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A Cúpula, o direito à comunicação e a liberdade de expressão dos povos

Na Turquia, o acesso à internet é proibido ao povo curdo. Recentemente, o jornal "Livre e Atual", publicado pela comunidade curda, teve 66 jornalistas assassinados e seu diretor condenado a mais de 100 anos de prisão. Na Dinamarca, a emissora de TV que dava voz a este povo foi fechada após pedido do governo da Turquia junto às instâncias da OTAN.

Em Moçambique, as rádios comunitárias são o principal meio de expressão dos 20 idiomas falados por 60% da população, além do oficial português. Parte dos habitantes tem sotaque brasileiro por influência das novelas veiculadas por lá. As emissoras que desagradam o poder político central, no entanto, são fechadas sem justificativa. O mesmo acontece com canais de TV que questionam a autoridade da Presidência do país. Moçambique não dispõe de uma lei de acesso à informação e há uma dependência dos veículos em relação à publicidade governamental.

Na China, há os veículos que dependem do Estado e os que dependem do mercado. A luta pela liberdade de jornalistas, nos últimos três anos, ganhou o apoio da população com o aparecimento das redes sociais. Hoje, 500 milhões de chineses são usuários de internet e o controle da informação pelo Estado está ruindo. A liberdade de imprensa, no entanto, ainda não é garantida institucionalmente. O Estado e a polícia podem prender jornalistas e ativistas a qualquer momento.

No Brasil, no último dia 17, a Anatel, com o auxílio o Exército e da Polícia Militar, tentou tirar do ar a Rádio Cúpula, emissora livre que funcionava no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, para divulgar à população os temas em debate na Cúpula dos Povos por Justiça Social e ambiental em defesa dos bens comuns, contra a mercantilização da vida. Graças à pressão dos movimentos populares, a Rádio Cúpula conseguiu funcionar até o final do evento. No mesmo final de semana, 11 rádios comunitárias da região de Campinas, interior de São Paulo, também correram o risco de serem caladas após a expedição de mandados judiciais ordenando a apreensão de seus equipamentos pela Anatel.

O que essas quatros histórias tem em comum, além da óbvia constatação que o acesso à informação e o direito à comunicação e à liberdade de expressão dos povos seguem sendo cotidianamente violados em todo mundo? Todas elas foram contadas, compartilhadas e até mesmo vivenciadas por comunicadores e ativistas que participaram do II Fórum Mundial de Mídia Livre (II FMML), evento realizado na Cúpula dos Povos, que terminou neste final de semana no Rio de Janeiro.   

Organizado a partir de uma articulação internacional que começou no Fórum Social Mundial de  2011, no Senegal, o II FMML reuniu centenas de pessoas de mais de 15 países, de todos os continentes do planeta, para debater o papel estratégico da comunicação na construção deste outro mundo, ambientalmente sustável e socialmente justo. O evento aconteceu não apenas 20 anos após a ECO 92, mas também vinte anos após a chegada da internet no Rio de Janeiro, implantada na cidade por organizações da sociedade civil justamente durante o Fórum Global.

E se hoje as novas tecnologias estão teoricamente disponíveis para todos, os desafios não são menores do que nos anos 90. Consideradas as diferentes conjunturas e temporalidades, ficou claro para todos que a defesa do direito à comunicação precisa ser colocada na ordem do dia das lutas dos povos de todo o mundo.

Em primeiro lugar, porque,  na disputa ideológica por modelos de desenvolvimento, os grandes meios de comunicação comerciais reproduzem, em sua maioria, um discurso permissivo em relação a práticas predatórias e consumistas. Apesar de falaram da crise ambiental vivida pelo planeta, não questionam o modelo capitalista que a causou. Neste sentido, a mídia livre, em suas mais diferentes formas de organização, é fundamental para dar voz aos setores que defendem outra forma de se relacionar com os recursos naturais e os bens comuns.

