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Conteúdo da TV paga: uma questão de escolha

Em 2011, o Congresso Nacional aprovou a Lei 12.485/11, conhecida como a nova lei da TV por assinatura. O escopo da nova legislação é bastante amplo, mas há dois aspectos fundamentais: a abertura do mercado de distribuição às operadoras de telefonia e o estabelecimento de cotas de produção e programação nacional e independente nos canais. Contrários à lei e derrotados no legislativo, os Democratas (DEM) entraram com pedido de inconstitucionalidade no Superior Tribunal Federal (STF). De carona nessa ação, a SKY, do megaempresário norte-americano Jonh Malone, convocou seus assinantes via email, internet e pelo próprio canal de TV, a se manifestarem contra a lei.

Um dos pontos que a propaganda veiculada pela SKY levanta é que a nova lei da TV por assinatura fere a liberdade de escolha do cliente. Então vejamos. A SKY me oferece a enorme diversidade de… três pacotes iniciais. A cada um eles eu posso acrescentar um grande leque de outros … três pacotes adicionais. Não tenho a opção de ter só canais esportivos, não posso ter só filmes, não posso escolher aleatoriamente dois canais de jornalismo, um de filmes e um de variedades. Caso eu não queira ver quatro horas de venda de tapete, anéis e aparelhos milagrosos de redução da barriga na Fox pela manhã ou de madrugada, a empresa nada tem a ver com isso. Não posso pagar menos se não quiser um canal que só passa reprise. E se eu quiser ver a Libertadores da América, da Fox Sports, que eu sei que tenta vender os direitos de exibição pra SKY, não adianta; a empresa já disse que não quer comprar. A liberdade de escolha na SKY é realmente impressionante.

Cotas e o intervencionismo de Estado

A SKY também acusa a lei de criar cotas como um mecanismo terrível de intervenção estatal. Não custa lembrar que os modelos de negócios do audiovisual no mundo foram construídos de forma estratégica e engenhosa pelos Estados Unidos de modo que, até hoje, seis dos maiores produtores de conteúdo audiovisual mundial são norte-americanos. Mais de 80% de todo conteúdo de filmes, séries, documentários e desenhos animados veiculados nos canais pagos no Brasil é de origem norte-americana. Esse não é um privilégio brasileiro. Com raras exceções, a indústria audiovisual de muitos países, incluindo os desenvolvidos, é dominada pelos enlatados estadunidenses. Por isso, desde o final da década de 80, a maior parte dos países europeus adotou um sistema de cotas que protege o conteúdo local. Mesmo nos EUA, houve tempos em que a cota para produção independente era altíssima e havia regras rigorosas para impedir que poucas empresas dominassem o mercado.

Quase 30 anos depois, no século XXI, o Brasil finalmente conseguiu aprovar uma lei de proteção ao conteúdo nacional e de estímulo à produção independente. Ao contrário do mundo inteiro, esse mecanismo não se aplica ao sistema como um todo, abarcando também a TV aberta, mas garantiu pequenos avanços na TV por assinatura. E veja que coisa chocante. A lei obriga que os canais considerados de espaço qualificado, ou seja, de filmes, séries, documentários, programas de variedades e reality shows, passem, por semana, 3h30 de conteúdo nacional, sendo 1h45 de conteúdo nacional independente. Faça você mesmo as contas. Em nome da valorização da cultura nacional e da diversidade, a lei obriga que um canal passe meia hora por dia de um filme, ou uma série, ou um desenho, ou um programa de variedade brasileiros, sendo 15 minutos de produção independente. O cumprimento da cota é semanal e pode ser realizado num só dia, ou em dias alternados, a critério das programadoras.

A cota obrigatória para os países que compõem a União Europeia é de que 50% do conteúdo veiculado seja europeu. A “absurda” intervenção do Estado na TV por assinatura no Brasil para garantir a veiculação de conteúdo nacional é uma “estrondosa” cota de 2,08% por semana. Em relação ao independente esse valor cai pela metade. No Canadá, 75% do conteúdo das televisões abertas deve ser composto por produções de origem canadense nos gêneros drama, comédia e documentário longa-metragem, assim como shows de premiações que celebrem o talento criativo dos canadenses. E é a nossa democracia que está ameaçada pela intervenção estatal.

