Arquivo da categoria: Análises

A inércia de Paulo Bernardo: “lei não impede concessões de TV para políticos”

Nesta terça-feira, o Congresso da Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), que teve o ministro das Comunicações Paulo Bernardo como convidado, foi palco de mais um protesto por uma mídia democrática. Ativistas do Intervozes e de outros coletivos abriram uma faixa, durante o discurso do ministro, questionando a concessão de rádios e TV para políticos e exigindo sua revogação. O fato provocou um diálogo público sobre o tema e, questionado pela imprensa, Paulo Bernardo precisou se pronunciar sobre a necessidade de um novo marco regulatório para as comunicações no país.

A cobertura da grande mídia, mais uma vez, não aprofundou a questão. Houve, inclusive, casos de veto explícitos à repercussão do ato. O G1, o portal da Globo, por exemplo, apesar de ter um repórter cobrindo o evento, optou por não dar nem uma linha sobre o ocorrido. A justificativa do editor: “o ministro foi provocado, não falou sobre a regulação dos meios por livre vontade”.

Postura jornalísticas condenáveis à parte, se depender de uma parte da militância, Paulo Bernardo terá que dar mais declarações públicas sobre a "pauta proibida", visto que as vitórias dos que disputam uma política coerente com o Estado Democrático de Direitos têm se mostrado possíveis, vide as mobilizações de junho.

Referindo-se à proibição de concessões de rádio e TV para políticos, o ministro chegou a declarar à imprensa que este tipo de ação é “justa” e necessária para que “um dia este tema possa ser enfrentado”.

Mas são justamente as declarações de “um dia” e “em algum momento” que preocupam. Fica explícita a inércia do governo diante de uma flagrante violação da Constituição Federal. Segundo Paulo Bernado, não existe base legal que impeça um político de ser dono de empresas concessionárias de rádio e TV. O artigo 54 da Constituição estabelece, no entanto, que deputados e senadores “não poderão firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público”. O objetivo do legislador parece claro: impedir que concessionárias, permissionárias e autorizatárias de radiodifusão controladas por políticos limitem, na medida do interesse de seus sócios e associados, a divulgação de determinadas opiniões e informações.

O ministro também ignora que, desde dezembro de 2011, tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação elaborada pelo Intervozes e pelo PSOL, baseada justamente no artigo 54, pedindo o cancelamento das outorgas dadas a políticos. Para Paulo Bernardo, é preciso colocar uma proibição explícia na regulamentação dos meios de comunicação. Mas quando? E como, ministro?

Tão grave quanto sua (não) resposta sobre este ponto foi a posição expressa pelo ministro, em coletiva no mesmo Congresso da ABTA, sobre a concentração da propriedade dos meios de radiodifusão. Em um país onde a Constituição proíbe o monopólio, mas onde impera o coronelismo midiático, Bernardo admitiu que o sistema de emissoras afiliadas burla o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), de 1963, que proíbe que um mesmo grupo tenha mais de cinco emissoras de TV no território nacional. No entanto, argumentou que – diferentemente da Argentina, onde o fato do Clarín ter quase uma centena de outorgas foi considerado oligopólio – aqui no Brasil isso é "mais difícil de caracterizar". "Obviamente há concentração, mas acho mais difícil caracterizar isso aqui. É um assunto que precisa ser discutido", alegou.

Não se sabe, no entanto, para que lado a discussão caminhará. Quando se trata de atender às reivindicações dos empresários do setor, o que é ruim pode ficar pior. Diante da possibilidade de migrar todas as emissoras de rádio AM para a frequência FM, visando resolver problemas de recepção pelos ouvintes, o ministro das Comunicações considera a possibilidade de alterar o CBT para permitir uma ampliação do número de licenças de rádio por grupo econômico na mesma localidade. "Em alguns casos, isso vai esbarrar na lei. Vamos precisar mudar isso", disse Paulo Bernardo, mostrando disposição não para enfrentar os oligopólios do setor, mas para mudar a lei para permitir a concentração em um espectro ainda mais restrito.

