Arquivo da categoria: Análises

Problemas na telefonia? Procure o Papa

Se você pensa que a Anatel e as empresas de telefonia que atuam no Brasil abusam da nossa paciência simplesmente porque somos meros consumidores, saiba que a agência reguladora não pratica esse tipo de discriminação. Recentemente ela resolveu perturbar o Ministério Público Federal. É isso aí. Nem procurador da República está imune à capacidade da Anatel de tirar as pessoas do sério.

A briga tem a ver com os bens reversíveis da União, usados pelas teles para prestar o serviço de telefonia fixa. Escolhi este tema para inaugurar esta coluna no mês passado, exatamente pelo interesse coletivo que está por trás do assunto, talvez o mais espinhoso do setor. Esse conjunto de bens devem ser devolvidos ao Estado brasileiro em 2025. O problema é que a Anatel, que deveria fiscalizar e controlar o uso desses equipamentos, não faz ideia de onde eles estão e como estão sendo usados. Se nada for feito imediatamente, o Brasil corre o risco de tomar um calote bilionário.

A associação paulista de defesa do consumidor ProTeste resolveu comprar a briga e entrou com uma ação civil pública exigindo que a Anatel controle efetivamente esses bens e divulgue a lista para a sociedade. E o que a Anatel tem a dizer sobre isso? Que os bens reversíveis não são problema dela.

A agência reguladora mandou centenas de documentos para o Ministério Público Federal alegando, nada mais nada menos, não ter responsabilidade nesse assunto. Segundo a agência, quem sabe da lista é o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que fez o leilão de privatização em 1997. E a União? A União também acha que não tem nada a ver com essa briga. Pasmem, mas o representante da União diz que todos os assuntos de telecomunicações estão nas mãos da Anatel e, por isso, a União não tem que se meter na história.

Transcrevo aqui um trecho do parecer do procurador da República Marcus Marcelus, responsável pelo caso no MPF, porque eu mesma não encontrei palavras melhores para descrever minha indignação. "Pergunta-se: quem deveria ser demandado para discutir eventual nulidade do procedimento relativo ao novo regulamento dos bens reversíveis? O Papa?"

Boa pergunta, procurador. Pelo visto, só o Papa para organizar o setor de telecomunicações no Brasil, já que nem a Anatel, nem a própria União tem nada a ver com esse negócio. A mesma Anatel que se omite em responder na Justiça sobre as suas responsabilidades têm trabalhado com afinco na flexibilização das regras para permitir que as teles vendam o patrimônio público sem que ninguém as perturbe. Mas, veja bem, ela não tem nada a ver com isso… O descaso chega a tal ponto que a agência acabou caindo em contradição na própria documentação enviada ao MPF. Apesar de dizer que não é obrigada a controlar os bens – que na visão da autarquia, são das empresas privadas apesar de terem sido comprados com dinheiro dos contribuintes e dos assinantes da telefonia fixa – diz que o assunto é problema só dela e das concessionárias. O consumidor não tem nada que se meter nessa história.

Mas, vejamos, a briga é sobre um patrimônio público comprado com dinheiro que veio do bolso do cidadão, usado por concessionárias públicas que prestam um serviço público. Ainda assim, a Anatel acha que os consumidores são muito enxeridos e devem ficar quietinhos, agradecendo o serviço (de má qualidade) que lhes é prestado. Por outro lado, não tem problema as teles ficarem com o que não é delas, mas sim da Nação.

É chocante a dificuldade da Anatel de se conectar com os interesses dos consumidores. E, mais uma vez, não sou eu quem diz. Repito as palavras do procurador da República: "a Anatel nunca enxerga o consumidor nas relações jurídicas que busca regular".