Cotas de conteúdo, em qualquer lugar do mundo, mas fundamentalmente em democracias mais consolidadas e avançadas, é um mecanismo fundamental de desenvolvimento da indústria audiovisual local, de proteção e difusão da cultura nacional e de garantia do pluralismo e da diversidade. No Brasil, qualquer tentativa de avançar nesse sentido é vista como censura, ditadura ou intervencionismo estatal. Isso porque os mesmos grupos responsáveis pela difusão da informação controlam o que deve e o que não deve ser conhecido ou debatido pelos brasileiros. Eles não querem discutir o setor que controlam. Mais do que isso, utilizam o canal de comunicação que possuem para desinformar a população e defender seus próprios interesses. É esse o caso da propaganda da SKY, que, não custa lembrar, enviou mensagem sobre o perigo da lei para seus quase 3,8 milhões de assinantes. Sem contar a sistemática veiculação de uma propaganda mentirosa nos canais da empresa e na internet.

Ainda bem, os mitos de que a obra audiovisual nacional não presta, de que tudo que fazemos é um lixo e de que o Brasil não produz conteúdo de qualidade está cada vez mais distante do imaginário da população. Junto com um momento de desenvolvimento econômico, o país vive uma febre de auto-estima, de auto-valorização que também se reflete na produção audiovisual. Desenhos animados como Meu Amigãozão, Peixonautas, Tromba Trem e Turma da Mônica ganham a simpatia de brasileirinhos e de outras crianças mundo afora. Filmes e séries nacionais já são comuns em alguns canais de TV paga, inclusive estrangeiros. Documentários sobre a nossa diversidade cultural e regional são cada vez mais vistos e comemorados.

É hora de cada brasileiro assumir que ter mais Brasil e mais conteúdo independente na TV é bom para a difusão na nossa identidade entre nós mesmos, e para o mundo, além de ingrediente essencial para a democracia. É hora de desconfiar profundamente de quem utiliza o discurso da liberdade de escolha para fazer terrorismo mentiroso com seus clientes e atacar leis que buscam dar visibilidade a nossa riqueza e diversidade.

Carolina Ribeiro é jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Crítica à crítica (e aos críticos) da mídia

O professor Gilberto Maringoni, em artigo recente amplamente divulgado pela blogosfera que compõe a chamada “mídia alternativa”, lembrou aos maiores críticos da “grande mídia” que esta era em grande parte financiada pelo governo federal, por meio de cotas de patrocínio que, apenas para a Veja, rendiam perto de 1,5 milhão de reais por semana. Sua intenção era a de criticar os contumazes críticos da mídia que, mais ou menos alinhados com o governo federal e com o PT, gastavam horas de seus dias a enxovalhar a mídia, seja chamando-a de PIG (Partido da Imprensa Golpista) ou, agora, de PUM (Partido Único da Mídia – com direito a trocadilho proposital).

O primeiro termo, popularizado pelo jornalista Paulo Henrique Amorim, soa ainda mais irônico se contarmos que este trabalha para um notório membro do… PIG: a Rede Record, do bispo Edir Macedo. O segundo termo vem sendo usado pelo insuspeito professor Laurindo Lalo Leal Filho e, ao menos de sua parte, há consistência no uso do termo.

Não se trata de debater a validade dos termos ou mesmo o caráter da grande mídia, mas talvez de se entender quais interesses estão por trás da crítica. Não posso colocar em dúvida a idoneidade e honestidade do professor Lalo, mas começo a suspeitar de jornalistas alinhados à grande mídia e mesmo que recebem – por um meio ou por outro – financiamento estatal (caso, por exemplo, do sempre presente e atuante Luis Nassif, funcionário da TV Brasil) e que gastam boa parte de seu tempo e de seu espaço em seus respectivos blogs/portais para criticar veículos “inimigos” e políticos não-alinhados com o atual governo.