Uruguai abre ao público debate sobre outorgas de TV digital

O dia 31 de julho foi marcado no Uruguai pelo que, para alguns, já pode ser considerado um feito histórico. O leitor deve estar pensado que nos referimos à legalização da produção e do consumo de maconha, inegavelmente um marco na luta antiproibicionista no mundo. Trata-se, porém, de outro fato, praticamente ignorado pela mídia brasileira, por motivos óbvios.

Pela primeira vez naquele país foi realizada uma audiência pública para tratar da autorização de novas outorgas de televisão aberta. Seis propostas para explorar a chamada “TV digital terrestre” (diferenciando-se da TV por assinatura por satélite e por cabo) no Uruguai foram analisadas e discutidas de forma transparente pela sociedade. Todo e qualquer cidadão e cidadã pôde dirigir suas questões e tirar suas dúvidas junto às candidatas, num evento que foi transmitido ao vivo pela internet.

As três outorgas solicitadas pelos grupos das empresas Monte Carlo TV, Saeta TV e La Tele (Teledoce), que possuem as principais emissoras de televisão analógica e se encontram nas mãos da família Salvo, do grupo Fontaina-De Feo e da família Scheck há mais de 50 anos, foram dispensados por decreto de serem submetidos ao debate público. Embora isto demonstre a persistência da força da burguesia radiodifusora tradicional, a abertura de seis novos canais, por meio de um processo transparente e participativo pode ser uma aposta na possibilidade de diluir a força do oligopólio em benefício da diversidade necessária ao exercício democrático.

Afinal, depois de mais de meio século com os mesmos operadores de TV, a digitalização proporcionará a abertura de concorrência e maior diversidade na televisão uruguaia. Ao contrário do modelo brasileiro, que favoreceu a transmissão digital em alta definição, sem a possibilidade de abertura no espectro para novos canais, a digitalização no país vizinho será feita a partir da divisão equitativa das frequências, incluindo a reserva de um terço do espectro para o setor comunitário. Assim, de 20 canais disponíveis para a TV digital em Montevidéu, 7 serão reservados aos meios comunitários, 7 para os comerciais e 6 para a TV pública, desconcentrando a difusão de conteúdo, hoje efetuada em 75% por canais comerciais.

Entre os critérios de avaliação e escolha dos candidatos, prioridade será dada ao impacto da nova outorga para a diversidade e o pluralismo de meios. Serão considerados, por exemplo, os compromissos apresentados com a difusão da produção nacional e independente, a criação de empregos diretos e o cumprimento dos direitos trabalhistas e a acessibilidade ofertada às pessoas com deficiência. Pela primeira vez, as emissoras também deverão dar contrapartidas à exploração lucrativa de um bem público: terão que pagar pelo uso das frequências, assim como veicular campanhas educativas e de interesse público em sua programação. As propostas apresentadas também estão disponíveis para download na página da Presidência da República na internet.

O Uruguai demonstra, assim, mais uma vez, aquilo que já concluímos em artigo anterior: a América Latina dá passos em direção à democratização da comunicação, apesar da resistência das burguesias radiodifusoras nacionais e das ofensivas do capital monopolista internacional no setor.

Enquanto isso, o governo federal brasileiro segue fazendo ouvido (por que não dizer papel?) de mercador diante da reivindicação da sociedade civil por diversificação do nosso sistema de comunicação, que ao longo da sua história serviu para encher os bolsos de umas poucas dúzias de senhores que tratam das concessões, que são bens públicos, como se fossem seus feudos.

Bruno Marinoni é repórter do Observatório do Direito à Comunicação e doutor em sociologia pela UFPE.

Canal da Cidadania: democratização da televisão ou mais uma miragem da TV digital?

No dia 24 de março de 2010, com a publicação da Portaria nº 189/10, o Ministério das Comunicações (Minicom) finalmente estabeleceu as diretrizes do Canal da Cidadania, previsto no Decreto nº 5.820/06 e, talvez, a maior promessa que restou de todo o processo de discussão sobre a digitalização da TV, no Brasil, até a decisão, em 2006, da adoção do padrão japonês ISDB-T. Este sistema seria "hibridizado" com componentes brasileiros, como o middleware Ginga, que, no entanto, não vingou. Já a regulamentação do Canal da Cidadania, por parte do Minicom, só foi feita em 19 de dezembro de 2012, na Portaria nº 489/12. O Canal, que consiste na exploração de um canal "multiplexado", com quatro faixas de programação (Governo do Estado, Prefeitura Municipal e duas faixas para a sociedade civil), seria a compensação, ao menos no plano do discurso, que o Governo Federal daria para tornar a propriedade da radiodifusão brasileira mais plural e diversa,  partir da implantação atual do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (SBTVD-T).