Em seu parecer, o procurador Marcus Marcelus sugere que não vai deixar barata essa história e, se for necessário, o próprio MPF entrará com uma ação para garantir que o patrimônio público não se perca. Infelizmente, as coisas não estão indo bem para os consumidores na Justiça. O juiz João Luiz de Sousa, da 15ª Vara Federal, responsável pelo caso negou o pedido de liminar feito pela ProTeste para impedir que a Anatel flexibilize as regras e permita que os bens reversíveis sejam vendidos pelas teles. Pelo visto, talvez tenhamos que comprar mesmo uma passagem para Roma e bater um papinho com o Papa.

 

 

Publicado originalmente aqui.

 

* Mariana Mazza, jornalista e especialista em telecomunicações, é editora nacional da Band em Brasília e comentarista da BandNews e da Rádio Bandeirantes.

As relações ambíguas do governo com a mídia

Nesta semana, a revista Veja fez mais uma denúncia de corrupção contra um Ministro de Estado. É difícil saber o que há de verdade ali, pois a reportagem vale-se apenas do depoimento de uma testemunha, que em entrevista à Folha de S. Paulo diz não ter prova de nada. Mesmo assim, a matéria pauta os principais veículos de comunicação, com destaque para o Jornal Nacional, da Rede Globo.

O Ministro, por sua vez, sai atirando. Responde ao acusador no mesmo calibre. “Bandido” é a palavra que ricocheteia em todas as páginas e telas. O caso é nebuloso. A relação promíscua do Estado com ONGs e “entidades sem fins lucrativos” precisa sempre ser examinada com lupa potente. É um dos legados da privatização esperta dos anos 1990, feita através de terceirizações de serviços que deveriam ser públicos.

Aliados do governo tentam desqualificar não apenas a denúncia, mas o veiculo que a difunde. Volta o debate de que estaríamos diante de uma imprensa golpista, que não se conforma com a mudança de rumos operada no país desde 2003, que quer inviabilizar o governo etc. etc. A grande imprensa, por sua vez viciou-se em acusar todos os que discordam de seus métodos de clamarem pela volta da censura. Há muita fumaça e pouco fogo nisso tudo, mas faz parte do show. Disputa política é assim mesmo.

Maniqueísmo

É preciso colocar racionalidade no debate sobre os meios de comunicação no país, para que não deslizemos para maniqueísmos estéreis. Vamos antes enunciar um pressuposto.

A grande imprensa brasileira está concentrada em poucas mãos. Oito empresas – Globo, Bandeirantes, Record, SBT, Abril, Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e Rede Brasil Sul (RBS) – produzem e distribuem a maior parte da informação consumida no Brasil. O espectro vai se abrir um pouco nos próximos anos, para que as gigantes da telefonia mundial se incorporem ao time, através da produção de conteúdos para a TV a cabo. Mas o conjunto seguirá como um dos clubes mais fechados do mundo.

As corporações existentes há cinco décadas – Globo, Estado, Folha e Abril – apoiaram abertamente o golpe de 1964. Até hoje não explicaram à sociedade brasileira como realizam a proeza de falar em democracia tendo este feito em sua história.

Entre todos os meios, a revista Veja se sobressai como o produto mais truculento e parcial da imprensa brasileira.

Sobre golpismo, é bom ser claro. As classes dominantes brasileiras não se pautam pelas boas maneiras na defesa de seus interesses. Sempre que precisaram, acabaram com o regime democrático. Usaram para isso, à farta, seus meios de comunicação.


A imprensa é golpista?


No entanto, até agora não se sabe ao certo porque esta mídia daria um golpe nos dias que correm. O sistema financeiro colhe aqui lucros exorbitantes. A reforma agrária emperrou. Grandes empresários possuem assento em postos proeminentes do Estado – caso de Jorge Gerdau Johannpeter – ou têm seus interesses mantidos intocados.

Algumas peças não se encaixam na acusação de golpismo da mídia. Voltemos à revista Veja. Os apoiadores do governo precisam explicar porque a administração pública forra a publicação com vultosas verbas publicitárias, além de sempre prestigiarem suas iniciativas. Vamos conferir, pois está tudo na internet.

