conforme descrito em matéria publicada pelo The New York Times, os organizadores reuniram mais de 90 mil assinaturas online e com isso conseguiram encorajar as pessoas a irem para a rua.
À internet, sem dúvida, coube um papel fundamental, mas é preciso também relativizá-lo. “No caso do conflito no Egito, a rede de atores é composta por instâncias diversas: pessoas, discursos, redes sociais (Facebook e Twitter, os mais usados), SMS e telefones celulares, cartazes em praça pública, repercussão na mídia internacional, debates televisivos, luta corporal etc”, explica Lemos. “Nesse sentido, acho excelente que o Facebook seja usado para articular pessoas para a causa egípcia. Isso para além do Facebook. As redes sociais são um elemento importante de publicização do descontentamento egípcio, mas elas não fazem, sozinhas, a revolução”
Para Ivana Bentes, “o decisivo é que o desejo, a criação, a colaboração vem antes e não se reduzem ao comando, transbordam os dispositivos, mesmo quando são capturadas, rastreadas, monetizadas. Para ser mais brutal eu diria que por enquanto precisamos também dos Facebooks e Googles para fazer a insurreição digital que será decisiva para inventarmos uma nova política para o século XXI. Pós-Google e Pós-Face”.
* Este texto foi construído a partir do diálogo com os professores André Lemos (Universidade Federal da Bahia – UFBA), Gisele Beiguelman (Universidade de São Paulo – USP), Ivana Bentes (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ) e Sérgio Amadeu da Silveira (Universidade Federal do ABC – UFABC).
Rodrigo Savazoni é Webproducer e realizador multimídia. Diretor do Laboratório Brasileiro de Cultura Digital e um dos criadores da Casa da Cultura Digital. Co-organizou os livros “Vozes da Democracia” (Imprensa Oficial, 2007) e “Cultura Digital.BR” (Azougue, 2009). Também foi professor do curso de pós-gradução de jornalismo on-line da PUC-SP. Em 2008, foi editor especial do estadao.com.br, responsável pelo desenvolvimento do projeto Vereador Digital, entre outros. Entre 2004 e 2007 conduziu a reformulação da Agência Brasil como chefe de redação