Em segundo lugar, porque a comunicação e a cultura, elas próprias, também devem ser vistas bens comuns, que, assim como a água e as florestas, vem sendo historicamente apropriados e mercantilizados pelas grandes corporações, perante a omissão ou conivência dos governos. E se, neste caso, não estamos discutindo recursos finitos, como fez a agenda da Rio+20, a mercantilização da informação e a colonização das mensagens pelo poder econômico também tem tornado escassas a diversidade e pluralidade desses bens imateriais.

Mas assim como a Cúpula dos Povos mostrou experiências populares de gestão comunitária de bosques, rios e territórios, o Fórum de Mídia Livre foi um espaço para debater e praticar os princípios do compartilhamento e da produção comum de comunicação: das iniciativas da cultura digital à construção de protocolos livres, passando pela gestão de rádios livres e comunitárias e pela defesa de marcos regulatórios democráticos e políticas públicas que garantam a universalização da banda larga, a apropriação tecnológica e o exercício da liberdade de expressão de todos os povos.  

Num cenário em que, numa parte do mundo, ainda se vive sob a censura do Estado na radiodifusão, nos meios impressos e na internet e, em outra, a monopolização de sistemas mediáticos tem inibido o acesso à informação e a liberdade de expressão dos povos, o II FMML levantou alto a bandeira do direito à comunicação. Considerando o momento histórico singular que o tema vive, muito distante das épocas em que os emissores detinham o controle da palavra, os comunicadores que estiveram no Rio apostam no crescimento do protagonismo popular para o desenvolvimento de fluxos distintos de comunicação e no fortalecimento de uma nova dinâmica de redes, em que outras vozes ganhem espaço e alcance global.

Uma das decisões da assembléia final do Fórum Mundial de Mídia Livre foi transformá-lo num espaço permanente de articulação entre ativistas de comunicação de todo o mundo, por meio de plataformas livres e interoperáveis de participação. Também será elaborado um decálogo de referência internacional para a garantia do exercício das mídias livres. Em torno desses princípios, o movimento pretende construir uma plataforma de ações que dialogue com a realidade de cada país.

Da mesma forma, deve ser construída, em parceria com os movimentos populares de outras áreas, uma agenda internacional de lutas em torno do direito à comunicação. O objetivo é que os movimentos sociais se apropriem da mídia livre para fortalecer suas próprias lutas, rompendo com a barreira hoje imposta pelos grandes meios privados ou pelos Estados.

Aqui no Brasil, a sociedade civil se organiza na batalha por um novo marco regulatório das comunicações, que garanta a liberdade de expressão para todos e todas, e não apenas para aqueles que detem o controle e a propriedade dos meios de comunicação de massa. A luta agora é para ampliar  o número de atores políticos nesse processo e envolver o conjunto da população brasileira neste debate.
 
Em 2013, no próximo Fórum Social Mundial, na Tunísia, o Fórum de Mídia Livre se reunirá presencialmente uma vez mais. Que até lá tenhamos avançado por aqui na construção de um sistema midiático efetivamente plural e livre no Brasil.

Bia Barbosa é jornalista, integrante do Intervozes e participou da organização do II Fórum Mundial de Mídia Livre na Cúpula dos Povos da Rio+20.

Paraguai: A desinformação midiática e o golpe da Monsanto

“A situação de expectativa gerada pela decisão dos legisladores de submeter o presidente Fernando Lugo a juízo político foi, finalmente, resolvida de um modo ordenado, pacífico e respeitoso da legalidade, da institucionalidade e dos critérios essenciais de equidade que devem presidir processos tão delicados como o que acaba de ser levado a bom termo. A destituição do presidente abre fundadas esperanças num futuro melhor”
Editorial do jornal ABC Color deste sábado, 23 de junho