Veja tem uma tiragem de 1.198.884 exemplares (http://www.publiabril.com.br/tabelas-gerais/revistas/circulacao-geral), auditados pelo IVC. Alega ter um total de 8.669.000 leitores. Por conta disso, os preços de seus espaços publicitários são os mais altos entre a imprensa escrita. Veicular um reclame em uma página determinada sai por R$ 330.460. Já em uma página indeterminada, a dolorosa fica por R$ 242.200 (http://www.publiabril.com.br/marcas/veja/revista/precos).

Quem anuncia em Veja? Bancos, a indústria automobilística, gigantes da informática, monopólios do varejo e… o governo federal. Peguemos um exemplar recente para verificar isso.

Na edição de 12 de outubro – que noticiou a morte de Steve Jobs – havia cinco inserções do governo federal. Os anúncios eram do Banco do Brasil (página dupla), do BNDES, do Ministério da Justiça, da Agência Nacional de Saúde e da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Supondo-se que as propagandas não foram destinadas a páginas determinadas e que os preços de tabela foram efetivamente cobrados, teremos um total de R$ 1.525.200.

Exato: em uma semana apenas, o governo federal destinou R$ 1,5 milhão ao semanário dos Civita, a quem seus aliados chamam de “golpista”.

Prestígio político


Há também o prestígio político que o governo confere ao informativo.
Prova disso foi o comparecimento maciço de ministros de Estado e parlamentares governistas à festa de quarenta anos de Veja, em setembro de 2008. Nas comemorações, estiveram presentes o então vice-presidente da República, José Alencar, o ex-presidente do BC, Henrique Meirelles, o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, o ex-ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, o ex-ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, o ministro da Educação, Fernando Haddad e a senadora Marta Suplicy (confiram em http://veja.abril.com.br/veja_40anos/40anos.html).

E entre julho de 2010 e julho de 2011, nada menos que seis integrantes dos altos escalões governamentais concederam entrevista às páginas amarelas da revista. São eles: Dilma Rousseff, Aldo Rebelo, Cândido Vaccarezza, Antonio Patriota, General Enzo Petri e Luciano Coutinho.

 

Nenhum demonstrou o desprendimento e a sensatez do assessor especial da presidência, Marco Aurélio Garcia (então presidente interino do PT). Ao ser convidado para conceder uma entrevista a Diogo Mainardi, em novembro de 2006, deu a seguinte resposta: “Sr. Diogo Mainardi, há alguns anos – da data não me lembro – o senhor dedicou-me uma coluna com fortes críticas. Minha resposta não foi publicada pela Veja, mas sim, a sua resposta à minha resposta, que, aliás, foi republicada em um de seus livros. Desde então decidi não falar com a sua revista. Seu sintomático compromisso em não cortar minhas declarações não é confiável. Meu infinito apreço pela liberdade de imprensa não vai ao ponto de conceder-lhe uma entrevista”.


RBS, Olívio e Lula

As relações ambíguas do governo e dos partidos da chamada base aliada com a grande mídia não se restringem à Veja.

Entraram para a história a campanha de denúncias e desgaste sistemático que os veículos da RBS moveram contra o governo de Olívio Dutra (1999-2003), do PT, no Rio Grande do Sul. Ataques sem provas, calúnias, mentiras e todo tipo de baixaria foi utilizada para inviabilizar uma gestão que buscou inverter prioridades administrativas. No auge dos ataques, em 2000, o jornal Zero Hora, do grupo, fez um ousado lance de marketing. Convidou Luís Inácio Lula da Silva para ser colunista regular. Até a campanha de 2002, o futuro presidente da República escreveu semanalmente no jornal, como se não tivesse relação com as ocorrências locais. Quando abriu mão da colaboração, Lula afirmou que o jornal prejudicava seu c ompanheiro gaúcho (http://noticias.terra.com.br/imprime/0,85198,OI38721-EI342,00.html). O jornal ganhou muito mais que o ex-metalúrgico nessa parceria. Ficou com a imagem de um veículo plural e tolerante.