É sintomático o desaparecimento de certas críticas a políticos que passam para o lado governista e é notável o tom brando empregado contra o governo quando de atuações semelhantes ou mesmo mais acintosas que as do governo anterior, ou mesmo totalmente diversas daquelas prometidas em campanha.

Timidez patológica

Há, por parte de um crescente contingente daqueles defensores da “mídia livre”, um alinhamento automático com o governo federal que mascara erros, que abranda problemas e realiza uma defesa intransigente e inconsciente de todas ou da maior parte das atitudes governamentais, sem matizes ou ponderações. Há, dentre muitos governistas que continuam a reclamar da necessidade de uma democratização das comunicações, profundo silêncio sobre o emprego de nossos impostos em revistas da Editora Abril, mas ao mesmo tempo esses mesmos indivíduos que silenciam neste assunto reclamam e bradam contra as compras e contratos feitos entre o governo de São Paulo (do PSDB) e a mesma editora.

Está claro que, em ambos os casos, há o que se investigar e reclamar, mesmo repudiar, mas apenas um dos casos, ou um dos lados, acaba veementemente criticado.

Fala-se muito que as redes de TV, concessões públicas, têm um lado. Alguns afirmam claramente que Globo, Band e outras apoiaram claramente o candidato derrotado tucano José Serra nas eleições passadas, mas quando são perguntados sobre por que o governo federal não se move para rever as regras para concessões públicas, calam-se – dão desculpas pouco críveis ou simplesmente apelam para o velho chavão da “governabilidade”. Termo este, aliás, usado para explicar toda derrapada ou desastre patrocinado pelo governo federal. Se faz algo, merece aplausos, se errou, faz-se silêncio ou tira-se da cartola a palavrinha mágica que tudo explica.

Há, dentre os vários críticos da mídia, uma falta patológica de autocrítica e um excesso de subserviência e mesmo de umbiguismo. Chego até a considerar um certo duplipensar. Para mudar a mídia, é preciso constante pressão, mas o que vemos é uma timidez patológica quando o assunto vira um problema para seu próprio lado. Podemos avançar apenas até o ponto em que os interesses de um ou outro grupo – e são cada vez mais grupos – passam a ser a “vítima”. Sempre, claro, que o grupo se coloca ao lado do governo.

Enquanto os críticos da mídia forem apenas isso – críticos daquilo que não gostam, do outro lado – e não críticos de todo um conjunto de instituições, indivíduos, partidos e indústria, não haverá qualquer mudança significativa no caminho da democratização das comunicações no país.

Raphael Tsavkko Garcia é jornalista, blogueiro e mestrando em Comunicação

Medalha no peito da verdade

A SKY colocou no ar um anúncio com a participação de atletas brasileiros afirmando que uma nova lei que afeta a TV por assinatura não considera o esporte como conteúdo nacional. Atletas patrocinados pela empresa mostram-se indignados pelo fato do “esporte, uma paixão nacional dos brasileiros, não ser considerado conteúdo nacional”. Não dá para saber exatamente se a participação dos jogadores no comercial faz parte do contrato de patrocínio ou de um terrorismo da empresa “alertando” sobre os “riscos” da nova lei para o esporte brasileiro. Talvez as duas coisas juntas. O fato é que a propaganda é leviana e enganosa e não explica o que de fato está envolvido com a nova legislação.

A Lei em questão é a 12.485/11, que dispõe sobre o Serviço de Acesso Condicionado (SeAC) e vem sendo tratada de forma genérica como a nova lei da TV por assinatura. Seu escopo é amplo, mas uma das questões centrais é o estímulo financeiro e a definição de cotas obrigatórias para produção de conteúdo regional, nacional e independente na TV paga. Há dois tipos de cotas: a que incide sobre os canais de espaço qualificado e a que incide sobre os pacotes a serem oferecidos ao assinante.