“Um presidente sem respaldo, que se mostra negligente e incapaz, não pode seguir governando. Sem lugar a dúvidas, o erro mais grave de Fernando Lugo foi o respaldo outorgado a dirigentes de supostos camponeses que receberam carta branca do governo para invadir terras, ameaçar e desafiar o Estado de Direito. Lugo decepcionou a grande maioria da cidadania paraguaia com suas decisões errôneas, seu sarcasmo, sua desastrosa vida pessoal, sua ambiguidade e sua crescente amizade com inimigos declarados da democracia, como Hugo Chávez e os irmãos Castro"
Editorial do jornal Vanguardia deste sábado, 23 de junho

"Lugo tem princípios populistas (não necessariamente incendiários). A reputação de honestidade lhe ajudou a ganhar, porém necessitará um poudo da ajuda do céu para exercer a Presidência".
Informação da Embaixada dos EUA, datada de junho de 2008, vazada pelo WikiLeaks, antes da posse de Lugo

Uma grotesca farsa caiu como raio em céu claro sobre o presidente constitucional do Paraguai, Fernando Lugo. Em questão de horas o mandatário teve o seu “impeachment” proposto, analisado e votado pelo Congresso, mediante um processo metodicamente orquestrado pelas multinacionais Monsanto e Cargill, a oligarquia latifundiária, as elites empresariais e sua mídia.

As comemorações estampadas nas capas dos principais jornais paraguaios dão a dimensão do ódio de classe, com as desclassificadas mentiras destiladas contra quem se dispôs – ainda que com vacilos e limitações – a virar a página de abusos e subserviência aos ditames de Washington e suas empresas.

O cerco midiático contra Lugo vinha se fechando, num país em que 85% das terras encontram-se nas mãos de 2% da população e onde os mesmos donos dos três principais jornais, umbilicalmente vinculados às transnacionais e ao sistema financeiro, também controlam as emissoras de rádio e televisão. Assim, de forma suja e monocórdica, foram convocadas manifestações, com bloqueio de estradas, para o próximo dia 25 de junho. Grandes “tratoraços” em protesto contra a decisão do governo em favor da saúde da população e da soberania alimentar – de não liberar a semente de algodão transgênico Bollgard BT, da Monsanto, cuja sequência genética está mesclada ao gene do Bacillus Thurigensis, bactéria tóxica que mata algumas pragas de algodão. A decisão, que afetava milionários interesses da multinacional estadunidense, havia sido comunicada pelo Serviço Nacional de Qualidade e Saúde Vegetal e de Sementes (Senave), uma vez que a liberação não tinha o parecer do Ministério da Saúde e da Secretaria do Meio Ambiente.

“A Monsanto, através da UGP, estreitamente ligada ao Grupo Zuccolillo, que publica o diário ABC Color, se lançou contra a Senave e seu presidente Miguel Lovera por não ter inscrito a sua semente transgênica para uso comercial no país”, denuncia o jornalista e pesquisador paraguaio Idilio Méndez Grimaldi.

Para tirar o Senave do caminho foi alegado o surrado argumento da “corrupção” no órgão, o mesmo estratagema da máfia de Carlinhos Cachoeira para tomar de assalto o DNIT e alavancar negociatas, via utilização de seus vínculos com a revista Veja para denunciar desvios no órgão – conseguindo inclusive a queda do ministro dos Transportes. Desta forma, “denúncias” por parte de uma pseudo-sindicalista do Senave, Silvia Martínez, ganharam manchetes na mídia canalha. O jornal ABC Color do dia 7 de junho último acusou o chefe do Senave, Miguel Lovera, de “corrupção e nepotismo na instituição que dirige”. Mas o fato é que a pretensa sindicalista advogava em causa própria, do marido e de seus patrocinadores. Conforme revelou Grimaldi, “Silvia Martínez é esposa de Roberto Cáceres, representante técnico de várias empresas agrícolas – todas sócias da UGP (Unión de Grêmios de la Producción) – entre elas Agrosán, recentemente adquirida pela Syngenta, outra transnacional, por 120 milhões de dólares”.