No mesmo ano, o ex-Ministro José Dirceu foi entrevistado pelo Pasquim 21, jornal lançado pelo cartunista Ziraldo. Naqueles tempos, as empresas de mídia enfrentavam aguda crise, por terem se endividado em dólares nos anos 1990. Com a quebra do real no final da década, os débitos ficaram impagáveis. Lá pelas tantas, Dirceu afirmou que salvar a Globo seria uma “questão de segurança nacional”.

Comemorando juntos

As boas relações com a grande mídia se mantiveram ainda nas comemorações dos 90 anos da Folha de S. Paulo, em janeiro deste ano. Estiveram presentes à festa (http://www1.folha.uol.com.br/folha90anos/879061-politicos-e-personalidades-defendem-a-liberdade-de-imprensa.shtml) a presidente Dilma Rousseff – convidada de honra, que proferiu discurso recheado de elogios ao jornal – a senadora Marta Suplicy, colunista do mesmo, Candido Vaccarezza, líder do governo na Câmara, os ex-Ministros José Dirceu e Marcio Thoma z Bastos e o prefeito de São Bernardo, Luiz Marinho. A Folha também recebe farta publicidade governamental, do Banco do Brasil, da Petrobrás, da Caixa Econômica federal, entre outras.

Nos momentos de dificuldade, dirigentes do governo procuram sempre a grande imprensa para exporem suas idéias. Foi o caso de Antonio Pallocci, em 3 de junho último. Acossado por denúncias de enriquecimento ilícito, o ex-Chefe da Casa Civil convocou o Jornal Nacional, para dar suas explicações ao público (http://www.youtube.com/watch?v=Y5m_wyahXjY).

O mesmo Antonio Palocci – colunista da Folha de S. Paulo entre 2009 e 2010 – dividiu mesas com Roberto Civita, Reinaldo Azevedo, Demetrio Magnoli, Arnaldo Jabor, Otavio Frias Filho e outros, em palestra no afamado Instituto Millenium, em março de 2010 (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16432). A entidade congrega empresários do ramo e seus funcionários e se opõe a qualquer tipo de regulação em suas atividades.

Os casos de proximidade do governo e seus partidos com a imprensa são extensos. Uma das balizas dessas relações é o bolo da publicidade oficial. Segundo a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom http://www.secom.gov.br/sobre-a-secom/publicidade/midia/acoes-programadas-em-r/copy3_of_total-geral-administracao-direta-todos-os-orgaos-indireta-todas-as-empresas), a receita publicitária oficial em 2010 foi de R$ 1.628.920.472,60. Incluem-se aí os custos de produção e veiculação de campanhas, tanto da administração direta quanto indireta. Ressalte-se aqui um ponto: é legítimo o governo federal valer-se da publicidade para se comunicar com a população. A maior parte do bolo vai para os grandes grupos do setor.


No caso das compras de livros didáticos feitos pelo MEC, para as escolas públicas, o grande beneficiário é o Grupo Abril, que edita
Veja (http://www.horadopovo.com.br/2010/dezembro/2921-08-12-2010/P4/pag4a.htm).

Reclamação e democratização

Apesar do PT, partido do governo, ter feito uma moção sobre a democratização das comunicações em seu último Congresso e do ex-ministro José Dirceu ter sido injustamente atacado recentemente pela Veja, é difícil saber exatamente que tipo de relação governo e partidos aliados desejam manter com os meios de comunicação. De um lado, como se vê, acusam a mídia de ser golpista. De outro, lhe dão todo o apoio.

Pode ser que tenham medo da imprensa. Mas o que não se pode é ter um duplo comportamento no caso. Diante da opinião pública falam uma coisa, enquanto agem de forma distinta na prática.


O ex-presidente Lula reclamou muito da imprensa em seu último ano de mandato. No entanto, “Não houve qualquer alteração fundamental no quadro de concentração da propriedade da mídia no Brasil entre 2003 e 2010”. Essa constatação é feita pelo professor Venício Lima em brilhante artigo, publicado no final de 2010 (http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4902).