Canais de espaço qualificado, de acordo com regulamento proposto pela Agência Nacional do Cinema (Ancine), são aqueles que exibem majoritariamente “obras audiovisuais seriadas ou não seriadas dos tipos ficção, documentário, animação, reality show, videomusical e de variedades realizada fora de auditório”.

 

Logo, a cota que obriga os canais de espaço qualificado a oferecerem 3h30 de conteúdo nacional por semana, sendo metade dele realizado por empresas independentes, em nada afeta os canais de conteúdo esportivo. Eles permanecem exatamente como estão, com total liberdade para seguir com a programação que bem entender. A decisão de valorizar o esporte nacional cabe exclusivamente à empresa que define o conteúdo do canal. A lei simplesmente não afeta essa questão.

O mesmo acontece em relação a cota de canais obrigatórios nos pacotes. Para estimular que surjam mais canais com conteúdo nacional, a Lei obriga às operadoras reservarem no mínimo 1/3 dos canais de conteúdo qualificado a canais brasileiros de conteúdo qualificado. Mais uma vez não está em questão a presença de conteúdo esportivo para o cumprimento de cotas. As cotas referem-se apenas ao conjunto de canais que veiculam um tipo de conteúdo com valor artístico agregado, estimulando que haja mais filmes, séries, animações e programas e variedades brasileiros e independentes. As cotas, portanto, não disputam o espaço de nenhum canal esportivo, nacional ou estrangeiro.

O tipo de mensagem veiculada pela SKY, que, de acordo com informações do mercado, possui quase 3,8 milhões de assinantes no Brasil, desinforma seus clientes e presta um enorme desserviço à população brasileira ao não esclarecer que a nova Lei em nada afeta os canais esportivos. Mais do que isso, expõe atletas respeitados e de renome ao ridículo de defender algo que vai na direção contrária do interesse nacional. Eles, talvez ingenuamente, não estão ali defendendo o esporte, mas sim a ganância de uma empresa que tem a pachorra de utilizar seu poder de mercado e seu patrocínio para enganar seus clientes e a sociedade.

 

*Carolina Ribeiro é jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

O extermínio das falas regionais na Globo

Mais de uma vez eu já havia notado que os apresentadores de telejornalismo têm uma língua diferente da falada no Brasil. Mas a coisa se tornou mais séria quando percebi que, mesmo fora do trator absoluto do Jornal Nacional, os apresentadores locais, de cada região, também falavam uma outra língua. O que me despertou foi uma reportagem sobre o trânsito na Avenida Beberibe, no bairro de Água Fria, que tão bem conheço. E não sei se foi um despertar ou um escândalo. Olhem: http://globotv.globo.com/rede-globo/netv-1-edicao/v/falta-de-sinalizacao-em-avenida-movimentada-do-recife-traz-perigo-para-pedestres/1772082/

Na ocasião, o repórter, o apresentador, as chamadas, somente chamavam Beberibe de Bê-Bê-ribe. O que era aquilo? É histórico, desde a mais tenra infância, que essa avenida sempre tenha sido chamada de Bibiribe, ainda que se escrevesse e se escreva Beberibe.

Ligo para a redação da Globo Nordeste. Um jornalista me atende. Falo, na minha forma errada de falar, como aprenderia depois:

– Amigo, por que vocês falam bê-bê-ribe, em vez de bibiribe?

– Porque é o certo, senhor. Bé-Bé é Bebê.

– Sério? Quem ensina isso é algum mestre da língua portuguesa?

– Não, senhor. O certo quem nos ensina é uma fonoaudióloga.

Ah, bom. Para o certo erram de mestre. Mas daí pude ver que a fonoaudióloga como autoridade da língua portuguesa é uma ignorância que vem da matriz, lá no Rio. Ou seja, assim me falou a pesquisa:

“Em 1974, a Rede Globo iniciou um treinamento dos repórteres de vídeo… Nesse período a fonoaudióloga Glorinha Beuttenmüller começou a trabalhar na Globo. Como conta Alice-Maria, uma das idealizadoras do Jornal Nacional: “sentimos a necessidade de alguém que orientasse sua formação para que falassem com naturalidade”.