Algo similar à UDR (União Democrática Ruralista) de Ronaldo Caiado, e aos ruralistas da senadora Kátia Abreu, a UGP é comandada por Héctor Cristaldo, sustentado por figuras como Ramón Sánchez – vinculado ao setor agroquímico – entre outros agentes das transnacionais do agronegócio. “Cristaldo integra o staff de várias empresas do Grupo Zuccolillo, cujo principal acionista é Aldo Zuccolillo, diretor proprietário do jornal ABC Color desde sua fundação sob o regime de Stroessner, em 1967. Zuccolillo é dirigente da Sociedade Interamericana de Prensa (SIP)”, esclarece Idílio Grimaldi. O jornalista lembra que o Grupo Zuccolillo é o principal sócio no Paraguai da Cargill, uma das maiores transnacionais do agronegócio do mundo. “Tal sociedade” construiu um dos portos graneleiros mais importantes do Paraguai, o Porto União, a 500 metros da absorção de água da Companhia de Saneamento do Estado, sobre o rio Paraguai, sem qualquer restrição”, esclarece.

Com a proteção do apodrecido Congresso que condenou Lugo, as transnacionais do agronegócio no Paraguai praticamente não pagam impostos, com uma carga tributária de 13% do PIB, tão insignificante que acaba inviabilizando os serviços públicos. Vale lembrar que a saúde e a educação eram totalmente privadas antes da ascensão de Lugo à Presidência, num país em que os latifundiários não pagam impostos. O imposto imobiliário representa apenas 0,04% da carga tributária, uns 5 milhões de dólares – segundo estudo do Banco Mundial – ainda quando a renda do agronegócio alcance cerca de 6 bilhões de dólares anuais, em torno de 30% do PIB.

Na sexta-feira, 8 de junho, a UGP publicou no ABC Color seus  “12 argumentos para destituir Lovera” (http://www.abc.com.py/edicion-impresa/economia/presentan-12-argumentos-para–destituir-a–lovera-411495.html. Tais “argumentos” foram apresentados ao então vice-presidente da República, Federico Franco, correligionário do ministro da Agricultura e pró-Monsanto, recém nomeado “presidente”.

Na sexta-feira, 15, descreve Grimaldi, “em função de uma exposição anual organizada pelo Ministério de Agricultura e Pecuária, o ministro Enzo Cardozo deixou escapar um comentário à imprensa: um suposto grupo de investidores da Índia, do sector agroquímico, cancelou um projeto de investimentos no Paraguai pela alegada corrupção no Senave. Nunca esclareceu de que grupo se tratava. Nas mesmas horas daquele dia ocorriam os trágicos acontecimentos de Curuguaty, onde morreram onze camponeses e seis policiais”. O sangue derramado foi o pretexto utilizado pela direita para o impeachment.

O que se sabe é que a exemplo da tentativa de golpe de Estado na Venezuela, onde a CIA utilizou franco-atiradores para assassinar os manifestantes contrários ao governo para jogar a culpa do massacre sob os ombros de Hugo Chávez, também em Curuguaty agiram franco-atiradores. E dos bem profissionais. E movidos pelos mesmos propósitos.

Na região de Curuguaty está localizada a estância de Morombí, propriedade do latifundiário e grileiro Blas Riquelme, dono de mais de 70 mil hectares. O “terrateniente” é uma das viúvas da ditadura do general Alfredo Stroessner (1954-1989), um dos principais beneficiados pela tristemente célebre Operação Condor, desenvolvida pela CIA no Cone Sul para torturar, assassinar e desaparecer com todo aquele que ousasse contrariar os interesses estadunidenses na região. Ele também foi presidente do Partido Colorado por longos anos e senador da República, sendo igualmente dono de uma rede de supermercados e estabelecimentos pecuários.

Como Riquelme havia se apropriado mediante subterfúgios legais de aproximadamente dois mil hectares pertencentes ao Estado paraguaio, camponeses sem terra ocuparam o local e solicitaram do governo Lugo a sua desapropriação para fins de reforma agrária. Um juiz e uma promotora ordenaram a retirada das famílias por meio do Grupo Especial de Operaciones (GEO) da Polícia Nacional, esquadrão de elite que, em sua maioria, foi treinado por militares dos EUA na Colômbia, durante o governo fascista de Álvaro Uribe.