As resoluções da Conferência Nacional de Comunicação, realizada em 2009, mofam em algum escaninho do Ministério das Comunicações. O Plano Nacional de Banda Larga, que deveria fazer frente ao monopólio das operadoras privadas, acabou incorporando todas as demandas empresariais. O projeto de regulação da mídia elaborado pelo ex-ministro Franklin Martins desapareceu da agenda.

Como se pode ver, o governo e seus partidos de sustentação convivem muito bem com a mídia como ela é. Têm muita proximidade e pontos de contato, apesar de existirem vozes isoladas dentro deles, que não compactuam com a visão majoritária.

Nenhum dos lados tem moral para reclamar do outro…

 

 

* Gilberto Maringoni é jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo)

 

 

A cobertura do Pan e a censura da Globo

Desde o último dia 14, quando teve início os jogos Pan-Americanos de Guadalajara, os brasileiros passaram a ser reféns de uma disputa que já se desenhava há algum tempo. Quando a Rede Globo perdeu para a sua principal concorrente, a Rede Record, os direitos de exclusividade nas transmissões do Pan, os temas relacionados à competição passaram a ser tratados como tabus pela emissora, que agora, durante o evento, faz questão de não se referir às conquistas do Brasil. Nas poucas vezes que noticiou o evento, usou de forma indevida as imagens, retirando a logomarca da emissora detentora dos direitos de transmissão.

Vale aqui deixar claro que o problema que envolve a atual cobertura do Pan-Americano de Guadalajara não é apenas uma questão de disputa comercial entre as emissoras. A ridícula cobertura do evento feita pelo maior conglomerado de mídia do país, além de um atentado à inteligência do público e um desrespeito descomunal a sua necessidade de informação, é também um atentado à legislação nacional.

Graças a um forte movimento nacional que luta pela democratização da comunicação no Brasil, que discute atualmente um novo marco regulatório para as comunicações e que foi responsável pela realização da I Conferência Nacional de Comunicação, em 2009, torna-se cada vez mais conhecida a condição de concessionária, permissionárias ou autorizadas de serviço público de que gozam as emissoras de rádio de televisão do país. E não de donas. Mas isso precisa ficar ainda mais claro para um maior número de pessoas para que toda população saiba que quando questionamos a cobertura do Pan pela Rede Globo estamos falando não somente de uma opção da emissora pela omissão, mas de uma violação do direito à informação, garantido pelo artigo 5° da Constituição Federal Brasileira.

Televisão é concessão pública

A exploração dos serviços de radiodifusão, como são conhecidas as transmissões de rádio e televisão, são outorgadas pelo governo por meio de concessões, permissões e autorizações para transmissão dos sinais que dão origem às imagens e sons que recebemos de veículos de comunicação. Ser concessionário, permissionário ou autorizado dá direito a um determinado grupo transmitir informações e entretenimento à população, e prevê alguns deveres.

A Constituição Brasileira atribui ao acesso à informação a condição de direito, e uma das formas de garantir esse direito é por meio dos meios de comunicação. Empresários, imbuídos de uma responsabilidade pública de prestar, dentre outros serviços, o da informação, concorrem a concessões de meios de comunicação. Como não poderia ser diferente, ao receberam as outorgas empresas ou grupos econômicos devem cumprir preceitos constitucionais e obrigações legais.

Entre os deveres estabelecidos pela Constituição para os prestadores dos serviços de comunicação estão alguns princípios como os de cumprir com “as finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas da programação” bem como “promover a cultura nacional”. A discussão sobre os direitos de transmissão de eventos esportivos não retira das emissoras o dever de prestar informação ao público, mesmo quando a emissora não é a detentora dos direitos de transmissão de tais eventos. Desde que sejam de interesse público está mantida a obrigatoriedade, ou seja, o respeito com o público.