Foi nesta época, que Beuttenmüller, começou a uniformizar a fala dos repórteres e locutores espalhados pelo país, amenizando os sotaques regionais. No seu trabalho de definição de um padrão nacional, a fonoaudióloga se pautou nas decisões de um congresso de filologia realizado em Salvador, em 1956, no qual ficou acertado que a pronúncia-padrão do português falado no Brasil seria do Rio de Janeiro”. (Destaque meu.)

Mas isso é a morte da língua. É um extermínio das falas regionais, na voz dos repórteres e apresentadores. Os falares diversos, certos/errados aos quais Manuel Bandeira já se referia no verso “Vinha da boca do povo na língua errada do povo/ Língua certa do povo”, ganha aqui um status de anulação da identidade, em que os apresentadores nativos se envergonham da própria fala. Assim, repórteres locais, “nativos”, se referem ao pequi do Ceará como “pê-qui”, enquanto os agricultores respondem com um piqui.

De um modo geral, as vogais abertas, uma característica do Nordeste, passaram a se pronunciar fechadas: nosso é, de “E”, virou ê. E defunto (difunto, em nossa fala “errada”) se transformou em dê-funto. Coração não é mais córa-ção, é côra-ção. Olinda, que o prefeito da cidade e todo olindense chamam de Ó-linda, nos telejornais virou Ô-linda. Diabo, falar Ó-linda é histórico, desde Duarte Coelho. Coisa mais bela não há que a juventude gritando no carnaval “Ó-linda, quero cantar a ti esta canção”. Já Ô-linda é de uma língua artificial, que nem é do sudeste nem, muito menos, do Nordeste. É uma outra coisa, um ridículo sem fim, tão risível quanto os nordestinos de telenovela, com os sotaques caricaturais em tipos de físicos europeus.

Esse ar “civilizado”de apresentadores regionais mereceria um Molière. Enunciam, sempre sob orientação do fonoaudiólogo, “mê-ninô”, “bô-necÔ”, enquanto o povo, na história viva da língua, continua com miní-nu e buneco. O que antes era uma transformação do sotaque, pois na telinha da sala os apresentadores falariam o português “correto”, atingiu algo mais grave: na sua imensa e inesgotável ignorância, eles passaram a mudar os nomes dos lugares naturais da região.

O tão natural Pernambuco, que dizemos Pér-nambuco, se pronuncia agora como Pêr-nambuco. E Petrolina, Pé-tró-lina, uma cidade de referência do desenvolvimento local, virou outra coisa: Pê-trô-lina. E mais este “Nóbel” da ortoépia televisiva: de tal maneira mudaram e mudam até os nomes das cidades nordestinas, que, acreditem, amigos, eu vi: sabedores que são da tendência regional de transformar o “o” em “u”, um repórter rebatizou a cidade de Juazeiro na Bahia. Virou JÔ-azeiro! O que tem lá a sua lógica: se o povo fala jUazeiro, só podia mesmo ser Jô-azeiro.

Urariano Mota é pernambucano, jornalista e autor de "Soledad no Recife", recriação dos últimos dias de Soledad Barret, mulher do cabo Anselmo, executada pela equipe do Delegado Fleury com o auxílio de Anselmo.

Políticas para além de um decreto

Com o propósito de atualizar e de estabelecer regras mais rígidas voltadas às concessões de rádio e TV comerciais, o governo federal, por meio do decreto nº 7.670, de 16 de janeiro deste ano, alterou alguns artigos do decreto nº 52.795, de 1963. O dispositivo, ainda que demasiadamente arcaico, regulamenta os serviços de radiodifusão e determina diversas obrigações aos concessionários e ao poder concedente (neste caso, o Executivo federal). Entre elas, estão os critérios usados no processo de licitação das outorgas a fim de avaliar as propostas no que tange ao conteúdo. Essa é, talvez, uma das mudanças mais importantes trazidas no bojo do novo decreto.