Na avaliação de Grimaldi, que também é membro da Sociedade de Economia Política do Paraguai (SEPPY), somente uma sabotagem interna dentro dos quadros da própria inteligência da Polícia, com a cumplicidade da Promotoria, explicaria a emboscada na qual morreram seis policiais. Uma ação estrategicamente planejada com um objetivo bem definido. “Não se compreende como policiais altamente treinados, no marco do Plano Colômbia, pudessem cair tão facilmente numa suposta armadilha feita por camponeses, como quer fazer crer a imprensa dominada pela oligarquia. A tropa reagiu, matando 11 camponeses e deixando cerca de 50 feridos”. Entre os policiais mortos, ressalta, estava o chefe da GEO, Erven Lovera, irmão do tenente-coronel Alcides Lovera, chefe da segurança do presidente. Um recado claro e preciso para Lugo.

Conforme o jornalista, no marco da apresentação preparada pelo Ministério da Agricultura – a serviço dos EUA -, a transnacional Monsanto anunciou outra variedade de algodão, duplamente transgênico: BT e RR ou Resistente ao Roundup, herbicida fabricado e patenteado pela multinacional, que quer a liberação da semente no país.

Para afastar incômodos obstáculos, antes disso o diário ABC Color vinha denunciando “presumíveis” fatos de corrupção dos ministros do Meio Ambiente e da Saúde, Oscar Rivas e Esperança Martínez, que também haviam negado posição favorável à Monsanto. A multinacional faturou no ano passado, somente com os royalties pelo uso de sementes transgênicas de soja no Paraguai, 30 milhões de dólares, livre de impostos, (porque não declara esta parte de sua renda). “Independente disso, a multinacional também fatura pela venda das sementes transgênicas. Toda a soja cultivada é transgênica numa extensão próxima aos três milhões de hectares, numa produção em torno de sete milhões de toneladas em 2010”, revela Grimaldi.

Por outro lado, acrescenta o jornalista, a Câmara de Deputados já aprovou projeto de Lei de Biosseguridade, que contempla criar uma direção de Biosegurança com amplos poderes para a aprovação do cultivo comercial de todas as sementes transgênicas, sejam elas de soja, milho, arroz, algodão… Este projeto de lei elimina a atual Comissão de Biosseguridade, ente colegiado de funcionários técnicos do Estado paraguaio, visto como entrave aos desígnios da Monsanto.

“Enquanto transcorriam todos esses acontecimentos, a UGP vinha preparando um ato de protesto nacional contra o governo de Fernando Lugo para o dia 25 de junho, com máquinas agrícolas fechando parte das estradas em diferentes pontos do país. Uma das reivindicações do denominado ‘tratoraço’: a destituição de Miguel Lovera do Senave, assim como a liberação de todas as sementes transgênicas para cultivo comercial”.

Dado o golpe, como estamparam os grandes conglomerados de mídia no Paraguai neste sábado, “a manifestação da UGP foi suspensa”. Afinal, “há um novo governo, mais sensível ao mercado”.

Rádio Cúpula fechada? É hora de novo marco regulatório das comunicações!

No último domingo (17), populações de todo o mundo, reunidas na Cúpula dos Povos, assistiram a um vergonhoso exemplo dado pelo Estado brasileiro em termos de direito à liberdade de expressão e democratização da mídia.

Depois de sucessivas tentativas numa mesma tarde, frustradas pela resistência popular que montou cordões humanos em frente à Rádio Cúpula dos Povos, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) sacramentou o seu papel histórico de perseguição e criminalização à comunicação comunitária ao fechar a referida rádio.

O ato é histórico, porque como bem lembrou o representante da Associação Mundial de Rádios Comunitárias, Arthur William, fatos como esse acontecem todos os dias, em todos os cantos do Brasil.