O que a Rede Globo vem fazendo com os Jogos Pan-Americanos de Guadalajara constitui violação também do artigo 220 da Constituição Federal, que abre na Carta o capítulo da Comunicação Social e que diz ser “vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Ao contrário do prega em seus manuais e editoriais, a Globo é hoje uma promotora da censura, não da censura oficial e de governo que ela tanto se diz contrária, mas a censura interna, dos veículos, dos grupos, a censura que é ideológica, política e econômica. Assusta ver os profissionais deste conglomerado serem expostos a isso e se calarem. Não dá para dizer que eles não sabem que esta postura se volta contra o direito que eles deveriam ter garantido de exercer livremente a sua profissão, para cumprir com o seu dever.

É revoltante saber que este mesmo grupo daqui a muito pouco vai tentar taxar de censura – como já vem fazendo com o projeto – uma possível regulação da comunicação. Uma regulação, que ao contrário do que a Rede Globo faz questão de repassar para seus telespectadores, quer justamente criar mecanismos para que a Constituição seja, de fato, cumprida e que situações como estas de violações claras possam ser, de fato, punidas. Os meios de comunicação devem lembrar, e toda a sociedade deve saber, que quem não cumpre com seus deveres de concessionário de um serviço público deve responder por isso. Seja uma escola que não cumpre com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, seja um grupo de mídia que não cumpre com o seu dever de informar. E é com essa cobertura do Pan que a Rede Globo evidencia a sua condição de grande censora e violadora do direito à informação e denuncia ainda o porquê do seu medo de uma regulação atualizada e decente. Quem pratica a censura tem como característica ditar as suas próprias leis e não ser guiado ou regulado pelos interesses público.

 

 

* Mariana é jornalista, professora de Ética e de Legislação e Direito à Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB. Membro do Laboratório de Políticas de Comunicação e do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

 

 

 

 

Mídia, regulação e democracia

Há temas malditos na mídia. Um dos mais, a regulação da mídia. Ou a democratização da mídia. Há uma óbvia interdição do debate. Seja pelo silêncio, que fala muito, seja pelo estardalhaço, quando os grandes meios sentem ameaças rondando seus privilégios. A qualquer movimento da sociedade, que pretenda circunscrevê-los ao Estado de Direito, submetê-los às regras democráticas, eles saltam como se fossem amantes da liberdade, e avessos a quaisquer autoritarismos. Como se regulação democrática combinasse com restrições antidemocráticas. Como se no resto do mundo democrático a regulação fosse exceção, e não regra, como de fato é.

Esse tema maldito é o assunto do professor, sociólogo e jornalista Venício Artur de Lima em seu livro Regulação das Comunicações – História, Poder e Direitos. Venício é dessa espécie de intelectual que começa a rarear – não sei se o denomino engajado, que me parece um termo muito antigo, ou se o chamo de intelectual orgânico, talvez uma conceituação mais acertada, até por suas evidentes aproximações gramscianas, de onde provém o conceito. Poderia ainda recorrer a outro dito de Gramsci – pessimismo da inteligência, otimismo da vontade – para aproximar-me de sua posição diante do mundo.

Se alguém conversar com ele, e se ler o livro, observará sempre essa atitude. Rigoroso no diagnóstico, ele não para nele. Desdobra seu raciocínio na linha da intervenção política, a política pensada em sentido amplo. Não embarca no território das perplexidades, do lamento diante das dificuldades. Quer enfrentar os desafios, e sabe que só podem ser enfrentados pela política, pelo movimento da sociedade. Não há correlação de forças imutável. Pode ser mudada se a sociedade se movimenta. Parece ser sempre esse o raciocínio dele. E esse livro segue o mesmo caminho, persegue essa filosofia, digamos assim. Chamá-lo de um livro militante poderia parecer agressivo num tempo em que a palavra anda meio em desuso. Mas ouso fazê-lo, no sentido de que trabalha, teórica e praticamente, a favor da regulação da mídia, sempre fundado em argumentos sólidos.