Acontece que, já em março de 2013, o ministro Paulo Bernardo (PT) alterou a norma que sequer completara três meses. A retificação tinha como um dos motivos os encaminhamentos dados pelo governo para a faixa de 700 MHz, o chamado “dividendo digital”. A principal mudança na portaria do regulamento do Canal da Cidadania é a concessão não só aos governos estaduais, mas também às prefeituras – com prioridade a estas – do direito de fazer a multiprogramação nas emissoras educativas já existentes. Neste caso, o "novo" Canal da Cidadania acaba ficando limitado, na prática, a um apêndice de televisões estatais, que seguem longe de ser um modelo de televisão pública, estando mais próximas do caráter “governamental”.

A ideia, com a mudança, é fazer com que as estações do campo público (estaduais, educativas, comunitárias) possam promover a transição tecnológica para o digital sem ocupar os canais de UHF que antes estavam destinados a elas, liberando-os para a exploração pelas operadoras de telecomunicações. A história ganha tonalidades mais nebulosas porque a nova portaria determina que “não será outorgada, no âmbito do respectivo município, a autorização referida no item 4.1”. Este, por sua vez, diz que o Ministério das Comunicações “outorgará autorização em cada Município contemplado no Plano Básico de TV Digital, ressalvadas as situações de impossibilidade técnica, um canal digital com largura de banda de seis megahertz, para a exploração do Canal da Cidadania pelos Estados, Distrito Federal, Municípios e fundações e autarquias a eles vinculadas”.

Interessante, ainda, lembrar que, desde a Portaria de março de 2010, que já previa um “Conselho de Comunicação Social”, os dispositivos de participação foram ficando cada vez menos claros. A Portaria do regulamento, de dezembro de 2012, diz somente que:

1) o ente ou a entidade autorizada a explorar o Canal da Cidadania deverá instituir um Conselho Local para zelar pelo cumprimento das finalidades da programação previstas no item 3.1 e manifestar-se sobre os programas veiculados;

2) o Conselho Local deve ter uma composição plural, de modo a contemplar a participação dos diversos segmentos do Poder Público e da comunidade local;

3) cada Conselho Local estabelecerá seus mecanismos de diálogo com a sociedade e terá acesso ao relatório do Ouvidor para a elaboração de suas análises, podendo encaminhar requerimentos e denúncias ao Ministério das Comunicações.

Além disso, não está expresso para que faixa de frequência devem migrar os canais da Rede Legislativa de TV Digital, que já têm dividido o canal 61, em “multiprogramação”, entre a TV Câmara, a TV Senado e as emissoras locais da Assembleia Estadual e do Legislativo Municipal, em São Paulo (capital, além de Barretos, Jaú, Tupã e Ribeirão Preto), Brasília, Belo Horizonte, Fortaleza e em Porto Alegre, com a previsão próxima de expansão em outras dezenas de cidades. O que vão fazer com isso? Se jogarem para o VHF, vai embora a mobilidade dos canais públicos/estatais. Portanto, além de todo o problema “técnico” da localização dos canais na frequência, deve-se avaliar também de que forma essas mudanças podem deixar a 'Cidadania' à mercê de emissoras estatais, às quais a população mal tem acesso desde a origem.

Recentemente, várias entidades de radiodifusão comunitária publicaram artigos, manifestos e notas públicas contrários à postura do Minicom no caso da faixa dos 700 MHz. Nos textos, os movimentos fazem referência ao “compromisso” manifestado pelo então ministro Hélio Costa, à época da escolha do sistema da TV digital, de reservar o chamado 163 “UHF-alto” (canais de 60 a 29) para a digitalização das emissoras dos sistemas público e estatal. Mas o que não está escrito não vale como norma. Os decretos 4.901/03 e 5.820/06 (e as respectivas Exposições de Motivos), por exemplo, também prometeram (e ainda prometem) grandes conquistas e são documentos oficiais, mas o Estado brasileiro ainda não garantiu praticamente nada na prática.