A Anatel alegava que o sinal da rádio estava interferindo no tráfego aéreo do aeroporto Santos Dumont, que, receberia chefes de estado de todo o mundo para participarem da Rio+20. A afirmação da Anatel cai por terra quando constata-se que a baixa intensidade do sinal de transmissão utilizado pela rádio Cúpula dos Povos – 25 watts – torna impossível tal nível de interferência.

Curiosamente, a ação da Anatel com apoio da Polícia Federal e Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro teve início no momento em que se encerrava, também ali no Rio de Janeiro, o II Fórum Mundial de Mídia Livre, que tem como um de seus objetivos discutir propostas de fortalecimento para os meios de comunicação livres e comunitários.

Também curiosamente, o fechamento da rádio vai de encontro a uma das principais reivindicações discutidas até aqui na Cúpula dos Povos: a garantia do direito à comunicação e a democratização da mídia.

Porém, tão importante quanto se indignar, reivindicar, denunciar e protestar, é fundamental neste momento apontar caminhos para a resolução deste problema marcante da política de comunicações no Brasil. E um dos caminhos já tem sido defendido por um conjunto de entidades e organizações da sociedade civil: a necessidade de um novo marco regulatório das comunicações, que garanta a diversidade e a pluralidade de todas as ideias, cores e vozes.

Para isso, vem sendo gestada a Campanha Nacional em defesa da Liberdade de Expressão, que tem como uma das propostas centrais, justamente, o fortalecimento das rádios e TVs comunitárias.

Um trecho da Plataforma da sociedade civil pelo Novo Marco Regulatório – programa que embasa a Campanha – diz que “os meios comunitários devem ser priorizados nas políticas públicas de comunicação, pondo fim às restrições arbitrárias de sua cobertura, potência e número de estações por localidade, garantido o respeito a planos de outorgas e distribuição de frequências que levem em conta as necessidades e possibilidades das emissoras de cada localidade”.

Outro trecho defende ainda “o fim da criminalização das rádios comunitárias, garantindo a anistia aos milhares de comunicadores perseguidos e condenados pelo exercício da liberdade de expressão e do direito à comunicação”.

A Campanha, protagonizada por diversos segmentos – mídias comunitárias, movimento de mulheres, movimento negro, juventude, entidades sindicais, movimentos populares e organizações sociais –, tem pressionado para que o Governo Federal abra o debate público sobre a nova legislação para o setor das comunicações.

Neste sentido, o fechamento da rádio Cúpula dos Povos é um momento propício para que o Governo Federal, enfim, se posicione e coloque em debate público a necessidade de um novo marco regulatório da mídia, que garanta o direito à comunicação e a liberdade de expressão de todos os cidadãos e cidadãs.

Paulo Victor Melo, jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação

Os conglomerados e a cultura enlatada

Os processos de desregulamentação, transnacionalização e oligopolização das últimas quatro décadas foram cruciais para o desenvolvimento dos conglomerados de comunicação. O fenômeno da globalização, na contramão das afirmações dos pesquisadores mais otimistas, não é uma questão resolvida nos planos da comunicação e da cultura. Ao contrário, encontra-se em plena ascensão, a partir dos novos modelos de negócio que fomentam ambientes de poucas companhias mundiais difundindo cultura para amplas audiências. Mas o atual momento apenas foi possível a partir de movimentos fundamentais, tais como a privatização, que implica a transferência de ativos detidos pelos setores públicos para investidores privados e a conversão de organizações públicas em companhias privadas; a liberalização, a partir da permissão da entrada de novas operadoras nos mercados, anteriormente monopólios ou dominados por mais de um operador; e a comercialização, que constitui no o alargamento da esfera do mercado da cultura e da comunicação.