Venício nunca se esconde sob o manto da imparcialidade, que, costumo dizer, deve ser apanágio dos deuses. Toma posição, sempre. E nesse livro toma a posição explícita de defender a importância da regulação da mídia como requisito essencial para a afirmação da democracia no Brasil. Há um óbvio déficit democrático no campo da mídia no país. Estamos atrasados em relação ao mundo, inclusive aos nossos parceiros mais próximos da América Latina, como a Argentina, que muito recentemente aprovou a Lei de Meios Audiovisuais, que regulou democraticamente os meios de comunicação, e o fez nos marcos do Estado de Direito.

Propriedade cruzada

História. Poder. Direitos. São os títulos que marcam a divisão das três partes do livro. Na primeira, o autor analisa o governo Lula e a política de comunicações, o tratamento do tema na Constituinte de 1988 e, ainda, alguns casos exemplares na relação entre a imprensa e o poder político. Considera que o governo Lula não foi capaz de pôr em prática a maioria das políticas públicas que a sociedade civil – ou “não atores” – avaliava como avanços no processo de democratização. No entanto, reconhece alguns, como a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, o lançamento do Plano Nacional de Banda Larga e a regionalização das verbas de publicidade oficial.

Na segunda parte, trata das concessões de rádio e TV (serviço público versus interesse privado), do princípio da complementaridade, do coronelismo eletrônico de novo tipo, da relação entre a grande mídia e a nova mídia na política brasileira e, por último, da incapacidade do Estado brasileiro de disseminar informações corretas face ao sistema privado de comunicação quando se trata, por exemplo, de um surto como o da febre amarela silvestre em 2007-2008. Destaco aqui o capítulo sobre o princípio da complementaridade entre o sistema privado, público e estatal, previsto na Constituição (artigo 223), tão pouco observado nas discussões sobre a mídia no Brasil.

Não custa lembrar que a Constituição de 1988 é bastante avançada no capítulo da Comunicação. No entanto, como praticamente nada foi regulamentado, termina por ser letra morta. Ao menos até o momento em que um novo marco regulatório se imponha. Ao final do governo Lula, o então ministro Franklin Martins fez avançar um anteprojeto de marco regulatório, hoje nas mãos do ministro Paulo Bernardo, que prometeu enviá-lo ao Congresso logo que a presidenta Dilma o examine. Ainda não sabemos quando isso ocorrerá. Tal marco é a esperança dos que lutam pela democratização da mídia no Brasil.

Na terceira e última parte, Venício Lima trata de comunicação, poder e cidadania; do direito à comunicação, cuja alternativa seria a pluralidade, e do direito à comunicação no III Programa Nacional de Direitos Humanos (III PNDH), em que analisa a posição dos grupos de mídia e a liberdade de expressão. Destaco aqui a pergunta feita por ele, ao final do livro, sobre quem ameaça quem. Será o III PNDH que ameaça a liberdade de expressão e os grupos dominantes da mídia? Ou a ameaça viria desses grupos dominantes que não aceitam nem os dispositivos constitucionais referentes ao tema e consideram o direito à comunicação uma afronta a seus interesses, e por isso atacam qualquer tentativa de regulamentação?

Venício considera, acertadamente – e com essas formulações finaliza seu belo trabalho –, que o direito à comunicação significa hoje, além do direito à informação, garantir a circulação da diversidade e da pluralidade de ideias existentes na sociedade, a universalidade da liberdade de expressão individual. Tal garantia deve ser buscada “externamente”, através da regulação do mercado (sem propriedade cruzada e sem oligopólios, dando prioridade à complementaridade do sistema público, privado e estatal). E também “internamente” à mídia, pelo cumprimento dos Manuais de Redação que prometem (mas não praticam) a imparcialidade e a objetividade jornalística.

Ferramenta teórica

“E tem também que ser buscada na garantia do direito de resposta como interesse difuso, no direito de antena e no acesso universal à internet, explorando suas imensas possibilidades de quebra da unidirecionalidade da mídia tradicional pela interatividade da comunicação dialógica.”