O argumento do ex-ministro possivelmente deve valer como instrumento político de mobilização para a sociedade civil, mas, se não houver nenhuma iniciativa além da reclamação, dificilmente a crítica vá resultar em algo além de novas afirmações de que a reserva de espectro não está assegurada em lei e, por isso,não representa um direito líquido e certo das emissoras públicas. O documento oficial que menciona a reserva dos canais de 60 a 69 é a Norma Geral para Execução dos Serviços de Televisão Pública Digital, publicada pela Portaria nº 24, assinada por Lula em fevereiro de 2009. A fragilidade jurídica do instrumento, que pode ser alterado a qualquer momento num ato discricionário da presidenta Dilma Rousseff ou do próprio ministro Paulo Bernardo, debilita a garantia de que o previsto na portaria seja cumprido.

Dessa forma, o redirecionamento da faixa dos 700 MHz para as empresas de telefonia móvel, assentado em critérios eminentemente econômicos, pode gerar gastos adicionais ao erário, desperdício de investimentos já realizados por emissoras públicas, descontinuidade dos serviços públicos e insegurança jurídica para governos, casas legislativas e para associações que já tinham como certo uma banda de frequência para manter as operações de radiodifusão das licenças outorgadas pelo próprio ministério.

Daniel Fonsêca é jornalista, doutorando em Comunicação pela ECO/UFRJ e integrante do Conselho Diretor do Intervozes

Os sotaques ainda incomodam os donos da mídia

Um projeto de lei que pretende regulamentar o artigo 221 da Constituição foi aprovado recentemente por uma comissão especial no Congresso Nacional. O texto trata da regionalização da programação cultural, artística e jornalística das emissoras de TV e rádio. Poderia ser um motivo de comemoração, pois há 25 anos espera-se que as indicações contidas em nossa Carta Magna possam virar realidade e modificar o modelo que faz com que o que se vê na mídia não passe, com frequência, da pasteurização dos nossos costumes, sotaques e opiniões, nos quais mal nos reconhecemos.

Quando o sistema nacional de comunicação foi se consolidando, nas décadas de 60 e 70, acompanhando e azeitando o processo de integração do mercado nacional, os programas de televisão locais foram sendo substituídos pela produção centralizada no Rio de Janeiro e São Paulo. A autonomia e criatividade das diversas regiões brasileiras foram sendo suplantadas pelas chamadas “redes” nacionais, inauguradas com alarde pela Rede Globo ao lançar o seu “Jornal Nacional”, que marca a entrada no novo ciclo de concentração monopolística. A integração nacional promovida pela ditadura – pois o Estado construiu nessa época toda a infraestrutura necessária à consolidação das redes- centralizou, assim, os mecanismos de produção cultural e ideológica.

A centralização excessiva traz um problema sério para a democracia, haja vista que a liberdade de expressão “nacional” foi construída, no plano da comunicação, por meio da supressão da diversidade regional e do esvaziamento dos “parques de produção cultural” espalhados pelo país. Em outras palavras, as empresas de comunicação, interessadas fundamentalmente no lucro, enxugaram seus custos, entregaram-se à lógica das redes nacionais e, com isso, desfizeram-se dos instrumentos necessários para a consolidação de indústrias culturais locais e regionais. Nesse contexto, praticamente se impossibilitou qualquer possibilidade de produção independente, criando um sistema de vassalagem entre “cabeças-de-rede” e “afiliadas”.

É isso que a sociedade quer mudar. Não obstante, o texto do relator Romero Jucá (PMDB-RR), aprovado, “a toque de caixa”, no dia 11 de julho, pela Comissão Mista de Consolidação das Leis, não enfrenta esse cenário. Ele desconsidera discussões que se prolongam há décadas, bem como o projeto de lei da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), sobre o mesmo tema, que completa 22 anos (!) de tramitação, em 2013. Aparentemente, o regente da banda atual é o mesmo que impediu que a regulamentação desse ponto da Constituição avançasse, conforme alertam organizações que atuam no campo das comunicações.