Isso porque, na avaliação das propostas de conteúdo, aumentou o peso do tempo destinado a programas jornalísticos e educativos (máximo de 20 pontos cada); a programas culturais, artísticos, educativos e jornalísticos produzidos na localidade onde opera a emissora outorgada – produção local (máximo de 30 pontos); e a programas produzidos por empresas sem vínculo com concessionárias de radiodifusão – produção independente (máximo de 30 pontos). Este último critério não figurava no texto do decreto original.

Na avaliação do Blog do Planalto, em matéria intitulada “Governo define novas regras para o serviço de radiodifusão no país”, “(…) a legislação passa a atender uma diretriz do artigo 221 da Constituição Federal de valorização da produção local e independente, com o objetivo de ampliar a geração de empregos e fomentar um mercado produtor nas cidades sede das novas outorgas”.

Conteúdo jornalístico e educativo

Mas não é bem assim. O artigo constitucional mencionado acima estabelece os princípios a serem obedecidos pelas emissoras de rádio e TV no que diz respeito à programação, que deve dar preferência a conteúdos educativos, artísticos, jornalísticos e culturais; além de dar espaço a produções regionais e independentes. Todavia, tal dispositivo ainda carece de regulamentação, fato que impede a imposição de cotas de conteúdo destinadas a produções locais e independentes, por exemplo, a serem veiculadas nas emissoras de rádio e TV.

Uma coisa é a imposição de critérios de programação restritos unicamente à disputa licitatória, com o intuito de avaliar propostas e classificá-las. Outra, bem diferente, é a definição de dispositivos legais que obriguem as empresas radiodifusoras em plena exploração de sua concessão a concederem espaço a produções regionais e independentes para, assim, poderem cumprir o que determina o artigo 221 da Carta Magna. Quanto a isso, pelo menos em tese, o novo decreto não altera em nada a realidade brasileira, visto que o sistema de classificação de propostas de programação por pontos já existe desde 1963, data em que foi publicado o decreto nº 52.795.

O que o decreto de 2012 trouxe de “novidade” foi um relativo aumento na pontuação para as propostas de conteúdo jornalístico e educativo (era um máximo de 15 pontos para ambos), além da inserção do critério “tempo destinado a programas culturais, artísticos, educativos e jornalísticos a serem produzidos por entidade que não tenha qualquer associação ou vínculo, direto ou indireto, com empresas ou entidades executoras de serviços de radiodifusão” (máximo de 30 pontos). O critério “tempo menor para entrar em funcionamento”, com um máximo de 40 pontos, perde a validade.

Programação regional e independente

E por falar na valorização de produções audiovisuais fora do eixo Rio-São Paulo, um estudo do Observatório do Direito à Comunicação publicado em 2009, intitulado “Produção Regional na TV Aberta brasileira”, constatou um baixo índice de produção regional em 58 emissoras de televisão sediadas em 11 capitais do país. O objetivo era saber a quantidade de programas produzidos no estado da emissora que o veicula. A pesquisa revelou que o tempo médio dedicado à exibição de programas produzidos localmente era de 10,83%.

E são as emissoras públicas que reservam mais tempo à programação local. Em média, 25,5% da grade de programação das televisões desse campo presentes no estudo destinam-se a conteúdos elaborados nas cidades das emissoras. Bem atrás, estão as afiliadas à Rede TV! (12,20%), Record (11,20%), CNT (9,21%), SBT (8,60%), Band (8,56%) e, por último, à Globo (7%). Na contramão das emissoras educativas, as TVs de cunho comercial estão abaixo da média nacional quanto ao espaço reservado à produção de conteúdo regional, com apenas 9,14%.

Mas qual seria, então, o espaço ideal ocupado pela programação regional e independente no rádio e na TV? O projeto de lei nº 256, apresentado em 1991, ou seja, há mais de 20 anos, pela deputada federal Jandira Feghali (PcdoB-RJ), tenta até hoje responder a essas perguntas. Ele regulamenta o inciso III do artigo em questão, referente à programação cultural, artística e jornalística das emissoras de radiodifusão.