Digo sem medo de errar: os que se interessam pela democracia em seu sentido substantivo, os que se preocupam com a natureza concentrada da mídia no Brasil, os que esperam aprofundar os caminhos pelos quais se deva transitar para combater o monopólio do discurso jornalístico, os professores e estudantes de comunicação, parlamentares devem ler o livro de Venício. É uma leitura indispensável. Como ferramenta teórica. Como instrumento dessa luta – que é política.

O Pan olimpicamente ignorado

A menos de uma semana do início dos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara , o assunto é olimpicamente ignorado pelos veículos das Organizações Globo. O fato de a emissora de TV do Jardim Botânico não ter os direitos de transmissão da competição tem feito com que o evento seja simplesmente tratado como dispensável na pauta do seu noticiário.

Pior que não ter comprado os direitos de transmissão é ter perdido a exclusividade para o grupo de comunicação que mais vem “incomodando” com índices crescentes de audiência. Por isso, pelos lados da Record, o Pan 2011 é só festa e exaltação. São reportagens nos telejornais, chamadas a todo o momento, um batalhão de profissionais mobilizados e espaços generosos na programação da emissora. No R7 , o site do grupo, há uma seção dedicada à cobertura da competição , fartamente ilustrada e constantemente abastecida.

No G1 e no seu braço mais esportivo – SportTV – é gelo puro; idem no eBand , da concorrente que tem no esporte um dos carros-chefes de sua programação.

O dito e o feito

Alguém aí pode achar natural que não se coloque azeitona na empada alheia, já que estamos tratando de competidores em audiência e de rivalidade de mercado. Mas informação é um bem diferente de azeitonas em conserva ou empadas. Informação é uma mercadoria de alto valor agregado, que não se degrada com a sua difusão ou compartilhamento e que, muitas vezes, auxilia o seu portador a tomar decisões, escolher caminhos, reorientar-se no mundo. Isto é, informação é um bem de finalidade pública, embora seja cada vez mais frequente que empresas controladas por grupos privados a produzam e a façam circular. Independente disso, o produto carece de cuidados e atenções distintas.

Então, cobrir o Pan de Guadalajara é mais do que rechear a empada alheia. É garantir que o público tenha acesso a informações que julga relevantes e interessantes. Afinal, convenhamos, não se pode ignorar os Jogos Pan-Americanos. É uma competição tradicional – existe desde 1951 –, é importante – pois funciona como uma prévia regionalizada dos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012 – e é abrangente por ser continental e reunir 29 modalidades esportivas. Esses argumentos bastariam para colocar o evento na pauta de qualquer veículo de comunicação que se preze.

No caso das Organizações Globo, ignorar a efeméride é simplesmente deixar de lado seus recém-anunciados Princípios Editoriais . No documento, os veículos do grupo se comprometem a produzir um jornalismo calcado no que consideram ser os atributos da informação de qualidade: isenção, correção e agilidade. No item que trata de isenção, os princípios são bastante claros, e cito alguns trechos que colidem com o atual comportamento do grupo:

… “(d) Não pode haver assuntos tabus. Tudo aquilo que for de interesse público, tudo aquilo que for notícia, deve ser publicado, analisado, discutido”…

“(n) As Organizações Globo são entusiastas do Brasil, de sua diversidade, de sua cultura e de seu povo, tema principal de seus veículos”…

“p) É inadmissível que jornalistas das Organizações Globo façam reportagens em benefício próprio ou que deixem de fazer aquelas que prejudiquem seus interesses”

Este é um caso típico de descolamento entre o dito e o feito. Claro que as Organizações Globo podem estar preparando coberturas especiais sobre o evento ou correndo para apresentar um material diferenciado às suas audiências. Tomara. Mas se for assim, os veículos do conglomerado estarão atrasados, contrariando outra lei de ouro de seus Princípios Editoriais, a agilidade.

 

Retirado do blog do autor .

*Rogério Christofoletti é jornalista e professor da Universidade Federal de Santa Catarina