O projeto aprovado estabelece um tempo obrigatório de veiculação de produção regional de pouco mais de 10 horas (616 minutos) semanais em cidades que possuam entre 1 e 5 milhões de habitantes. Ou seja, apenas cerca de 6% da programação deve ser produzida em âmbito regional. Além disso, a redação aprovada não prevê o horário de exibição da programação local, permitindo que as cotas sejam cumpridas na madrugada, quando a audiência é bastante baixa e não há muito interesse dos anunciantes que financiam a TV “aberta”.

A incorporação das transmissões, em cadeia nacional, de pronunciamentos da presidência, de propaganda eleitoral obrigatória e de campanhas de interesse nacional são descontados nas horas reservadas ao cumprimento da cota regional. Abre-se, também, a utilização do Fundo Nacional da Cultura, presente na Lei Procultura, para o financiamento de produção por parte de empresas que já concentram propriedade no setor. No projeto de Jandira Feghali – aprovado na Câmara em 2013, mas encostado no Senado -, a cota praticamente dobrava, estando previsto um mínimo de 22 horas semanais para cidades com mais de 1,5 milhão de habitantes e 17 horas para aquelas com mais de 500 mil, sendo obrigatória a transmissão no período entre as 5h da manhã e a meia-noite. Há, ainda, outras distorções.

Outra vítima é a produção independente, isto é, aquela que não possui vínculos com o oligopólio. O projeto não garante reservas para essa produção, quando teria, conforme o texto de 1991, 40% de espaço garantido nas emissões televisivas. A redação da Comissão Mista vai de encontro às mudanças registradas desde o estabelecimento da nova lei da TV por assinatura (12.485/11), que modificou o cenário da produção independente no país e que, portanto, deveria servir de inspiração para a regulamentação.

Podemos nos fazer de simplórios e dizer que é “intrigante” que a aprovação deste projeto surja exatamente quando a sociedade está mobilizada para a implementação de um projeto de lei de iniciativa popular que regulamenta artigos constitucionais relacionados à comunicação eletrônica. Mas esses setores não querem apenas novas leis, querem regras que levem à democratização dos meios de comunicação, de modo que todas as regiões do país possam ter a capacidade de produzir e expressar a própria imagem.

Para avançamos na efetivação da democracia, precisamos ser mais incisivos na busca pela descentralização e garantia da diversidade, valorizando a pluralidade e riqueza que possui nosso país. E a democracia real somente se constrói com a participação dos interessados e da sociedade, de forma geral. Não nasce de pequenas comissões que ignoram os longos e amplos debates lastreados nas demandas diversas de uma sociedade rica em singularidades.

Mídia e religião: muito além da cobertura da visita do Papa

Desde o desembarque do maior líder da Igreja Católica em solo brasileiro, na última segunda-feira (22), as principais emissoras de televisão aberta do país têm dedicado grande parte das suas programações a conteúdos sobre cada passo do Papa Francisco. Pela tela das TVs, o Brasil parece ter parado, e nada que não tenha relação com o cotidiano do argentino Jorge Mario Bergoglio merece destaque nos grandes meios. Os telejornais praticamente se transformaram em extensões da assessoria de imprensa do Vaticano; os programas de variedade e entretenimento resumem-se ao papel de retratar hábitos e curiosidades da passagem do primeiro papa latino-americano pelo Brasil. Enfim, uma série de informações desprovidas de senso crítico que abandonam o jornalismo e o interesse público e escancaram uma relação íntima entre mídia e religião no Brasil.

A cobertura da presença do Papa Francisco no Brasil pelas principais emissoras, em si, já é algo preocupante, pois, ao privilegiar e conceder tamanho espaço a um determinado segmento religioso, vai na contramão da laicidade do Estado. Porém, a intimidade entre mídia e religião em nosso país guarda outros aspectos, muitas vezes pouco percebidos e discutidos, que vão muito além das notícias sobre o Papa.

O primeiro é que a ocupação da programação de emissoras de rádio e TV por conteúdos religiosos não é algo restrito aos dias da visita papal. Missas, cultos evangélicos, pregações, sermões e sessões de “descarrego” são alguns ritos religiosos presentes com frequência nas manhãs, tardes, noites e madrugadas de diversos canais. Levantamento feito pelo Intervozes e divulgado pela Folha de S.Paulo mostra que cerca de 140 horas semanais da TV brasileira são preenchidas com programação religiosa. CNT e Gazeta são algumas das emissoras que transmitem celebrações religiosas diariamente. Mas o caso mais emblemático, sem dúvida, é o do Canal 21 de São Paulo, vinculado ao Grupo Bandeirantes, que arrenda 22 horas diárias de sua programação para a Igreja Mundial do Poder de Deus.