Na microesfera destas questões encontra-se a “cultura em latas”, ou “enlatados”, no senso comum, termo que se refere aos produtos importados e exibidos na televisão. Foram muito populares durante os primeiros anos deste mercado, frente à necessidade de preenchimento das grades de programação, carência de mão-de-obra especializada e dificuldades financeiras de um mercado então em fase de organização. Mais recentemente, na segunda metade dos anos 90, começaram a ganhar fôlego os formatos transnacionais. O exemplo mais expressivo é o dos reality shows, um produto audiovisual que pretende retratar a realidade como ela é, especialmente de pessoas anônimas, como o mais comum dos telespectadores. Para isso são simuladas situações que se aproximariam do cotidiano, ou de uma construção (ilusória) da realidade. A vantagem da exibição deste tipo de produto é que possuem baixos custos e, de modo geral, bom retorno comercial e de audiência.

Trata-se de uma estratégia que não é exclusivamente implementada por emissoras comerciais brasileiras, mas também educativas e universitárias. O telespectador que sintoniza o sinal da TV Cultura de São Paulo, por exemplo, depara desde março de 2012 com a elevação dos títulos internacionais, substituindo produções brasileiras. É o caso da série Doctor Who, produção inglesa de ficção científica que deve perdurar durante seis temporadas, produzidas entre os anos de 2005 a 2011. Outra produção, Eu e Os Monstros narra a história da uma família que migrou da Austrália para o Reino Unido. Com a temática de “monstros no porão”, a produção busca tratar sobre aceitação das diferenças.

Globalização, ontem e hoje

Para além do mercado televisivo, o fenômeno pode ser compreendido como um processo histórico, sociocultural e cíclico, onde ideologias, capitais financeiros e mudanças comportamentais se reorganizaram e passaram a atuar conjuntamente. Seu desenvolvimento se iniciou de forma embrionária na Europa, entre o começo do século 15 até a metade do século 18, especialmente a partir da acentuação dos conceitos relacionados à humanidade, a teoria heliocêntrica do mundo e a difusão do calendário gregoriano.

Em um segundo momento, ainda incipiente, transcorreu também em solo europeu, entre a metade do século 18 até 1870, período em que se verificou um aumento de convenções e agências destinadas à comunicação internacional e tematização do problema do nacionalismo-internacionalismo. O terceiro momento concentra-se de 1870 até 1920, com o início de competições internacionais, a implementação da Hora Universal, a adoção quase global do Calendário Gregoriano, a Primeira Guerra Mundial e a criação da Liga das Nações. Entre 1920 e 1960 a globalização enfrenta sua quarta fase, onde se destaca a luta pela hegemonia, disputas em torno dos frágeis processos de globalização, conflitos internacionais sobre as formas de vida e surgimento da Organização das Nações Unidas (ONU). Mas as incertezas se instaram durante os anos 60, auge da Guerra Fria, tempo de elevação dos movimentos sociais globais e de um maior interesse na sociedade civil.

Assim, na globalização acelerada de hoje, um dos traços são os processos de aquisições, fusões e outras fórmulas de associação dos capitais. Estas fusões e aquisições desencadeiam-se ao findar a década de 70, por motivos como a necessidade de ampliar o mercado para compensar o aumento dos custos fixos, principalmente gastos de pesquisa e desenvolvimento (P&D), e de aprovisionar em escala mundial certos insumos essenciais, nomeadamente de ordem científica e tecnológica. Desde a segunda metade dos anos 80, tais fenômenos têm sido ainda mais presentes na área de comunicações, por sua posição atual, de provedora de informações numa sociedade crescentemente vivenciada à distância. Revelam-se as firmas de comunicações extremamente valorizadas, com seus ativos sendo reposicionados e aumentando o ingresso de novos capitais, bem como transferências acionárias, alianças e acordos.

Valério Cruz Brittos e Andres Kalikoske são, respectivamente, professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos se doutorando no mesmo programa

Regulamenta, Dilma!