Documentários, animação e ficção

A proposta tramitou na Câmara dos Deputados por mais de 10 anos, deixando a Casa somente em 2003 rumo ao Senado Federal, onde tramita até hoje. A versão original do projeto de lei, iniciado na Câmara, prevê, de 07h às 23h, um mínimo de 30% de programas jornalísticos, culturais e artísticos totalmente produzidos e emitidos no local onde funciona a sede da emissora. As TVs teriam ainda a obrigação de exibir um filme nacional por semana. Já a versão que tramita no Senado desde 2003 – PLC nº 59/2003– traz alterações importantes.

Ela determina que no horário das 5h às 24h, as emissoras de televisão ficam obrigadas a veicular programas culturais, artísticos e jornalísticos totalmente produzidos e emitidos nos estados onde estão as sedes e/ou suas afiliadas, sendo: 22 horas semanais para emissoras que atendem regiões com mais de 1,5 milhão de domicílios com televisores; 17 horas semanais às que atendem regiões com menos de 1,5 milhão de domicílios com televisores; e 10 horas semanais para emissoras que atendem regiões com menos de 500 mil domicílios com televisores. Os valores previstos nas duas primeiras condições deverão, em cinco anos, aumentar para 32 e 22 horas semanais, respectivamente.

A produção independente ganha destaque no PLC 59/2003. Pelo menos 40% das horas semanais estabelecidas para a programação regional deverão ser ocupadas com conteúdo elaborado por produtores sem quaisquer vínculos, sejam econômicos ou de parentesco, com os concessionários de televisão. Dentro desse total reservado à produção independente, 40% deve ser destinado à apresentação de documentários, além de obras de animação e ficção.

Um novo Marco Regulatório

Elaborada de forma colaborativa a partir da participação da sociedade civil durante consulta pública realizada em 2011 e tendo como objetivo contribuir com o Governo na atualização do marco legal da mídia, a Plataforma para um Novo Marco Regulatório das Comunicaçõescoloca a produção regional e independente entre os 20 pontos considerados fundamentais para a democratização do setor no Brasil. Destaca-se a necessidade da regulamentação do artigo constitucional 221 e da implementação de políticas de fomento e incentivo à produção independente:

Garantia da produção e veiculação de conteúdo nacional e regional e estímulo à programação independente:

É preciso regulamentar o artigo 221 da Constituição Federal, com a garantia de cotas de veiculação de conteúdo nacional e regional onde essa diversidade não se impõe naturalmente. Esses mecanismos se justificam pela necessidade de garantir a diversidade cultural, pelo estímulo ao mercado audiovisual local e pela garantia de espaço à cultura e à língua nacional, respeitando as variações etnolinguísticas do país. O novo marco deve contemplar também políticas de fomento à produção, distribuição e acesso a conteúdo nacional independente, com a democratização regional dos recursos, desconcentração dos beneficiários e garantia de acesso das mulheres e da população negra à produção de conteúdo. Essa medida deve estar articulada com iniciativas já existentes no âmbito da cultura, já que, ao mesmo tempo, combate a concentração econômica e promove a diversidade de conteúdo.

A regulamentação da exigência constitucional de complementaridade dos sistemas público, privado e estatal com vistas ao fortalecimento das emissoras públicas de radiodifusão; o fortalecimento das rádios e TVs comunitárias; e o estabelecimento de limites à concentração dos meios também aparecem na Plataforma como fortes aliados da produção regional e independente em um novo marco legal da mídia.

Como se vê, não é através de remendos (leia-se decretos) ou de mudanças superficiais sobre uma legislação totalmente fora do seu tempo que o Brasil conseguirá enxergar na TV e no rádio a diversidade e a pluralidade tão marcantes na cultura e nos costumes de seu povo. O debate vai além e requer políticas regulatórias amplas, convergentes e democráticas.

Vilson Vieira Jr. é jornalista, Serra, ES