Com emissoras de maior audiência como Rede TV e Bandeirantes não é muito diferente. A primeira vende 46 horas semanais de sua grade para diferentes igrejas. Já a emissora da família Saad tem 31 horas por semana exclusivas para programação religiosa. Tal prática de arrendamento das grades de programação viola flagrantemente a legislação em vigor, diante do silêncio do Ministério das Comunicações, a quem caberia a fiscalização do setor.

Não satisfeitos com o espaço na programação de vários canais, segmentos religiosos têm ainda sob o seu controle a propriedade de quase uma dezena de estações de TV: Canção Nova, TV Século XXI, TV Aparecida, RIT, Rede Gospel, Rede Mulher e Rede Família, entre outras. Vale lembrar que esse não é um fenômeno recente do sistema de mídia brasileiro, mas que nos últimos anos vem ganhando proporções significativas. Um marco histórico da penetração de segmentos religiosos nos meios de comunicação aconteceu nos anos 90, com a compra da TV Record pela Igreja Universal do Reino de Deus em 1990 e a entrada em funcionamento da Rede Vida de Televisão, ligada à Igreja Católica, em 1995.

Falando em Rede Vida, o atual presidente do grupo é o arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Orani Tempesta, principal anfitrião do Papa no Brasil. E aí é que a relação mídia e religião ganha outros contornos. O mesmo Dom Orani Tempesta é o atual presidente do Conselho de Comunicação Social, órgão consultivo do Senado Federal previsto na Constituição de 1988. O Conselho, que ficou desativado por sete anos, é o principal espaço nacional de participação social no setor das comunicações, tendo como atribuições realizar estudos, pareceres e recomendações sobre a liberdade de manifestação do pensamento, criação, expressão e de informação; sobre as finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas da programação das emissoras de rádio e televisão; e sobre a propriedade das empresas jornalísticas e de radiodifusão, dentre outros temas. Ou seja, o representante da sociedade civil brasileira no maior posto do Conselho de Comunicação Social do Congresso brasileiro é um arcebispo da igreja católica.

Nem mesmo a única emissora de TV pública de caráter nacional está isenta de conteúdos religiosos. Duas horas das manhãs de domingo da TV Brasil são ocupadas com programação católica, sendo uma hora destinada à exibição ao vivo da Santa Missa da Arquidiocese do Rio de Janeiro, que tem como líder supremo o já citado Dom Orani Tempesta.

Em 2012, o Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (que administra a TV Brasil), decidiu, após consulta pública aberta à população, substituir a transmissão dos programas religiosos por conteúdos informativo-culturais sobre religiosidade e diversidade de credos. Dom Orani – principal anfitrião do Papa Francisco no Brasil, presidente da Rede Vida de Televisão, presidente do Conselho de Comunicação Social e diretor do programa Santa Missa – utilizou então o espaço público da televisão para pedir aos fiéis que enviassem cartas e e-mails à Presidenta Dilma Rousseff contra a decisão do Conselho Curador da EBC. Não precisou nem mesmo Dilma se manifestar. A Justiça Federal do Distrito Federal concedeu uma liminar mantendo a transmissão da missa dominical na TV pública.

Enfim, quando o assunto é mídia e religião, ainda estamos distantes de respeitar a laicidade do Estado e promover a diversidade de credos no Brasil. Proselitismo religioso na televisão é algo marcante não apenas esta semana, mas uma tendência histórica da mídia brasileira, que tem como consequências a construção de privilégios para alguns segmentos religiosos e a publicização de discursos tradicionalistas, em defesa de uma moral cristã. Em risco está a liberdade de expressão do conjunto da população brasileira e a convivência democrática entre os que se identificam ou não com determinadas crenças e ainda com os que não professam qualquer religião.

*Paulo Victor Melo é jornalista, membro do Conselho Diretor do Intervozes e mestrando em Comunicação e Sociedade na Universidade Federal de Sergipe