Regulamentar é o mesmo que regular, verbo de origem latina que significa estabelecer regras para; estabelecer ordem; acertar, ajustar. Um dos papéis fundamentais do Estado é exatamente “estabelecer regras” – políticas públicas – relativas aos diferentes setores de atividade existentes numa sociedade para servir ao interesse coletivo.

Nas últimas décadas, atores sociais poderosos conseguiram tornar preponderante, em todo o planeta, a perspectiva política que postula limites estritos ao papel regulador do Estado. É o chamado “Estado mínimo” do ideário neoliberal. Os resultados desastrosos dessa política tornaram-se evidentes, a partir de 2008, com a crise global dos mercados financeiros. E suas consequências seguem fazendo estragos enormes ao redor do mundo.

É interessante notar, todavia, que, mesmo numa época em que dominou a perspectiva neoliberal, uma atividade foi e continua sendo objeto da regulação do Estado: as comunicações, reunindo os antigos setores de telecomunicações e radiodifusão e o novo espaço das TICs, as tecnologias de informação e comunicação.

Não só em vizinhos nossos como a Argentina, a Bolívia, o Equador, a Venezuela e o Uruguai, mas também na Inglaterra ocorre intenso debate sobre regulação e autorregulação – exemplos eloquentes por si mesmos.

São muitas as razões que justificam o imperioso papel regulador do Estado nas comunicações. A mais evidente (certamente) é a revolução digital pela qual passa o setor, que dissolveu as fronteiras entre as telecomunicações (telefonia, transmissão de imagens e dados), a comunicação social (rádio, televisão) e as TICs. Esse tsunami tecnológico provoca enormes ressonâncias no conjunto da sociedade, desde a transformação radical dos modelos de negócio até a reinvenção da sociabilidade humana, que agora se espraia viroticamente pelas redes sociais.

Uma razão talvez menos evidente ao senso comum, todavia, é a centralidade cada vez maior das comunicações nas democracias contemporâneas. A universalização da liberdade de expressão adquire um caráter fundante para a construção da cidadania ativa e republicana.

No Brasil, mesmo atores historicamente resistentes a qualquer alteração no status quo do setor de comunicações dão sinais públicos de finalmente reconhecer que algum tipo de regulação do Estado torna-se inevitável e inadiável.

De fato.

Para ficar apenas nos exemplos mais eloquentes: a principal referência legal para a radiodifusão, o Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117/1962) completa cinquenta anos (!) no próximo mês de agosto. A Lei Geral de Telecomunicações (nº 9.472/1997), apesar de relativamente recente, entre outras questões já nasceu defasada por separar telecomunicações e radiodifusão. E as normas e princípios da Constituição de 1988 – que, pela primeira vez, trouxe um capítulo específico sobre a Comunicação Social – em sua maioria não foram regulamentados, e portanto não são cumpridos. Pior ainda, o artigo 224 que institui o Conselho de Comunicação Social, apesar de regulamentado, vem sendo descumprido pelo Congresso Nacional desde dezembro de 2006.

Mas não se trata apenas de uma questão legal. Regulamentar as comunicações implica o Estado cumprir seu papel de garantir a universalização da liberdade de expressão, assegurar maior diversidade e pluralidade de vozes no debate público e possibilitar a construção cidadã de uma opinião pública republicana e democrática.

A realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação em dezembro de 2009, apesar de boicotada por parte dos empresários de comunicações, confirmou o tema da regulação na agenda pública. Nos últimos meses, apesar da omissão deliberada e da satanização liberista que a grande mídia ainda faz do tema, é inegável que existe uma crescente mobilização de partidos políticos e da sociedade civil organizada em torno da necessidade da regulação das comunicações.

Por tudo isso, pela consolidação de uma democracia republicana, e em nome da maioria esmagadora do apoio popular que seu mandato tem recebido: regulamenta, Dilma!

Venício A. de Lima é jornalista, professor aposentado da UnB e autor de, entre outros livros, Política de Comunicações: um balanço dos Governos Lula (2003-2010). Editora Publisher Brasil, 2012.